A Valquíria Zero - Capítulo VII: A Imortalidade Mortal



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Capítulo vii


I


Um ar gélido enchia o ambiente, e fazia com que Zero tremesse dos pés à cabeça. Correntes prendiam suas mãos e pés, deixando-a imóvel. Estava em uma cela aparentemente.

O gelo cobria tudo o que era visível. Talvez, o mais correto fosse dizer que tudo ali era feito de gelo, exatamente como o esperado em Niflheim.

Zero procurava alguma forma de se soltar. Seu corpo e mente ainda não estavam em sincronia perfeita, o que dificultava até mesmo o simples ato de pensar. Uma leve brisa atravessava a pequena fenda na parede à sua esquerda. Aparentemente aquela seria a sua saída.

Entretanto, a valquíria estranhara o fato de estar sendo afetada de forma tão violenta por um simples tranquilizante. O que estava acontecendo? Fora o efeito de Urzustand? Não sabia, e não pretendia descobrir naquele momento.

Tentou proferir um simples feitiço de fogo, entretanto, as palavras não saíam. Estava presa ali. O silêncio brigava com o ar gélido para ver quem derrotaria a valquíria, enquanto o tempo passava...



II


A noite havia caído, e já não era possível enxergar mais nada. Zero permanecia acorrentada, muda, e com seus pensamentos confusos como se tivessem sido jogados num tornado.

Como pude baixar minha guarda daquela forma? Pensava. Odiava pensar que cometeu um erro tão tolo. Sempre foi uma ótima analista. Todas as situações em batalhas eram analisadas por ela antes mesmo que elas acontecessem, até mesmo antes da batalha começar.

Mas dessa vez não funcionou.

Alguma coisa estava acontecendo com ela. Estava ficando cansada, lenta, com seus reflexos igualmente defasados. Esse era o preço da liberdade? Como tudo no universo, nada era de graça, muito menos presentes dos deuses. Odin lhe concedeu a liberdade, mas lhe retirou algo.

Pensava, e pensava, até que em determinado momento, pôde ouvir passos, aparentemente várias pessoas se aproximavam. Em seguida, o som cessou, e sentiu um toque gelado no seu rosto.

–– Como está minha querida valquíria? Vejo que um pouco calada. –– Skadi dissera, acariciando o rosto da valquíria. Passou a rodeá-la, fazendo movimentos circulares com o braço. –– Me pergunto para onde foi toda aquela coragem e determinação de antes...

Zero tentava acompanhar a voz, que às vezes vacilava aos seus ouvidos. Não sabia se de fato, Skadi estava a rodeando, ou se estava se afastando. Pouco importava, sabia que precisava arranjar uma forma de sair dali, rápida e efetiva.

–– Não se preocupe, não ficarás aqui por muito tempo. –– Fazendo um gesto com a mão direita, Skadi abriu um portal. Uma forma ovalada de cor azulada brilhava bem na frente da valquíria, um brilho intenso suficiente para cegá-la temporariamente. –– Esse portal leva direto para Helheim.

A valquíria tentou se forçar ao máximo para falar, até que no fim, conseguiu se manifestar.

–– Feurkugel... –– uma bola de fogo se formou da mão esquerda da valquíria, fazendo um enorme buraco na parede ao lado. Como imaginava, aquela parede dava para fora, era de fato uma rota de fuga. Porém, isso não mudava o fato de que ela continuava presa.

–– Ooh... que surpresa. –– Skadi riu. –– Quer dizer que ainda têm forças! Realmente, você é poderosa, não me admira Odin ter-lhe dado a liberdade.

–– Me poupe... –– murmurou. Sua voz fraca. –– Por que me prendes, e depois joga na minha cara o meu objetivo? O que queres afinal?

Uma voz diferente chegou aos ouvidos da valquíria.

––Sua prisioneira é insolente demais, Skadi. Como deixas que ela destrua sua própria casa dessa forma? –– uma mulher de cabelos púrpuros amarrados num coque apareceu ao lado de Skadi. Trajava um vestido quase transparente azul, com uma linha dupla bordada na cintura. Seus olhos amarelos fitavam a valquíria.

–– Devo concordar com Sukira, temos que julgá-la com as leis rígidas de Niflheim. –– mais outra mulher aparecera. Cabelos brancos, que arrastavam no chão. Trajava um vestido verde brilhante, com um generoso decote. Seus volumosos seios quase saltavam para fora. Aquela mulher era a rainha do reino sul de Niflheim: Süf.

As três rainhas de Niflheim estavam presentes naquele local. Uma surpresa intrigante, jamais imaginou que as três deusas tornariam a se reunir novamente. Desde a última guerra contra Muspelheim, as rainhas do mundo congelado mantiveram-se isoladas em seus determinados reinos devido a divergências de opiniões.

Durante a batalha contra Surt, o deus do fogo, rei de Muspelheim, Sukira indicou que Skadi esperasse o momento adequado para atacar a tropa de demônios flamejantes. Já Süf, ordenava a retirada de todas as tropas de Niflheim do campo de batalha. Sem entrar em acordo algum, Süf retirou as suas tropas, Sukira esperou, e Skadi avançou, sozinha.

Surt dizimou a tropa de Skadi, implantando a raiva no coração frio da deusa do inverno. Sukira fugiu assim que viu a derrota de sua irmã, e no naquele mesmo momento, Süf já nem se encontrava no reino do fogo.

A batalha do Gelo e Fogo teve as chamas de Surt como vitoriosas. As três irmãs permaneceram em seus reinos por séculos, sem contato com qualquer outro mundo, nem entre seus próprios reinos, pelo menos foi assim até hoje.

Süf encarava Zero. Um olhar desconfiado, como se estivesse pressentindo que algo ruim fosse acontecer. Mesmo preocupada, manteve-se em silêncio.

–– Odin já a julgou. –– Skadi olhou para a valquíria e sorriu maliciosamente. –– Não é verdade, Zero?

Zero permaneceu em silêncio. Agora enxergava Skadi, já que o buraco na parede clareava o lugar com a luz da lua. Seus olhos azuis cintilavam de forma surpreendente, enquanto seus cabelos flutuavam no ar.

–– Algum dos meus lobos comeu sua língua, valquíria? Ou está com receio de revelar que Odin lhe retirou sua imortalidade?

Ambas as irmãs de Skadi entreolharem-se, surpresas. Aquilo era algo extremamente interessante, e inédito. Era algo exclusivo para Zero também. Sabia que algo não estava certo, e talvez fosse exatamente isso que faltava: sua imortalidade, aquilo lhe dava resistência ilimitada e capacidades sobre-humanas.

–– Então esse foi o preço da liberdade, valquíria?

Era exatamente como Skadi dissera. Todas as valquírias são parte da alma do deus todo poderoso, Odin. Ao adquirir a liberdade, Zero se desvencilhou da alma do pai de todos, perdendo assim, sua imortalidade no processo. Agora, a valquíria era uma mortal, embora ainda tivesse seus poderes mágicos intactos graças ao Coração do Caos.

–– Agora faz sentido ela ter demorado tanto para se recuperar da flecha envenenada. Seu corpo já não reage da mesma forma. –– Süf comentou, feliz com sua conclusão.

–– Sim, obrigada por perceber isso. Nunca teria imaginado... –– Sukira disse, revirando os olhos.

–– Não tem nada a dizer, Zero? Continuará bancando a menina silenciosa? –– Skadi aproximou-se novamente, acariciando mais uma vez o rosto da valquíria.

–– O quer que eu diga, Skadi? Estou diante das rainhas de Niflheim. Creio que não tenho experiência em termos de realeza. –– sorriu.

–– Mal consegue se mexer, mas ainda consegue ficar de brincadeirinhas. Intrigante. –– levantou a mão, prestes a dar um tapa. Parou. –– Não, faremos diferente.

Skadi pousou sua mão direita no peito da valquíria, que estremeceu por um momento. Seu peito começou a brilhar. Era o Coração do Caos.

–– O que será que acontecerá se alguma coisa perfurar esse lindo coração? –– Skadi questionava. –– O Caos se espalhará pelo cosmo novamente? Você morrerá, ou se transformará em caos?

–– Até gostaria de esperar para descobrir, mas tenho assuntos importantes para tratar em outro lugar. –– Sorriu. Um sorriso maligno, transbordando ódio, que ela vestia com todas as suas forças. O preludio da destruição iminente.

 Subitamente, o braço esquerdo da valquíria estava livre, voando na direção do rosto de Skadi. O soco foi certeiro, fazendo com que a deusa do inverno cambaleasse para trás. Sukira e Süf ficaram perplexas com que acontecia, permanecendo no mesmo lugar.

Enquanto Skadi cambaleava, Zero tentava se desvencilhar da corrente que prendia seu outro braço. 
Puxou com força o suficiente para que a corrente se soltasse da parede.

Num movimento rápido, Skadi puxou uma adaga do seu cinto, e avançou, mirando no coração da valquíria. A guerreira de cabelos loiros jogou o corpo para o lado, desviando da lâmina. Utilizando-se do ímpeto que aquele movimento causou na rainha de Niflheim, Zero arremessa e enrola a corrente recém solta no pulso de Skadi, e então soca seu cotovelo, quebrando o braço da deusa, que grita de dor. Ela solta a adaga. A valquíria segura a lâmina no ar, puxa Skadi para si, e perfura seu pescoço.

Sangue jorra de forma descontrolada à medida que a deusa do inverno agoniza. Ao perceber o que havia acontecido, Sukira e Süf hesitam.  

–– Cansei de suas filosofias, Skadi. –– olhou para as outras duas. –– O que adianta ser imortal, se só podemos vencer a barreira do tempo e nada mais? Somos tão mortais quanto um simples humano! Basta uma lâmina na garganta para que nossos corpos caiam no chão como bonecos! –– Arremessou a adaga por entre as duas deusas.

Zero empurra o corpo inerte de Skadi na direção das rainhas, que apenas olham como se fossem estátuas. O medo as havia dominado, ou fosse apenas o bom senso.

–– Olhem bem para o que a imortalidade que vocês tanto adoram fez! –– esbravejava. –– Olhem bem!

Uma nevasca severa castigava as planícies e montanhas de Niflheim, enquanto a tensão aumentava no pequeno cômodo.

–– O que fará agora? –– Sukira pergunta com uma voz trêmula. Tentava esconder seu nervosismo. Em vão. –– Vai mostrar mais uma vez que nossa imortalidade não pode te parar? Vai nos matar também?

Ignorando as perguntas de Sukira, a valquíria avançou em direção ao portal que havia sido aberto anteriormente. Já estava cansada daquele lugar, e principalmente daquele frio brutal.

–– Está esquecendo de uma coisinha, valquíria do infinito... –– Zero olhou para trás. Era Süf, segurando Dainsleif.

–– O que diabos você está fazendo? Entregando armas para um inimigo?!

Sukira reclamava, tentando arrancar a espada das mãos de sua irmã. Zero apenas apontou a mão em direção a espada, que veio até ela como se estivesse sendo puxada por um fio invisível.

–– Estou garantindo que ela nunca mais volte para cá, ou você gostaria que ela voltasse furiosa atrás de sua espada?! ––- riu.

–– Isso não é horas de piadinhas! Maldição, deixa que eu acabo com essa maldita!

Antes mesmo de Sukira avançar, Zero olhou fixamente para dentro dos olhos dourados da deusa, e então meneou a cabeça. Aquele sinal foi o suficiente para que ela entendesse que aquilo era inútil.
E aquele foi o sinal que ficou implantado no coração de Niflheim até o fim dos tempos.



III



Água.

Não, era sangue.

Maldita Skadi. Pensou Zero. O portal havia a transportado para o centro de Meer des Todes, o mar sangrento de Helheim. Almas flutuavam no mar, como se fossem peixes.

Eram almas atormentadas pelo sofrimento de uma vida sem esperanças, num universo jogado no mais sublime caos e desordem. Almas que esperavam por um salvador, que esperavam pelo Ragnarök; por sua liberdade.

Nadou depressa para a praia. Estava pesada, sua armadura estava completamente cheia de “água”. Olhou em volta, e não via nada além de ossos, cadáveres e árvores mortas. O céu vermelho era tomado por diversas nuvens negras. Relâmpagos caíam constantemente, como uma tempestade infinita de eletricidade.

Ao perceber que estava sozinha, decidiu retirar suas roupas. Precisava secá-las, ou ela perderia e muito a sua capacidade de movimento. Retirou primeiro as peças dos ombros e braços. Seguiu para o peitoral, e por fim toda a parte de baixo da armadura. Amarrou seus cabelos dourados.

Agora vestia apenas uma simples camiseta de tecido fino, com ataduras por baixo, pressionando seus seios. Utilizava também um shorts do mesmo tecido da camiseta.

Sentia um vento gelado tocar sua pele. Estremeceu por um segundo. Deitou, e dormiu.



IV


A fogueira estalava na frente de Tqir. Seus olhos iluminados pelas chamas, que esquentavam seu corpo, olhava fixamente para os dragões que sobrevoavam o castelo de Hel.

–– Um dia vou voar num desses filhos da puta. –– pensava em voz alta.

Aquele era um sonho que sempre teve, desde a época em que seu mestre contava-lhe histórias para dormir. Nunca se interessou por gigantes, draugr, ou por qualquer que fossem as histórias mirabolantes que lhe contavam.

Os dragões eram os que chamavam a atenção.

Lembrou-se da história de Nidhogg, o terrível dragão comedor de cadáveres. Nidhogg vive em Naströnd, um local em Helheim onde as almas mais repugnantes – pessoas que cometeram assassinatos, adultério, ou que quebraram um pacto – vivem.

Todas as noites, Nidhogg aparece para comer todas as pessoas acumuladas em Naströnd. Durante o 
dia, enquanto espera sua refeição, o dragão passa o tempo comendo as raízes da árvore da vida Yggdrasil. Segundo as lendas, o seu objetivo é derrubar a árvore, e assim destruir os Nove Mundos que a mesma sustenta, e assim, trazer o caos de volta ao cosmo.

Todas histórias para dormir pensou.

–– Você podia ter escolhido um lugar mais confortável para nos encontrarmos...

Um homem careca aparecera atrás de Tqir. Trajava um gibão roxo, sem nenhum detalhe, botas e luvas de couro. Carregava uma espada tão grande que cobria suas costas.

–– Hel não deixou usar seu castelo, foi mal... –– foi até o homem e o cumprimentou. –– Há quanto tempo, Siegfried!

–– Cinco bons longos anos, Tqir. Pensei que estivesse morto, mas aí recebi a sua carta e... bem. Fiquei interessado. –– sorriu.

–– Ficou interessado em morrer? –– indagou. –– Sabe, essa mulher não é brincadeira, Sieg. Ela é a portadora do Coração.

–– E eu sou o usuário da Gram, a espada criada para cortar o Caos! Vou perfurar aquele coração e pronto. Problema resolvido.

–– Como eu gostaria que fosse tão simples...

–– Você que gosta de complicar as coisas. Pensa demais e age de menos. Se você tivesse um pouco mais de atitude, estaria voando num dragão daquele ali, por exemplo. –– apontou para os dragões de Hel.

–– Não haja como se não tivéssemos limites, Sieg. Lembre-se que no fim, somos apenas humanos com armas superpoderosas, só isso. Nunca subi num dragão pelo simples fato de não ter poder suficiente para tal façanha.

–– Você tem é medo, isso sim... –– Siegfried disse. Sentou em frente a fogueira, retirou as luvas e começou a esquentar as mãos. –– Você citou na carta que Shannis está vindo também.

–– Eu disse que iria convocá-lo. Ele aparecer já é outra história.

–– Acha que ele vai aparecer? Porque na minha opinião, ele encontrou uma vadia perdida na estrada principal e.... Você entendeu.

–– Sim, eu entendi. Só resta esperar que ele apareça, se não teremos que fazer o trabalho sozinhos. –– concluiu, cruzando os braços.

–– Não é como se fosse nossa primeira vez, não é? –– deu de ombros. –– E então, vai me contar um pouco sobre o nosso alvo? Ouvi apenas histórias, nada mais. E você sabe que não acredito em histórias.

–– Nessas histórias, você pode acreditar. Qualquer uma, por mais absurda que seja, mas que ela esteja envolvida, pode acreditar que é real.

–– Pare de brincadeiras, Tqir. Vai me dizer que a história de que ela dizimou uma horda de draugr em uma ruína em Alfheim, enquanto elfos atiravam flechas, e dragões cuspiam fogo sobre ela é verdade? Me poupe! Nem mesmo Odin faria isso.

Um silêncio caiu sobre o ambiente. Siegfried encarou Tqir, que balançou a cabeça positivamente.

–– Não acredito. Simples assim. –– cruzou os braços.

–– Não precisa. Você verá o que ela pode fazer em breve.

–– Algum plano para enfrentá-la? Poções, bombas, ou algo do gênero? Preciso de detalhes, Tqir.

–– Bem...

Os dois espadachins passaram o resto da noite bebendo e brincando.

O plano?

“A gente dá um jeito na hora” –– Siegfried.







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