Chiharu
Capítulo 16
. . .
— Isso é um problema...
— Um grande problema...
— É verdade...
— Ei, ei...
No chão, pedaços de concreto de todos os tamanhos. No alto
da estrutura, um grande buraco. Os homens musculosos concordaram um a um,
embora nenhum fosse tão grande e corpulento quanto o responsável por aquilo.
— Não, sério... Como você conseguiu isso dessa vez?
— Ah, bem... Sabe como é... Uma hora você está olhando, e
quando você vira o rosto um segundo, ela cai desse jeito.
Todos olharam para Hiroshi com expressões acusadoras.
Percebendo a posição delicada em que estava, ele simplesmente sorriu e se
encolheu, embora isso não impedisse o grandalhão de se destacar.
— Se eu não estivesse atento, eu teria sido esmagado. Como
sempre.
— Ah, que é isso! Eu sei que você tem bons reflexos.
Melhor você lá em baixo do que qualquer outro!
Eu me pergunto se esse tipo de coisa acontece o tempo todo
ou só quando eu passo aqui...
De qualquer forma, hoje eu quase morri para uma das
besteiras de Hiroshi. De novo. Mas, diferente das outras vezes, dessa vez havia
um motivo para o qual eu tinha vindo especificamente para cá. Eu já havia dito
isso uma vez, antes de ser quase esmagado, mas, após um suspiro, eu resolvi
repetir.
— De qualquer forma, eu preciso falar com você.
— Ah, é verdade, é verdade! Vamos sair daqui!
Ele usou aquilo como pretexto para fugir, embora isso
fosse óbvio. Um dos operários olhou para mim, com suspeita no olhar.
— Ei, Makoto, não vá ajudando esse idiota a escapar assim!
— Ele não está ajudando ninguém! Apenas... Ah, eu volto
quando as coisas tiverem esfriado! Ou
Revoir!
O homem nem mesmo me deu oportunidade de indagar como o
outro sujeito sabia o meu nome, e já foi me empurrando para longe. Em poucos
instantes, o prédio sumiu da nossa vista.
E, de novo, você pronunciou isso errado.
. . .
— Ah, eu escapei...
— É verdade, garoto, eu tinha esquecido de você! E então,
o que você queria mesmo?
Eu suspirei e levei a mão até a testa, buscando nos cantos
mais obscuros do meu ser um pouco de paciência.
Não encontrei nenhuma.
— Pra começo de conversa... Como seu colega sabia meu
nome?
— Ué, não é óbvio? Por que eu falei de você pra eles.
— Você falou de mim?
— Mas é claro! Quando alguém consegue sobreviver mais de
três vezes a experiências de quase morte, ele acaba virando assunto.
Então você admite que quase me matou...
— Não é comum você vir aqui por vontade própria. Você veio
até aqui só pra me perguntar isso?
— Óbvio que não...
Eu busquei repouso no banco atrás de nós, e olhei para o
sol poente no horizonte. Eu ainda não havia conversado sobre isso com ninguém.
Na verdade, não me sentia confortável para conversar com isso com ninguém. Esse
cara... Ele parecia ter a idiotice de um adolescente e a sabedoria de um adulto
tudo dentro de um recipiente não muito discreto. Isso fazia com que, de alguma
forma, eu sentisse vontade de conversar com ele sobre esse tipo de coisa.
Ou talvez eu simplesmente não tenha opção.
Com um olhar renovado e uma expressão determinada, deixei
minha voz escapar com vigor.
— Então! É o seguinte. Tem essa garota, e eu estou
pensando em chama-la pra sair... Não... Eu estou pensando em pedi-la em namoro.
— Ho...
Isso me surpreendeu. Eu até podia esperar um 'ho...',
vindo dele, mas o que eu ouvi foi um coro sincronizado. Eu olhei para o lado de
onde o som havia visto, mas não consegui. Ele veio de todas as partes.
Agora com suas posições reveladas, os operários começaram
a sair de seus esconderijos um a um.
Mas o que!?
Como esses caras se esconderam nesses lugares tão
inusitados!? Eles estavam ouvindo o tempo todo!? E como eles conseguiram nos
ultrapassar!?
— Parabéns, garoto!
— E então, ela é bonita?
— Sabe, se prender nunca é uma boa ideia.
— Se você quer fazer isso, faça isso na praia, na praia,
eu digo!
— Que praia o que! Você tem que ter dinheiro! Ela não vai
resistir.
Eu nem pude perguntar aquelas coisas por que fui
sobrecarregado com as palavras dos homens, que se aproximavam cada vez mais,
até o ponto de me fazer sentir preso. Eu dei dois passos para trás para ganhar
um pouco de espaço. Nesse ponto, uma mão gigante me agarrou e me puxou. Hiroshi
havia me abraçado pelo pescoço, com um largo sorriso no rosto.
— Ei gente, vocês estão sufocando o garoto! Deixem ele
falar!
Não, você é que está me sufocando...
Por favor, me deixe falar...
. . .
Demorou um tempo para a euforia passar. Aqueles homens
pareciam quase tão excêntricos quanto Hiroshi, até mesmo esqueceram do que
havia acontecido minutos atrás. Agora sentado no banco, tentei, mais uma vez,
dar início ao assunto.
— Então... Eu já disse o que tinha que dizer. O que você
acha?
— Vejamos... Você gosta dela?
— Sim.
— Até onde vocês já foram...
— Bom... Nós nos beijamos.
— Só se beijaram?
— É, ué! Algo errado com isso?
— Não, não...
Um silêncio se instaurou, e acabei corando quando me dei
conta que estava tratando da minha vida pessoal na frente de um monte de
desconhecidos.
— Onde foi que se beijaram pela primeira vez?
A pergunta não veio de Hiroshi, mas sim de um dos outros
operários.
— Na frente da casa dela.
Um burburinho se instaurou. Todos pareciam concordar numa
coisa:
— Isso é tão coisa de antigamente...
— Que seja. E onde se beijaram pela última vez?
Eu relutei em responder, sem saber como iria dizer isso.
— Bom... Na frente da casa dela.
Mais um burburinho. Hiroshi cruzou os braços e olhou para
mim.
— O que é isso, algum tipo de hábito? Sempre faz isso
quando vai deixar ela em casa ou algo do tipo?
— Não diria sempre... Só uma vez.
— Uma?
— ... É...
— Espere aí, eu não entendi... Como você pode...
— Só nos beijamos uma vez, tá legal!?
Eu falei num tom alto para ter certeza de que todos
ouviriam mesmo com os burburinhos e não tivessem que me fazer repetir.
Gargalhadas.
Os homens riram, completamente soltos e sem pudor, da
minha cara.
— O que é isso, garoto? Acha que só por que uma garota
deixou você dar um beijo nela você já tem que pedi-la em namoro? Ela pode ter
deixado só pelo momento. Você tem que fazer mais alguns testes antes.
— Não é o caso! Afinal, foi ela quem me beijou.
O barulho das gargalhadas foi substituído por um instantâneo
silêncio, quase fúnebre. Eu fiquei incomodado com o modo como todos me olhavam.
Que medo.
— Espere aí... Você está dizendo que ela que te beijou?
Não consegui responder. As palavras travaram na minha
boca. Minha mente ficou confusa.
É isso mesmo que estou querendo dizer? Nem isso eu sei
mais...
— Então você foi beijado?
— Aposto que você nunca tinha beijado uma garota antes.
— Se apaixonou com o primeiro beijo? O que é você, uma
garota de doze anos?
Uma veia grande e grossa saltou na minha testa, e foi
inflando com cada comentário. No fim, eu explodi, levantando do banco e abrindo
caminho por meio dos homens musculosos.
— Aaah, chega! Eu vim aqui procurar ajuda, mas pelo visto
vocês são todos crianções.
— Oh, lá vai a donzela apaixonada!
Um homem fez um comentário infantil, outro assoviou. Eu me
senti no meio de garotos da quinta série. Com uma vermelhidão raivosa exalando
de todo o meu rosto, eu dei dez passos rápidos em direção à minha casa, mas fui
chamado a atenção por uma voz imponente atrás de mim.
— Ei, garoto! Segura aí!
Eu me virei, e um objeto voava na minha direção. Eu o
agarrei com alguma dificuldade, por causa das luvas, tendo que usar as duas
mãos.
— Vê se esfria a cabeça! E vai fundo!
Hiroshi sorriu e colocou as mãos na cintura. Aquele sorriso
largo, como sempre, tomava boa parte do seu rosto. Os outros operários deram
sorrisos mais comedidos e me cumprimentaram de longe. Eu resolvi que não
deixaria muito de mim se comover por aquilo e simplesmente me virei, sem dizer
nada.
Um breve sorriso.
Que irônico. Apesar de Hiroshi mandar que eu esfriasse
minha cabeça, a bebida que ele jogou para mim foi um café quente. Faz sentido,
já que beber algo gelado no inverno seria pedir para virar um bloco de gelo.
Ignorando o fato não muito relevante, eu bebi o conteúdo
da lata enquanto traçava o caminho solitário até em casa.
.
. .
No dia seguinte, contrariando todas as leis naturais das
quais tenho conhecimento, meu corpo suou o dia todo.
O molhado na minha pele fazia o frio entrar ainda mais
impiedosamente por meus poros, me castigando. O nervosismo estava me consumindo
por completo.
Eu vou mesmo fazer isso?
As palavras que ouvi ontem daqueles homens ecoaram na
minha cabeça. Talvez fosse cedo demais. Talvez ela nem mesmo correspondesse
meus sentimentos. E se foi só um beijo? Pra mim foi meu primeiro beijo, mas pra
ela pode não ter sido.
A insegurança tomou conta de mim e realmente me senti como
uma garotinha de doze anos.
Em certo momento começou a ficar difícil ir ver Shizuka no
intervalo, por causa do frio.
Por cima de tudo isso, ainda tive que aturar os
comentários sobre estar ensopado o dia todo.
. . .
O sinal tocou. Era o último que eu teria naquele dia, e
agir ou não agir deveria ser decidido agora. Surpreendentemente eu juntei força
de vontade o bastante para me acalmar. O cheiro de suor e perfume retocado se
misturava e me fez chamar um pouco mais de atenção do que eu gostaria a medida
que eu fui saindo da sala. Virando no corredor, eu fui em direção ao andar de
baixo.
Não encontrei com o pessoal no caminho, como acontece de
costume. Desci as escadas e fui até a o lado de fora. Algo chamou minha
atenção; uma comoção de alunos na área da esquerda do pátio. Eu vi os cabelos
brancos e vermelhos de Osakura e Nekogami e resolvi me aproximar deles.
— Ei galera, o que está acontecendo?
Os dois olharam para mim, e Osakura se apressou para
responder, por causa da euforia.
— Não sei! Pelo visto o capitão do clube de Kendo foi
desafiado por alguém!
— Você sabe quem é aquele cara?
Nekogami me indagou, mas eu não conseguia enxergar.
Surgindo praticamente do nada, uma figura baixinha de cabelos pretos apareceu
na nossa frente, fazendo uma contingência como cumprimento. Parece que Yuragi a
influenciou um pouco demais.
— Pelo visto é um grande campeão! Parece que o nome dele é
Keitarou! As pessoas estão o chamando de 'o espadachim das sombras'!
— Keitarou, é? Nunca ouvi falar.
Keitarou... Esse nome não me é estranho. Na verdade, eu o
ouvi recentemente.
Keitarou... Um grande campeão de Kendo... Espadachim das
sombras...
Só pode ser uma pessoa.
Eu abri caminho entre meus dois amigos e mais meia dúzia
de estudantes entusiasmados e consegui enxergar a cena. Dois homens estavam de
frente um para o outro. O que possuía vestes negras era claramente mais velho,
mas não muito. Apenas um ou dois anos. Os dois se encaravam, com espadas de
Kendo nas mãos.
Do lado mais próximo de onde eu estava, se encontrava uma
figura de cabelos castanho-escuros, com uma expressão séria e que eu conhecia
de vista e boatos. Tsukiate Hontou. O capitão do time de kendo e melhor lutador
do colégio. Do outro, estava uma outra figura, de cabelos negros e expressão
serena.
Kurou Keitarou. Irmão de Yami e o cara que me acertou, com
o mesmo objeto que segurava em mãos, outro dia.
Os dois colocaram as máscaras e se posicionaram. A ação
deles foi acompanhada por um coro eufórico que foi abafado pelos outros membros
do clube de Kendo, que pediam silêncio. Demorou um pouco para que todos
resolvessem calar a boca, mas os guerreiros apenas continuaram parados na mesma
posição, por todo o tempo.
Vários minutos se passaram, e a tensão preencheu o ar. O
olhar de todos estava fitado naquela cena. Tendo tempo de percorrer toda a
multidão com os olhos, eu vi aquele olhar escarlate do outro lado do campo de
batalha. A garota dos olhos vermelhos olhava seu irmão fixamente, com um misto
de preocupação e impotência. Um olhar que eu conhecia muito bem.
De surpresa para mim, mas provavelmente num tempo oportuno
para eles, um dos membros do time de Kendo deu o sinal para que a luta
começasse. Tsukiate não perdeu tempo, e partiu para cima de Keitarou com uma
sequência incrivelmente rápida de golpes. Como era de se esperar, o 'espadachim
das sombras' bloqueou todos os golpes numa sequência igualmente rápida de
defensivas.
Tsukiate deu meio passo para trás para se recuperar, e
então partiu para cima novamente. Dessa vez, Keitarou deu passos para o lado
enquanto bloqueava, procurando ganhar terreno na arena circular. Hontou montou
uma base defensiva logo após seus ataques, buscando se defender de qualquer
contragolpe que Keitarou procurasse desferir, mas o mesmo se manteve inerte,
aguardando a próxima onda de ataques.
Tsukiate mudou sua postura de combate e analisou seu
oponente. Tudo o que Keitarou fez foi colocar a espada centímetros para a
direita, não mudando sua forma de combate. Tsukiate avançou com mais uma onda
de golpes, mas, dessa vez, Keitarou avançou. Ele deu um passo largo que o fez ficar
quase lado a lado com seu oponente. Todos, inclusive eu, pensaram que o golpe
de Hontou acertaria Keitarou em cheio. No entanto, como um raio de luz - ou
seria melhor dizer 'um vulto de sombras'? - Keitarou se inclinou e bloqueou o
golpe, levantando a espada do seu oponente. Com um giro habilidoso, o objeto de
madeira foi parar nos ares. Todos ficaram olhando, boquiabertos. A ponta da
espada de Keitarou avançou mais uma vez, e parou a milímetros do centro do
rosto do oponente. O medo e a surpresa fizeram com que ele tombasse para trás,
caindo de bunda no chão. Meio segundo depois, o som da madeira se chocando com
o terreno também pôde ser ouvido.
A euforia tomou conta novamente. Os estudantes regulares
gritavam e conversavam sobre o quão incrível aquilo havia sido. Os únicos que
não pareciam muito contentes eram os membros do clube de Kendo, que
conversavam, incertos. Alguns tentavam confortar Tsukiate, que olhava fixamente
para o chão. Keitarou fez uma pequena reverência e deu as costas, sem dizer
nada. Não houve uma só alma que ousasse ficar em seu caminho, e todos abriram
espaço para que ele fosse embora.
No fundo da cena, Yami acompanhou o irmão com o olhar, e
então o seguiu. Eu voltei por onde vim, lutando para passar pelas pessoas,
novamente. Akakyo e Kai conversavam animados sobre o que haviam visto.
— Ele foi tipo... Pow! E o outro cara ficou tipo...
Woooooow!
Kaioshi, especialmente, parecia uma criança falando.
Hanabi também estava entrando na onda, e Akakyo estava rindo da idiotice dos
dois. Ele parou por um segundo para me olhar.
— Ei, Makoto! Onde você está indo?
— Ah, eu já volto!
Eu sorri depois de ver a cena e acenei para Akakyo. Ele
pareceu entender e acenou de volta, voltando-se para a conversa de idiotas que
estava acontecendo ali.
Quanto a mim, eu continuei indo na direção dos dois irmãos
que se aproximavam passo a passo dos portões da escola.
. . .
Quando eu os alcancei, eles já estavam do lado de fora. Eu
tive que correr um pouco e isso me deixou meio ofegante.
— Yami-san!
Eu chamei pelo nome da garota, que se virou. Logo depois,
seu irmão também se virou, olhando na minha direção.
Nossos olhares se cruzaram. Ele havia conseguido uma
impressionante vitória, mas estava claro que eu não iria parabeniza-lo. Ele
também não parecia estar esperando por algo do tipo. A voz de Yami cortou
nossas análises mútuas.
— O que foi, Makoto?
— Ah, é que eu...
Eu cocei a cabeça e olhei para um ponto aleatório acima do
meu ombro esquerdo.
— Eu tenho algo pra falar com você.
Dessa vez foi a vez dela de desviar o olhar. Ah, isso não
pode ser um bom sinal... Se ela realmente previu o que eu vou dizer, como
sempre fazia, definitivamente não pode ser um bom sinal.
— Ah, é que... Podemos deixar isso pra amanhã? Hoje temos
algo pra fazer.
Ela olhou de relance para seu irmão enquanto falava.
Quando ela disse 'temos', claramente se referia a ele e ela. Entendendo a
situação, fui preenchido por um misto de alívio e decepção, fazendo com que
meus ombros relaxassem.
— Ah, entendi...
— Não, Yami. Vá na frente.
Eh?
Keitarou se aproximou de mim e me encarou nos olhos. Eu
podia ver que ele tinha os mesmos olhos do pai, embora eles não fossem
preenchidos com o ódio característico do seu progenitor.
— Eu é quem tenho algo pra falar com você.
Yami deu um passo à frente e abriu a boca, como se
quisesse impedir seu irmão, mas só bastou um simples olhar de Keitarou para que
ela nada dissesse. Ele fez um pequeno gesto afirmativo com a cabeça.
— Vá.
O olhar da garota de olhos vermelhos caiu sobre mim, e
então ela se virou. Eu fiquei observando enquanto ela se afastava, até sumir da
nossa vista. Eu e Keitarou nos encaramos novamente. Havia muito o que nos
separar. Primeiro, nossa apresentação não foi das mais calorosas. Segundo,
nossas famílias tem intrigas demais, o que inclui o fato de que ele pode culpar
os meus pais pela morte da mãe dele. Terceiro, eu beijei a irmã dele. Bom, isso
não era necessariamente algo que ele sabia, mas se ele soubesse...
Aquela espada de madeira nas mãos dele era um objeto com o
qual eu teria que me preocupar.
— Não vamos conversar aqui. Vamos para um lugar mais
reservado.
Ele começou a caminhar, sem olhar para trás. Eu dei o
primeiro passo, mas meu corpo travou. Ficar sozinho com um cara como esse... E
ele tentasse qualquer coisa contra mim, eu não teria chance. Engolindo a seco,
eu dei a mim mesmo uma chance de provar minha coragem, e dei sucessão aos meus
passos.
Um a um, eles me aproximavam do espadachim das sombras.
. . .
A umidade do ar aumentou e o ar foi preenchido com o doce
aroma de Teyaki sendo preparado. Estávamos na beira de um rio que cortava nossa
cidade. A partir desse horário, quando os estudantes estavam saindo de suas
escolas, a praça era preenchida com diversas barracas que vendiam comida e
outras bugigangas populares como acessórios para celular. Eu e o rapaz de
cabelos negros paramos de frente para o rio, observando a forma como a água
corria.
Quando ele disse que iríamos para um lugar mais reservado,
eu não achei que seria para uma praça tão movimentada assim. Acho que tudo o
que ele queria era se afastar daquela escola, onde ele havia chamado atenção o
suficiente para ser importunado. Aliviado, eu deixei o ar tenso escapar dos
meus pulmões.
— Não fui eu quem desafiou seu capitão.
— Eh?
— Foi ele quem me desafiou.
Eu não tinha certeza de onde ele queria chegar com isso,
mas era o oposto da informação que eu tinha até agora. Pelo que meus amigos me
disseram, havia sido Keitarou quem havia desafiado nossa escola. Se não foi
assim, então...
— Isso costuma acontecer frequentemente. Quando as pessoas
descobrem que tem alguém com fama no Kendo aqui na cidade, correm para
desafia-lo. Geralmente eu não aceito, mas...
Ele olhou para mim com um olhar penetrante que parecia que
perfuraria minha alma.
— Quando se tratou do colégio onde você estava, foi um desafio que não pude recusar.
— Por que essa obsessão por mim?
Keitarou deu um sorriso seco e voltou a olhar para o rio.
— Não me confunda com o meu pai. Eu tenho bom senso o
bastante para não guardar rancor de você. Não sei se a culpa foi do seus pais
ou não foi, mas não importa. O que aconteceu, aconteceu. E ainda por cima não
tem como você ter nenhuma culpa por isso.
Novamente, o filho se mostrou mais sensato do que o pai.
Mas a dúvida do por que com meu colégio a coisa era diferente ainda persistia.
— Então, por que...
— Por que eu tinha esperança de que o capitão fosse você.
Não... Na verdade, não é isso. Por ser o seu colégio, eu consideraria que o meu
oponente seria o seu representante. Afinal, o que eu queria era provar para mim
mesmo...
Ele levantou o olhar, observando dois corvos que giravam
em torno de um círculo imaginário.
— É que você poderia me derrotar.
Mas o que? Tudo apenas fica mais confuso. Ele queria
perder? Se ele quisesse perder, poderia apenas perder... Mas, provavelmente...
Ele estava tentando ser superado. Procurando alguém que o vencesse com suas
próprias forças. O local que ele poderia achar isso, com certeza, seria nas
nacionais... Mas nem isso o satisfaria. Havia alguém por quem ele queria ser
superado. E, por algum motivo, esse alguém era eu.
— Eu não sei se eu entendo...
Keitarou sorriu para si mesmo, como se dissesse 'é claro
que ele não iria entender'. Não sei se me sinto insultado.
— Eu vi o que você fez.
Aquele olhar que ele lançou para mim não deixava dúvidas.
Minha coluna ficou ereta automaticamente, e meu rosto foi tomado por uma
mistura de pavor e vergonha.
— V-Você viu!?
— Se você não queria que vissem não deveria ter feito isso
na porta da casa.
Eu me calei. Ele estava certo, embora não tivesse sido bem
eu que escolhi o lugar...
— Se você me perguntar, não acho que você seja uma pessoa
ruim para ela. Na verdade, eu o admiro.
Ser admirado. Tá aí um sentimento com o qual eu não estou
acostumado.
— Me admira? Eu não acho que seja alguém para ser
admirado.
— Você está sendo modesto, Makoto. Eu vi o que você faz
pela sua irmã. Você é um grande homem. Você mantém sua família inteira mesmo
depois de ter perdido parte dela. Bem diferente do meu pai. Bem diferente de
mim.
De fato eu cuido da Shizuka com a minha vida. Ela é minha
família, e eu devo protegê-la. Isso é óbvio para mim. Parte por causa disso,
minha aversão ao pai da família Kurou cresce. Como homem, como líder da
família, ele deveria cuidar dela. Talvez seja assim que Keitarou se sente,
também. Na ausência do pai, ele sente como se fosse obrigação dele cuidar das
irmãs. Algo que ele não consegue ou não tenta fazer, e se arrepende. Claro que
é apenas suposição, mas é a única coisa na qual consigo pensar.
— Yami provavelmente já contou toda a nossa história. Sobre
como nossa família se desestruturou depois que nossa mãe morreu. Sobre a forma
como aquelas duas se afastaram... É tudo muito doloroso para elas. Ambas tem
uma forma diferente de lidar com isso, que só as faz se afastarem ainda mais. E
eu também...
Ele girou sua espada habilidosamente com uma única mão,
deixando-a repousar sobre seu colo.
— Quem diria que eu acabaria dessa forma. Jogando tudo
sobre o Kendo. Descontando nos meus oponentes todas as minhas frustrações. Indo
todo o caminho até o topo, apenas procurando alguém que me derrubasse. Alguém
para me fazer aceitar tudo o que aconteceu. Um choque de realidade,
simplificando.
Eu o olhei de uma forma diferente de todas as formas com
as quais eu o havia olhado até agora. Compreensão. Esse era o nome do
sentimento que me dominava no momento. Eu busquei as palavras, tentando
expressar o que eu achava.
— Sabe... Se você já tem consciência de tudo isso, você
não é tão ruim quanto pensa.
Ele olhou para mim, atencioso.
— Se você tem consciência de que você precisa fazer algo,
só te resta fazer, não é? Você já está um passo a frente do seu pai. Se você
quer unir sua família de novo, basta tentar. Eu já vi isso uma vez.
Eu me referi ao caso dos Nekogami. Tudo o que precisou
acontecer foi uma ação. Uma simples movimentação de alguém da família, e tudo
se resolveu. Pelo menos o mais importante.
— Sim, talvez seja isso...
Ele concordou. Parece que ele também já havia chegado à
essa conclusão.
— Eu vou largar o Kendo.
— Largar o Kendo? Mas você não é um gênio?
— Alguns me chamam assim... Mas ninguém nunca me perguntou
se é o que eu gosto de fazer.
Ele se levantou, olhando a espada.
— Não que eu não goste. Mas toda a pressão, todo o tempo
necessário para chegar onde eu cheguei... Eu também sinto vontade de fazer
outras coisas. Não preciso ir até o final só por que é uma tradição. Eu também
tenho meus próprios sonhos.
Sonhos, é... Algo que eu não tenho, eu acho. Eu vivo tão
centrado nos dias de hoje, que nem mesmo sei o que quero pro meu futuro. Logo
eu vou me formar... O que eu vou fazer depois? Vou trabalhar? Vou continuar
estudando? Vou pruma faculdade? Acho que isso é impossível... Não conseguiria
conciliar algo assim tendo que cuidar de minha irmã...
O que eu quero para minha vida? Quais são os meus sonhos,
minhas esperanças?
Nem mesmo isso eu sei.
Aquele homem na minha frente, pelo qual já guardei
profundo desprezo, agora parecia muito mais maduro do que eu.
Ele olhou para mim. Nossos olhares se cruzaram. O que
antes eram olhares cautelosos e analíticos, agora eram olhares que misturavam
compreensão e admiração. Como se sentisse necessidade disso, eu me levantei.
— Obrigado por me deixar desabafar. Você tem ouvido mais
desabafos dos Kurou do que deveria.
— Não, não é nada.
Ele estendeu a mão para mim. Eu a segurei, firmando um
aperto de mãos.
— Até que eu possa cuidar da minha irmã de novo, por
favor, fique de olho nela para mim. Você é uma boa pessoa, Makoto. É uma das
poucas em que posso confiar.
— Você também é uma boa pessoa, Keitarou. Só precisa de
parar de bater nos outros por aí sem saber das intenções dele.
Ele deixou um sorriso escapar, como se isso trouxesse uma
boa memória para ele.
Desgraçado. Boa uma ova.
— Pode deixar.
Ele se virou, tomando seu rumo. Preenchido por
pensamentos, eu voltei a olhar para o rio.
A família Kurou... Eles estão relacionados a mim de uma
forma bem poderosa, agora.
Kurou Yami... Kurou Keitarou...
Aqueles dois irmãos são pessoas muito mais humanas do que
eu imaginava. Todos tem problemas e inseguranças...
E também...
Todos estão procurando alguém de quem possam depender.
Alguém que possam confiar.
. . .
Chiharu - 16
Confiança.
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