Chiharu - Capítulo 15



Chiharu



Capítulo 15


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O sinal do fim da aula chegou abafado aos meus ouvidos. Minha cabeça estava repousando sobre meus dois braços cruzados e o volume do casaco cobria minha audição. Eu fiquei assim por um tempo desde que cheguei até um pouco depois do último sinal tocar. Eu deveria estar prestando atenção na aula depois de decidir melhorar minhas notas, mas, apenas hoje, eu me dei a liberdade de colocar minha cabeça em outro lugar. Afinal, mesmo que eu tentasse, eu não conseguiria ouvir sequer uma palavra que os professores haviam dito.

Eu saí do meu esconderijo e me estiquei, dando aos meus ouvidos a oportunidade de ouvir o burburinho de vários adolescentes conversando. O professor pigarreou duas vezes após quase sair da sala. Parecia ter se lembrado de alguma coisa.

— Ah, sim. Fui pedido para avisar que o festival escolar será reestabelecido nesse trimestre.

Houve um alvoroço de reações. 'Eles nunca desistem?' 'Deixem o festival para o ano que vem.' 'Eu estou ocupado demais estudando para me preocupar com algo assim.' Apesar de todos os comentários, o professor simplesmente caminhou para fora como se não fosse problema dele.

— O festival escolar, é...

Se o festival escolar foi reestabelecido, vamos poder realizar o show que estávamos tão ansiosos mas não tivemos a chance de tornar realidade. A mais excitada sobre isso, como sempre, era Yuragi. Eh, quando ela ouvir isso, ela vai...

— MAKOTO!

Através do mar de estudantes que se digladiava para sair o mais rápido possível da classe, uma garota de cabelos ruivos emergiu. Ela atravessou aquela barreira com tanta facilidade que até mesmo derrubou um ou dois garotos. Eu fiquei boquiaberto com a mostra de força surreal da garota, que somente se provou bem verdadeira quando ela me agarrou pelo colarinho e me puxou para fora da sala.

— Você já ouviu, não foi!? Temos trabalho a fazer!

Eu ia dizer 'Ei! Espere!', mas com a garganta sufocada tudo que eu pude dizer foi uma mistura impossível de ser compreendida de 'murg's e 'mnnf's.

Que irônico. Eu que queria ser o último da classe a ir embora acabei sendo o primeiro a sair.


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Quando eu saí, dei de cara com Hanabi trazendo Kaioshi pelo braço. Então Yuragi atacou primeiro a sala do primeiro ano para dobrar sua velocidade de ação, esperta... Agora só faltam dois. Em seguida fomos para a sala de Akakyo, que, como as lendas diziam, era bem popular com as garotas. Ele estava conversando com um grupo de três delas que pareciam bastante interessadas no que ele tinha a dizer. Yuragi, sem dizer um palavra, o arrastou pela orelha para fora da sala.

Kurou...

Encontramos Yami na saída da sala. Ela olhou para o ruivo sendo arrastado sem se interessar muito. Acho que ela supôs 'isso deve ser normal'. Queria poder dizer que ela estava errada.

Com isso, estávamos todos reunidos na sala do clube de música; Rakuen.

— Então, pelo visto reconheceram a importância do nosso festival escolar, e...

Yuragi começou a falar sobre a notícia de que o festival seria retomado, de como deveríamos treinar e fazer o melhor show de todos. Eu, no entanto, estava perdido em pensamentos de novo.

Meu olhar caiu sobre a garota de cabelos vermelhos. Ela ouvia tudo atentamente, ou pelo menos fazia parecer como se estivesse ouvindo. Ela realmente não se afetou de nenhuma forma por ontem?

Os olhos da garota caíram sobre mim.

Eu desviei o olhar imediatamente, fingindo prestar atenção também.

Kurou Yami.

Por alguma razão, esse nome continua ecoando na minha cabeça desde que eu o ouvi pela primeira vez.


. . .


O que me moveu não foram meus músculos, mas o que sempre havia me movido até então.

Minha irmã. O frio da neve e da água penetrava pelas minhas roupas e me fazia tremer incontrolavelmente. Se comigo é desse jeito, então para Shizuka deve estar bem pior. Eu me levantei da terra molhada e segurei os apoios da cadeira de rodas, inclinando meu corpo para frente de forma a cobrir Shizuka o máximo que eu consegui. Então comecei a andar.

Andamos por alguns segundos e então começamos a correr na medida que o terreno permitia. Acabamos tendo que bater na primeira casa que encontramos do lado de fora. Fomos atendidos segundos depois por uma velhinha, que devia ter seus setenta anos de idade. Foi Kurou quem falou por nós dois.

— Com licença... Poderia nos dar abrigo? Acabamos sendo pegos pelo clima.

— Oh, céus! Entrem, crianças, vocês devem estar congelando!

A mulher olhou para nós com uma expressão caridosa e abriu espaço para que entrássemos. Yami entrou antes de Shizuka e eu, e agradeceu a mulher com uma reverência. Incrível... Mesmo com todo aquele frio, a expressão e as ações dela parecem inabalavelmente cordiais. Seu rosto não demonstra o mínimo de sofrimento, embora, quando eu olho para aquelas mãos, elas estejam tremendo incessantemente.

— Eu vou buscar alguns cobertores e algo para se secarem!

A mulher entrou mais a fundo em sua residência. Do fim de um corredor, podíamos ouvir a voz agitada dela.

— Fujiro, Fujiro! Traga alguns cobertores, rápido!

Ela parecia estar falando com outra pessoa, criando um alvoroço. Eu me senti um pouco mal, mas essa era a menor das minhas preocupações agora. Rapidamente eu despi as roupas mais molhadas de Shizuka. Mesmo que ela não possa se mover, tremer é uma reação natural do corpo. Os músculos dela vibravam em todas as direções. Eu tentei aquece-la com o calor do meu corpo, embora ele também estivesse muito frio.

Na por debaixo dos cabelos brancos como a neve, eu podia ver um olhar cheio de lágrimas. Aquele homem... Falar com minha irmã daquele jeito e fazer ela chorar assim. Não, a culpa é minha também. Eu tenho certeza que meus pais não tiveram culpa no acidente, mas não tive a força de vontade para negar as palavras do homem no ato. Não tive poder para vencê-lo e acabei fazendo com que minha irmã mais nova assistisse ao seu irmão sendo completamente derrotado. Eu enxuguei as lágrimas no rosto dela e procurei aquece-la, mesmo que fosse um pouco.

A mulher e um velhinho de sua mesma idade trouxeram alguns cobertores grossos e roupas velhas. É claro, eu tenho que trocar Shizuka primeiro. Eu comecei a tirar suas roupas ali mesmo. Yami é uma garota, e os dois idosos parecem gentis e experientes demais para serem afetados por isso. As roupas grudavam no corpo da minha irmã, sendo difícil tira-las. Para minha surpresa, uma mão gelada me ajudou a desprender o tecido da pele alva.

O olhar vermelho de Yami no meu foi o bastante para aquecer meu coração por alguns instantes.

Eu não disse nada. Ela deve estar sentindo tanto frio quanto eu, mas, ainda assim, está me ajudando com algo que não diz nenhum respeito a ela. De qualquer forma, não é hora para formalidades. Eu só consegui pensar na onee-chan. Cada segundo que passava era um segundo em que ela passaria naquela sensação gelada e solitária.

Em alguns instantes, conseguimos vesti-la. Eu fui para o corredor para me trocar e evitar olhar para Yami se trocando. Eu poderia dar uma espiada ou duas se quisesse, mas, como que em agradecimento a garota, eu mantive meu olhar fixo num ponto sombreado da parede.

O velhinho trouxe um cesto onde colocou as roupas molhadas. A velhinha estava no cômodo que imaginei ser a cozinha, de onde podia-se sentir o cheiro de um chá sendo preparado.

— Aguardem um instante, crianças. Minha mulher já vai trazer um chá.

— Obrigado por tudo. Você nos salvou.

Eu fiz uma pequena reverência que foi agradecida pelo homem com um sorriso. Ele levou a cesta para dentro, deixando sozinhos eu e as duas garotas. Eu olhei para os olhos vermelhos e azuis na minha frente, comparando-os. Shizuka estava abatida e cansada, enquanto Yami permanecia uma fortaleza indecifrável. Eu tirei meu cobertor de cima de mim e coloquei sobre a garota dos olhos azuis.

— Desculpe, Shizuka...

Havia bastante receio e pensamentos mal resolvidos por dentro desse pedido de desculpas. Eu olhei para baixo, procurando algo motivador para dizer.

— Vamos ficar bem. Logo voltaremos para casa.

Eu tirei a coberta que me protegia do frio e coloquei sobre a minha irmã. Uma sensação quente tomou conta de mim em seguida. Sem, mais uma vez, dizer nada, Yami havia jogado parte do longo cobertor sobre mim. Ela apenas continuou olhando com aqueles olhos escarlates. A sensação de quando olho para eles é a mesma sensação que tenho quando estou com Shizuka: A sensação de que alguém pode te entender perfeitamente só de olhar para você.

— Eu não acho que ela vá querer que seu irmão congele por causa dela.

— Não, eu estou bem, sério...

Eu reconheço que é sempre assim. Sempre dou o máximo para proteger Shizuka e nunca deixar faltar nada, e acabo esquecendo de cuidar de mim mesmo. Tudo começou a mudar desde que Nana começou a me ajudar com ela, mas, na verdade, tudo continua como sempre foi. A relação entre uma irmã indefesa e um irmão idiota.

Não muito depois a simpática idosa trouxe uma bandeja com três copos de chá. Nós pegamos os copos agradecidos. Lentamente eu aproximei o copo da boca da minha irmã, que não reagiu.

— Shizuka, você tem que beber... Por favor... Tudo bem?

Os olhos dela se fitaram o líquido transparente que evaporava do copo e então eu o aproximei novamente de seus lábios. Dessa vez eles se abriram, dando espaço para que o líquido quente jorrasse com cuidado para dentro dela. Yami e nossa anfitriã me observaram enquanto eu cuidava dela. Eu aprendi a não me importar com isso. Eu só toquei no meu copo quando o de Shizuka estava vazio. Como isso levou um tempo, minha bebida já estava quase fria, mas serviu para me aquecer mesmo um pouco. A moça pegou os copos e os levou até a cozinha, me deixando sozinho com as duas garotas novamente.

— Você é uma pessoa incrível.

— Hã? Eu? Ah, não, não mesmo...

Meu rosto corou. Em parte pelo elogio e em parte por que percebi que meu corpo estava grudado com o da garota de cabelos vermelhos debaixo daquela lona velha.

— Mas é verdade. O que você faz pela sua irmã, é...

— Eu faço o que qualquer irmão faria.

Eu segurei a mão de Shizuka, certo das minhas palavras. Somos irmãos. Não vejo a mínima possibilidade de eu abandonar ela dessa forma, de viver uma vida sozinho.

— Não, Makoto-kun. Você está errado. Você não é qualquer pessoa. Isso o que você faz por ela... Não é algo que qualquer um conseguiria fazer. Você é especial.

Especial, é...?

— Não sou eu quem sou especial. É ela. São os olhares, os sorrisos, os momentos com minha irmã que me fazem seguir em frente. Sem ela aqui eu não seria capaz de continuar vivendo.

Shizuka, pela primeira vez na última hora, me olhou com um brilho no olhar. A pele dela corou completamente. Acho que, embora talvez ela soubesse, eu nunca tinha dito tudo isso de forma tão clara para ela. Um sorriso envergonhado tomou conta do meu rosto.

— Não precisa fazer essa cara! Você já sabia disso tudo...

No meu braço esquerdo, eu senti alguma coisa. A garota de cabelos negros havia entrelaçado seus braços ali. Em seguida, senti a cabeça dela tocando meu ombro. Meu coração deu um pulo tão forte que senti como se ele quisesse fugir do meu peito.

— K-Kurou-san!?

Como sempre, quando eu a chamava dessa forma, ela não respondeu. Apenas continuou ali, deitada no ombro de alguém que não conheceu a muito tempo. Essa garota... Eu simplesmente não consigo ver através dela. Primeiro ela surge do nada, então me manda afastar dela... Agora ela me procura e até mesmo me elogia e me abraça desse jeito. Mas o que tem de errado com ela!? E o que tem de errado comigo..? Meu coração acelera tanto só de olhar para ela...      Uma pessoa que parecia tão forte, com tanta personalidade, e ao mesmo tempo tão delicada.

Por um único momento... Eu pensei que se dissesse alguma coisa, ela desabaria em lágrimas.

Tal era a fragilidade da garota deitada no meu ombro.

E tal era o mistério que a envolvia.


. . .


Um tempo se passou enquanto nós ficamos daquele jeito. A senhora se aproximou de nós com uma expressão gentil e nostálgica, como se a lembrássemos de alguns velhos tempos.

— Crianças, vocês devem estar desconfortáveis ai. Venham aqui para a sala.

Yami se levantou, e, logo em seguida, eu fiz o mesmo. A cadeira de Shizuka não passaria com facilidade sobre a elevação do piso, e provavelmente sujaria a casa. Eu carreguei minha irmã no colo, mais pesada do que eu estava acostumado, devido à quantidade de roupas. Eu a carreguei até um sofá próximo e, com cuidado, fiz com que ela sentasse. O frio já não me castigava tanto e nesse ponto pude aguentar ficar sem a coberta. Yami se sentou num sofá ao lado da senhora.

— Já faz um tempo que não recebemos visitas... Não esperávamos encontrar jovens como vocês desabrigados lá fora. Vocês estavam visitando alguém?

Eu entendi que ela se referia ao cemitério, visto que ficava tão próximo. Eu olhei para Yami e então confirmei com a cabeça.

— Sim, eu e minha irmã viemos visitar nossos pais... E ela veio visitar a mãe.

— Ah, então vocês perderam os pais de vocês...

Ela olhou para nós com o misto de pena e respeito com o qual eu havia aprendido a conviver.

— Eu nem imagino o quanto deve ter sido difícil para vocês. Felizmente eu já estava em idade avançada quando os meus deixaram este mundo. Não foi fácil deixá-los para trás, mas para crianças como vocês...

— Sim...

Eu tive que concordar que não foi nada fácil perdê-los ainda jovem. A mãe de Yami morreu naquele acidente também. Ela tem a mesma idade que eu, então acabou perdendo a mãe quando era muito pequena, assim como eu. Ela ainda tem o pai, mas aquele homem... Não me parece o tipo de homem com quem você pode contar.

— Sabem, meus filhos moram longe, então somos só eu e o velho Fuji.

A senhora continuou a história. Do corredor, pudemos escutar a voz do senhor.

— Quem você pensa que está chamando de velho?

— Ahaha, querido, não tente se enganar. A idade chegou para nós.

— Humpf.

O riso dela foi cheio de compaixão e compreensão. O velho estava claramente fingindo ser rabugento, mas a forma como ele andava mostrava que a idade não o incomodava tanto quanto poderia.

— As roupas de vocês já estão quase secas. Eu as coloquei num aquecedor, elas devem estar prontas logo.

— Obrigada por tudo. Vocês nos ajudaram muito.

Yami falou cordialmente mais uma vez, demonstrando claramente o tipo de educação que havia recebido. A velha abanou a mão como se ela não precisasse falar daquela forma.

— Não, não, não é nada. Afinal, vocês nos lembram nossas crianças. E também não poderíamos deixar a mocinha ali lá fora.

Ela olhou para Shizuka, que sorriu fracamente em resposta. Ela ainda estava abalada, e esse foi o melhor sorriso que ela conseguiu dar em resposta. Eu agradeci a experiência da mulher que não a permitiu perguntar nenhum momento sobre a condição da minha irmã. Era algo claramente complicado para se conversar, e a menos que a pessoa tocasse no assunto, a senhora não iria procurar saber mais sobre isso.

Acho que isso é um pouco da sabedoria das pessoas mais velhas...


. . .


Algum tempo depois, recebemos as roupas e nos trocamos. Elas estavam quentinhas, então tivemos que esperar alguns minutos para não sofremos um choque térmico quando enfrentássemos o frio do lado de fora. Quando saímos a neve ainda caía, mas muito lentamente para atrapalhar nossa movimentação. Tudo no céu indicava que ela pararia logo, também. Fizemos uma pequena reverência na saída, deixando para trás a visão sorridente da senhora que acenava para nós.

Para onde devíamos ir agora...

— Podemos ir para a sua casa?

Embora eu nunca tenha externado meu pensamento, a garota dos olhos vermelhos me olhou como se respondesse a minha pergunta. Eu fiquei boquiaberto sem saber o que dizer nos dois primeiros segundos, mas acho que uma resposta negativa seria como se eu a estivesse enxotando.

— Bom, s-sim... Eu acho.

Dito isso, nós caminhamos.


. . .


Ah, cara... Uma garota na minha casa.

Não que isso seja um acontecimento tão raro, afinal minha irmã mora lá e Nana vai visitar o tempo todo. Mas, de alguma forma, isso soa muito diferente... Tão diferente a ponto de me deixar sem jeito dentro da minha própria casa.

O silêncio reina. Nós três sentamos na sala. O único som audível era o do ponteiro do relógio se movendo. Eu juntei coragem dentro de mim. Se eu não disser alguma coisa agora, provavelmente vou explodir de tensão.

— Eu vou fazer um café!

Eu me levantei bruscamente. Que idiota. Mesmo com isso em mente, meu corpo continuou se movendo como um robô, completamente mecanizado. Minha irmã me olhou curiosa, provavelmente querendo saber quem eu era e o que tinha feito com seu irmão humano.


. . .


O barulho do vapor me acalmou. Já o cheiro não foi lá tão agradável.

Não posso me chamar de exímio cozinheiro, ainda mais quando se trata de algo que não tem com frequência nenhuma aqui em casa. Foi minha primeira tentativa de fazer um café. Eu arrisquei dar uma bebericada no líquido, só pra me arrepender um segundo depois. Horrível! Eu quis cuspir tudo, mas me forcei a engolir meu próprio feito. Eu não posso simplesmente voltar lá com as mãos vazias...

Nesse momento, minha única esperança é que a bebida que tivemos na casa do simpático casal tenha sido o bastante para satisfazer a garota dos olhos vermelhos.

Eu levei três xícaras do líquido terrivelmente preparado até a sala. Aparentemente Yami e Shizuka não conversaram sobre nada nesse meio tempo. Minha irmã estava parada do jeito que eu a deixei, com as mãos uma sobre a outra, em cima do seu colo. Yami estava numa posição parecida, mas as mãos cruzadas de forma muito mais elegante e com uma postura bem mais formal. Olhando-a dessa forma, ela parecia uma senhora de alguma família nobre. Na verdade, esse pensamento já me ocorreu outras vezes. Ela é uma mulher muito elegante.

Percebendo que eu já estava calado há tempo demais, as palavras saíram automaticamente dos meus lábios.

— Desculpe pela demora...

— Não foi nada.

O maldito silêncio de novo. Agora eu pude notar claramente o suor que escorria da minha testa e de outros cantos do meu rosto. Eu não consigo lembrar da última vez que me senti nervoso assim.

Meu coração quase saltou para fora do peito. Ela tocou a xícara. Não, ela fez mais do que isso. Ela até mesmo a ergueu. Até mesmo aproximou da boca. Ela vai beber? Não... Se ela beber isso, eu estou perdido.

— Makoto-kun.

— O quê? Ah, sim...

— Eu tenho que te pedir desculpas.

— ...

— Por estar te usando como mecanismo de escape...

— Yami-san, eu...

— E também por ter agido daquela forma das outras vezes que nos encontramos. A verdade é  que eu não queria que o que aconteceu com meu pai e você acontecesse. Até mesmo sua irmã foi envolvida.

Eu relembrei o incidente de mais cedo com um gosto amargo na boca. Aquele homem... Fazer minha irmã ver e ouvir aquelas coisas...

Eu nunca vou perdoa-lo.

— Minha família é uma família horrível para se envolver. Como consequência, eu sou alguém horrível para se envolver. Por isso...

— Você afasta as pessoas, não é?

Yami concordou silenciosamente com a cabeça. Eu nunca a havia visto com amigos ou algo do tipo. Sempre sozinha. Apenas ela e o seu violão, nas sombras do dia ou na escuridão da noite.

Prestando atenção, o que ela está fazendo com aquele copo na mão é olhar o seu próprio reflexo, borrado pelo líquido escuro.

— Mas o que mudou pra eu ter procurado você foi que eu queria atingir meu pai. Você sabe, por causa de tudo o que aconteceu... Você é alguém que só de estar por perto faz com que uma estaca atravesse seu coração. Talvez seja isso que eu queria que acontecesse...

Sim... Por ele achar que foram meus pais que mataram a esposa dele, o ódio dentro dele cresceu. Mas a Kurou na minha frente perdeu a mãe. Perdeu a mãe naquele acidente. Em outras palavras, ela deve guardar rancor sobre isso também...

— Ei, Yami-san. O que você acha?

— Sobre o quê?

 Sobre o acidente. Você acha que a culpa foi dos meus pais?

— Eu... Não sei...

Eu percebi ela vacilar. Percebi a dúvida, a incerteza, a insegurança no olhar dela. Percebi que no coração dela, havia uma pontada daquele talvez, que só talvez meus pais tenham realmente matado a mãe dela.

— O que você acha, Makoto-kun?

Dessa vez foi minha vez de vacilar. Mas apenas por um segundo. Esse único segundo de vacilo foi sucedido por um olhar determinado, uma onda de confiança que tomou conta de mim.

— Não foi culpa deles. Com certeza.

As duas garotas pareceram impressionadas não com o que eu havia dito, mas com a confiança com a qual eu disse aquilo. Eu sorri para as duas.

— Meus pais nunca seriam negligentes a ponto de arriscar a vida deles e a vida de outras pessoas. Eles tinham que chegar em casa logo, imagino que estavam com pressa, mas eles sabiam que, acima de tudo, tinham que chegar. Eles tinham alguém para proteger.

Eu me dei a liberdade de olhar na direção do quarto daqueles dois.

— Eles com certeza não foram os culpados.

Yami sorriu. Uma cena que eu não havia visto muito desde que a conheci.

— Se você consegue dizer isso com tanta convicção, então deve ser verdade. Você os conhecia melhor do que eu pra dizer algo.

A filha era muito mais sensata do que o pai. Eu sorri, em agradecimento.

— Sabe, Makoto-kun... Eu invejo você.

— Inveja?

— Sim. Afinal, você lidou muito melhor do que eu quando perdeu seus pais. Você deu um passo à frente da sua família e trouxe sua irmã pra perto de você... Tudo o que conseguimos foi nos afastar, mais e mais.

— Entendo... Embora eu não ache que isso seja motivo para inveja... Se você quer se aproximar de alguém, você só precisa se aproximar, não é? Funcionou bem quando você tentou comigo.

— Eu queria que fosse tão simples... Eu só me aproximei de você por que você quis. Lembra quando você tentou se aproximar de mim? Não acho que tenha dado muito certo.

— Hmm... Você acha?

Levei o indicador até a boca, e então sorri.

— Olhe só onde estamos agora.

Ela de repente se deu conta do fato de estarmos conversando, como se estivesse totalmente alheia a isso desde o início. Então ela sorriu, se dando meio por vencida.

— Sabe aquela outra garota?

Vasculhei a memória. Sem muito esforço, consegui lembrar da garota com aparência quase idêntica à daquela que falava, bem na minha frente. Irmãs gêmeas. Apesar disso, eu não acho que aquela outra garota frequente a nossa escola. As chances de eu nunca ter visto alguém totalmente igual à Yami eram praticamente nulas. Na verdade gêmeas tendem a ser assunto, não importa onde você vá. Seja por fetiches de garotos idiotas ou assuntos de moda das garotas. Enfim, onde quer que existam, elas vão chamar atenção. Pelo menos chamariam a minha.

Por isso minha convicção de que eu nunca estive no mesmo lugar que aquela garota antes.

— Sua irmã?

— Sim. O nome dela é Raben. Ela é minha irmã gêmea, mas você já deve ter percebido isso.

— Meio que não tem como não perceber.

Nós demos sorrisos bem humorados e ela continuou a falar.

— Antes da morte da minha mãe, éramos bem próximas. Na verdade pode-se dizer que éramos próximas justamente por causa da nossa mãe. Quando paro pra pensar, Keitarou sempre foi o filho favorito do nosso pai, e nós duas éramos as filhas favoritas da nossa mãe. Ela sempre nos dava atenção e nos fazia sair juntas. Nossa casa vivia o que parecia ser um apartheid de sexos. Apesar disso todos nos dávamos muito bem.

Fiquei calado, escutando. Tudo me indicava que aquela garota tinha uma dificuldade enorme em se abrir com os outros. Ela se sentir confortável assim para falar comigo, na verdade me deixava muito feliz. Eu também acabei ficando mais confortável. O nervosismo que me consumia instantes atrás agora era apenas uma lembrança ruim.

— Meu pai sempre foi muito rigoroso... Mesmo que agora ele seja muito mais do que era antes. Nossa família tem uma tradição centenária de campeões de Kendo. Ouvi dizer que meus avós até mesmo tinham um dojo. Meu pai chegou às semi finais das nacionais quando era jovem uma vez. É uma conquista e tanto. Meu irmão também segue esse caminho. Pelo que eu ouvi dizer ele é incrivelmente bom, alguns dizem que ele é um gênio. Ele nunca teve muito tempo para nós, mas era um irmão gentil.

Como de costume, imagens aleatórias se formaram na minha mente. Embora eu nunca fosse saber se estavam corretas, eu pude imaginar um garoto de cabelos negros que treinava todos os dias. Apesar disso, ele tinha o sorriso de um irmão carinhoso.

Um sorriso que era muito parecido com o meu.

— Na maior parte do tempo, éramos eu e Raben. Minha mãe adorava música, principalmente música clássica. Ela fez com que eu e Raben aprendêssemos violino e piano desde pequenas. Você deve ter ouvido ela tocando no dia que meu irmão me pegou.

Agora que penso nisso, ouvi uma bela melodia sendo tocada em um piano daquela vez. Eu não pude ver quem estava tocando, ou mesmo se era uma gravação. Agora eu sei que, naquele momento, era Raben que tocava.

— Naquela época, costumávamos tocar bastante juntas. Nossa mãe cantava muito bem. Nós éramos pequenas, então não conseguíamos tocar nada muito complicado, mas sempre saía algo muito bonito. Quando a mãe morreu, nós duas lidamos de um jeito diferente com isso... Eu quis me afastar o máximo de tudo que me lembrava ela. Simplesmente era doloroso demais. Já minha irmã continuou se aproximando o máximo que conseguiu da nossa mãe. Ao contrário de mim, que larguei o violino, ela continuou a praticar o piano mais e mais, quase religiosamente.

Dessa vez eu pude imaginar claramente as duas garotinhas e a mãe delas. Elas pareciam muito felizes. Mas, depois daquilo, o que pude ver foi uma imagem triste. Um violino quebrado, um piano frio, lágrimas. A imagem foi tão forte que até fez com que eu desviasse o olhar, me sentindo culpado por tê-la criado. Sem nem suspeitar do que se passava na minha mente, a garota continuou.

— Acho que ela dependia da atenção que nossa mãe dava a ela muito mais do que eu. Primeiro ela tentou buscar isso melhorando cada vez mais no piano, mas, claro, era apenas uma ilusão. Então, ela tentou buscar isso no meu pai, agora mais rigoroso do que nunca. As notas dela foram às alturas. Na verdade, tudo o que ela tocava parecia virar ouro. Isso foi até o ponto que meu pai a elogiou pela primeira vez, e então apenas foi continuando. Já eu, tinha nojo. Nojo de toda essa necessidade por atenção. Então eu comecei a me afastar, fugir, ter um desempenho medíocre na escola. Só para descobrir o quanto eu e minha irmã éramos iguais. Não só em aparência... Mas o nojo que eu sentia pela necessidade de atenção dela também deveria sentir por mim mesma. Era tão óbvio para qualquer um que observasse de fora, mas claro que minha negligência com tudo o que eu fazia era uma tentativa de chamar atenção que nunca deu certo. Mesmo agora, comigo aqui, falando com você, é isso que me move. Eu e minha necessidade ridícula por atenção.

Kurou Yami. Uma garota forte e confiante por fora, mas uma pessoa normal, cheia de dúvidas, inseguranças e características das quais não gosta. Uma pessoa com uma história cheia de momentos tristes e felizes. Uma pessoa que eu achava que era inalcançável, na verdade tão humana quanto eu. Uma pessoa muito mais próxima de mim do que eu imaginava.

— Sabe, Yami-san, talvez... Só talvez, não pode ser um pouco mais do que isso? Quero dizer, estamos aqui, conversando sobre todas essas coisas... Acho que podemos dizer que somos amigos, não é? Não sei se posso te ajudar tanto quanto gostaria, mas vou estar aqui sempre que precisar conversar.

Yami abriu a boca para dizer algo, mas não conseguiu. Ela apenas ficou me olhando, e então sorriu. Do fundo da sala, eu pude ver dois olhos azuis me observando. Shizuka me olhava com os olhos relaxados, como se estivesse muito feliz por mim.


. . .


— Você não precisava me trazer até em casa.

— Não se preocupe. Não vai acontecer nada comigo.

Eu acho.

Nós paramos de frente para o grande por tão. Para nossa surpresa, ele estava semi aberto. Do lado de dentro, podíamos ver a figura de um homem de vestes pretas, que observava o breu da rua mal iluminada.

Aquele homem.

— Você tem coragem de voltar aqui, Alkaev.

— Desculpe, Kurou. Mas os Alkaev cuidam de verdade das pessoas. Mesmo não sendo nossas parentes, nós cuidamos que elas chegam com segurança em casa. Não abandonamos ninguém em plena escuridão.

Eu falei com segurança na voz e no olhar. O homem não se abalou, mas pude ver o ar de superioridade que cercava a imagem dele na minha cabeça se dissipando, aos poucos. Yami deu um passo para frente e olhou nos olhos do pai.

— Eu estou em casa, pai. Pode entrar agora.

O homem olhou para a garota e depois para mim, se virando e entrando em casa. Esperando assim, na noite... Ele estava preocupado com ela?

Provavelmente era mais por minha causa do que pelo fato de ela estar sozinha de noite. Das outras vezes, ele não parecia fazer aquilo. Daquela vez, era o fato de um Alkaev estar com ela. De um membro de sua família não voltar para casa novamente por causa de alguém da minha família.

Um pai rigoroso e frio. Um homem nojento e sombrio.

Mesmo alguém tão odiável era capaz de se preocupar.

Eu ia me virar para Yami para dizer algo. Iria dizer que talvez ela ainda pudesse se aproximar da família. Ia dizer que os finos e sensíveis laços de amor que ainda rondavam aquela família separada ainda poderiam se firmar novamente. Ia dizer que, apesar de tudo, aquele homem ainda se preocupava.

Mas algo me calou. Algo que eu nunca esqueceria.

A sensação macia e quente. A delicada respiração sobre o meu rosto. Um bater de um coração que, apesar do semblante calmo de sua dona, se mostrava muito aditado. A sensação molhada dos nossos lábios se tocando.

Meus olhos não resistiram, e começaram a se fechar, como se estivessem enfeitiçados.

Kurou Yami.

Apenas essas palavras ecoavam suavemente pela minha mente.

Ali, no meio da noite, de repente e de olhos fechados. Aquele foi meu primeiro beijo.


. . .

— Então, é isso. Alguma dúvida?

Todos balançaram a cabeça negativamente, como num ensaio. Yuragi bateu contra sua mão livre com uma vareta que usou para as explicações.

— Ótimo. Então, mãos à obra!

Eu me levantei, olhando para os outros. Ah, eu acabei voando e relembrando a noite passada. Meu coração ainda estava disparado. Apenas de estar na mesma sala do que ela. Eu já tenho dezessete anos, não achei que algo assim seria capaz de me deixar tão nervoso.

Como se adivinhasse meus pensamentos, ela olhou para mim. Eu engoli a seco, e li os lábios que se moviam silenciosamente.

'Você ouviu o que ela falou?'

Então, a revelação. Ela parecia não ter prestado atenção, assim como eu.

É, pelo visto vamos ter que pedir algumas informações.

Algo dentro de mim foi mais forte do que eu não pude evitar sorrir.

Ali, depois da aula, sorrindo e de olhos fechados.

Ali, me dei conta de que estava completamente apaixonado.

. . .

Chiharu - 15

De olhos fechados.

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