Chryskylodon - Episódio 1: Cavalo. Proibido. Sangue. Problema.


Fala, galera! Venho até você trazer mais um capítulo de Chryskylodon! (Alguém já decorou o nome disso? :p ) 

Boa leitura a todos!





Chryskylodon


Episódio 1: Cavalo. Proibido. Sangue. Problema.

Eu tenho o maior medo desse negócio de ser normal
John Lennon
–– Ayyyy, CARAMBA!!!

Guarapila gritava (como sempre) enquanto cavalgava Morcego, o cavalo de Merila, ao som de “La Bamba”, pelos amplos salões do hospício de Chryskylodon. Quando passou empinando o equino pelo Capitão Quark roubou sua preciosa e inseparável espada, de supetão, brandindo-a no ar e preenchendo-se ainda mais de alegria naquela zoeira infantil, inacabável, mas revigorante. O Capitão, arregalado, pôs-se a perseguir a menina numa corrida-marcha engraçada e desengonçada.

–– Volte já aqui com minha Amélia, Guarapila! Volte já ou você verá o que minha brilhosa é capaz de picotar!

Don Torino, recém-chegado naquele lugar, que supostamente deveria ser de recuperação (além de reclusão, é claro), percebeu que havia pessoas mais insanas do que ele neste planeta oval.

–– Ela é sempre assim? – perguntou para Isaka, a guia do hospício.

––Ah. Você não viu nada...

Don olhou ao redor para identificar mais anormalidades. Viu dois homens jogando xadrez no chão (normal), uma mulher fazendo barra (normal), pessoas jogando bocha com ovos (estranho), uma velhinha dançando com um canguru de saia (bizarro). “Bamba, bamba...”. Teve uma emoção estranha, um sentimento de adversidade, mas ao mesmo tempo de alívio. Logo este sentimento se transformaria em satisfação com um toque de pertencimento.

–– Segundo o que Merila me disse, acho que você vai se adaptar bem aqui. – consolou Isaka com um sorriso, dando um tapinha no ombro dele – Ou então você será repreendido e oprimido neste inferno terrível, onde iremos esfaqueá-lo e sugar seu sangue para fazer sopa aos cães, aqui onde terá sua alma consumida pelas trevas da loucura, caindo no eterno abismo da escuridão de onde haverá... – e de repente parou.

Torino franziu a sobrancelha e pensou: “Nossa. Bem me avisaram que ela era bipolar”.

–– Desculpa – ela deu um risinho – é que eu me empolgo às vezes.

––Wooooah! Hip cavalinho! – Guarapila retornou ao salão de entrada pelo outro lado. Morcego carregava a espada Amélia na boca – No voa agora! No! No!

-–- Guarapa!

A música parou. E silêncio. A voz que surgira vibrante pareceu preencher todo o espaço. Ecoando no teto e rebatendo nos ouvidos de todos (todos aqueles que ouviam, é claro). O salão inteiro virou-se em direção à figura que gritara o nome da menina como um imperativo categórico. Rostos virados para o alto, para a escada principal que levava ao segundo andar, de onde descia firmemente a presença daquela que todos conheciam por ali.

–– Senhorita Guarapila.

Desta vez pronunciando calmamente, os olhos de Merila penetravam os da garota, que, aturdida, cessara o sorriso e parecera ter se tornado estátua. A crina do cavalo, que era branca, se tornara vermelha.

–– A senhorita sabe muuuito bem que, segundo as regras de comportamento deste centro, em hipótese alguma é permitido andar em animais, sejam estes de qualquer porte. Muito menos um animal deste tamanho. E, além disso, também é proibido roubar – e fez questão de apresentar o verbo claramente – os animais e/ou qualquer outro objeto ou material ou parte do corpo dos residentes, senhorita, salvo quando com consentimento da vítima ou em outras exceções.

A garotinha desceu do cavalo boquiaberta. Tremendo os lábios de quase chorar repetia num murmúrio:

–– Diculpa, diculpa...

Alguns que assistiam à cena soltaram um “ooown”, outros simplesmente um “coitadinha”. Já certos outros foram diretos com seus “bem feito”. Don Torino manteve-se calado. Nem conhecia a menina para demonstrar qualquer emoção sólida. No entanto ele era assim mesmo: retido, reticente e insensível demais em dados momentos. Voltou seu olhar para aquela mulher de cabelos e pele negros.

–– Entendido, Guarapila?

–– Sim.

–– Hm. Muito bem. Espero que esta seja a última vez que eu precise advertê-la, mocinha. Seus casos neste centro são constantes e memoráveis. Estão chegando no nível dos de Hatari. Infelizmente caso continue desta maneira você bem sabe o que poderá ou melhor: deverá ser feito.

–– Ah. Acho que a Merila tá exagerando – confidenciou Isaka de sussurro com Torino – Hatari era demais. Botou fogo duas vezes aqui, com um lança chamas que comprou dessas pragas de vendedores ambulantes que aparecem por aí, mas que agora a gente insiste em enxotar antes que ofereçam qualquer besteira. Na primeira vez foi na cozinha, queimou duas pessoas e o Bob, uma ratazana rosa de estimação da Merila. Naquele tempo ela só era assistente de administração daqui (ela tem uma mania por animais de estimação) e o diretor era bem dócil – ela falava se movimentando – por isso a punição pro Hatari foi só uma semana na solitária. Se fosse Merila já teria o mandado pro “andar de baixo” só por ter comprado um lança-chamas. Da segunda vez o incêndio foi geral. Daí o diretor teve que tomar providências mais sérias... – a crina de Morcego agora estava amarela - Olha só! Tá vendo a crina do Morcego, como mudou de cor? Viu? – Don Torino meneou a cabeça em afirmação – A cor reflete o humor da dona, a Merila.

–– Hm... E amarelo significa “saia daqui antes que eu te mate”?

–– Não. Significa tranquilidade (com decepção). Tranquilidade, sem decepção, é branco. – Isaka o cutucou - Você tem que ver. Tem cada cor: roxo, púrpura Belzebu, vermelho satânico, negro desastre, carmesim sangue arterial... Ai. De novo. – ela retornou a si – Desculpa.

O pessoal tentava voltar à normalidade vagarosamente. O olhar de Don fixava-se em Merila, que agora estava vindo em sua direção enquanto anotava algo nos papéis da prancheta que carregava. E, quanto mais próxima dele, Don acelerava-se, mesmo inerte. Parecia que ela crescia a cada passo. Quando parou diante de si, Don Torino pôde notar que ela era mais alta que ele, tendo mais que seus 1,81m.

–– Olá. Você deve ser Don Torino – ele balançou a cabeça – Don é o nome mesmo ou só um apelido, abreviatura? Porque de acordo com os registr...

–– É o nome mesmo – Don precipitou-se.

Uns segundos de silêncio e ela voltou:

–– Okay... Eu já recebi toda a sua documentação da Estação, identificação, registros médicos, acadêmicos, profissionais... então creio não ser necessário mais nenhum procedimento burocrático. Apenas preciso da sua assinatura nesta ficha.

Ela apresentou-lhe a ficha e lhe entregou a pena para assinar.

–– Hm... Vocês ainda usam pena por aqui, que chique. Mas... cadê a tinta?

–– É com sangue – Merila rebateu.

–– É com o quê?

E antes mesmo de ele ter acabado de perguntar, Merila espetou seu dedo com a ponta da pena, de onde imediatamente surgiu uma pequena bolha de sangue. Surpreso com o gesto, Don mirou seu dedo sangrando. Então olhou-a, incrédulo. “Eles gostam de sangue por aqui, pelo jeito...”, pensou.

–– Assine.

E, hesitante, assinou.

–– Creio que você já tenha lido as regras do nosso Centro. Portanto deve saber o que é ou não permitido, tão como quais são as consequências e punições para comportamentos inadequados. Segundo o seu histórico você se encaixará bem aos perfis de algumas atividades que a Isaka ou o nosso psicólogo lhe apresentarão, além de se familiarizar bem com alguns dos nossos residentes. A Isaka estará tirando suas dúvidas por enquanto. Seja bem-vindo e divirta-se.

–– E isso aqui – apontou seu dedo sangrando – tem algum...?

–– É normal – Merila o interrompeu – deve parar o sangramento entre três e cinco minutos. 

Caso contrário você tem algum problema. Mas acho que você não tem nenhum problema. Pelo menos não quanto a isso.

–– É. Acho.

A música voltou a tocar. “Ay arriba y arriba...”


E observando a velhinha com o canguru, um homem tentando abraçar a parede e a bocha com ovos, Don ficou feliz por não ter nenhum problema. (ou quase)

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