Chiharu - Capítulo 12



"Era uma vez, um garoto chamado Makoto."


Chiharu


Capítulo 12


. . .


O ar frio que inundava meus pulmões a cada vez que eu lutava para me abastecer de ar começava a deixar todo meu corpo dolorido por dentro.

Já estamos correndo há vários minutos. Quando eu pensei que continuaríamos assim até a saída da cidade, a mão de Akakyo conseguiu segurar o braço de Yuragi e fez com que ela parasse. Talvez sucumbindo ao cansaço, físico ou emocional, a garota caiu de joelhos ao chão. Cinco segundos depois, eu os alcancei e parei com as mãos sobre as pernas, para retomar o fôlego.

Não dissemos nada. Mesmo que tentássemos, perderíamos a fala no mesmo segundo devido ao esforço. Então, continuamos ali, calados, pelo menos por mais meio minuto. Nesse tempo, eu e Akakyo trocamos olhares. Era como se ele dissesse 'sinto muito por tudo'. Eu não me importei. Não se preocupe comigo, seu idiota. Foi o que meu olhar devolveu para ele. Eu me voltei para a ruiva ajoelhada na calçada pintada de branco. As lágrimas que escorriam por todo o seu rosto deveriam estar deixando-o frio...

Provavelmente notando isso, Akakyo tirou seu casaco e colocou sobre o corpo da irmã. Ela não disse nada, apenas pegou o objeto e o apertou contra si, como se usasse um manto sagrado.

Ei...

Yuragi abriu a boca para falar algo, mas calou-se logo em seguida, sentindo um gosto ruim na boca. Então ela olhou para nós dois. Não, ela olhou diretamente para mim.

Makoto, como é ter pais?

Eh?

Eu não sou a melhor pessoa para você perguntar isso. Meus pais morreram, lembra? Era o que eu queria dizer para ela. Mas decidi apenas ficar com aquela reação idiota e monossilábica.

Eu sei que você não os tem mais... Mas você passou um tempo com eles, não foi? Vocês foram felizes, não foi? Então, me diga... Como são pais de verdade? Eu... Nós... Nunca soubemos o que isso significa.

Eu...

Eu não sei o que dizer. Realmente, eu não sei... Procurando por refúgio, eu olhei para o Nekogami ao meu lado, mas ele havia virado o semblante pro infinito do mar. As palavras haviam penetrado bem fundo nele também. Sim... Apesar de ser a garota que está ajoelhada na neve, tudo que ela dizia valia na mesma moeda para aquele que aparentava ser forte, ali, de pé.

É engraçado, não é?

A voz feminina vinda de baixo voltou a falar, então eu olhei para ela.

Eles não podiam ter encontrado outras pessoas para ficar? Quer dizer, com seu próprio irmão... Isso é tão ridículo! Eu sei que se eles tivessem encontrado outras pessoas, isso significaria que não teríamos nascido... Mas seria pro melhor, não é? Nossa família poderia ter sido mais feliz, não é? Por que temos que sofrer só por que aqueles dois são estranhos!? Não é justo!

Eu não sei o que esses dois passaram. Eu perdi meus pais cedo, mas eles nunca os tiveram. Eles nunca os tiveram podendo tê-los, se ambas as partes se esforçassem um pouco, mas não aconteceu. Mas se tem algo que eu sei...

Não acho que você deva culpa-los por isso.

Como não? É tudo culpa deles, não é!? Você concorda comigo, não é, Akakyo!?

Akakyo olhou para mim com um olhar pontiagudo. Sim, ele concordava com ela. E aquele olhar era exatamente para saber de que lado eu ficaria. Mas se eu quiser fazê-los sair dessa situação... Se eu quiser ajuda-los, fazer alguma coisa... Eu não posso escolher um lado. Eu preciso fazer vê-los a situação com outros olhos, ou tudo vai continuar desse jeito. Eles não querem isso, eles vão sofrer. Eu não quero isso. Eles são meus amigos.

Eu vou protege-los.

Acho que você não pode culpar alguém pela pessoa que ela ama. Não que eu concorde, ou algo do tipo... Como vocês, acho estranho. Eu tenho uma irmã também. Mesmo que ela fosse cem por cento saudável, eu não poderia me sentir atraído por ela. Afinal, ela é minha irmã, não é? Mas nem todos pensam assim. O mundo está cheio de pessoas diferentes, misteriosas... Mas não acho que você deva culpa-las desse jeito.

Mesmo quando se está prejudicando as outras pessoas?

Eu olhei para baixo, sem conseguir bolar uma resposta adequada. Quando se prejudica outras pessoas, acho que não se pode chamar algo exatamente de algo bom, ou justo. Ainda acho que não estou errado, mas não consegui colocar em palavras um jeito de me expressar. Akakyo me tocou o ombro e me despertou do transe pensativo em que eu entrei.

Você está certo, no fim das contas.

O que? Como pode concordar com isso?

Yuragi ficou claramente brava com seu irmão. O que eu menos quero agora, é que esses dois criem desavenças, também... Kyo, cuidado...

No fundo você sabe, onee-san. Que somos tão culpados quanto eles.

As palavras de Akakyo... Eu consegui ver o tio dele dizendo aquilo. Bom, isso por que, na verdade, foi exatamente o que ele disse. Então ele finalmente reconheceu...

Nossa própria família nos separa... E nenhum de nós é forte o bastante para ir contra isso. Sim, é isso mesmo... Nem aqueles dois, nem nós, nem um único Nekogami. Somos uma família de covardes. Eles até mesmo querem nos separar, e o que nós fazemos? Aceitamos de bom grado!? Que piada!

Akakyo aumentou bastante seu tom de voz, até gritar as últimas palavras pro alto. Yuragi havia parado de chorar, e apenas olhava seu irmão explodir de raiva, como normalmente ela que faria, com olhos arregalados. Ela então olhou para baixo, dando um sorriso conformado. Esse sorriso conformado se transformou num sorriso torto, que quase não conseguia se manter inteiro... Ela olhou para seu irmão, prestes a chorar novamente.

Mas onii-san... Nós somos os filhos, não é? E eles são os pais, não é? Não tem algo errado aqui? Não deviam ser eles...

O sorriso que tanto lutava para se manter acabou se transformando num choro dolorido que até mesmo me moveu. A ruiva se agarrou na calça do irmão, enterrando a cabeça entre suas canelas.

Não deviam ser eles que deveriam cuidar de nós dois!?

Akakyo virou o rosto para longe de sua irmã. Seus dentes rangeram, num esforço tremendo para adiar o inevitável. O rosto do rapaz se encheu de lágrimas, e, diante daquilo, eu me senti sem apoio. Os dois irmãos haviam caído num poço. E eu, aquela corda bamba que eles tentavam se agarrar, agora não era mais que um fio de barbante. Eu estava impotente.

Então, aquela promessa silenciosa que fiz para mim ecoou diversas vezes em minha própria mente.

Acredite em si mesmo.

Eu não posso recuar agora, não é? Eu disse que iria protege-los. Se eu ficar descumprindo minhas promessas, que tipo de homem eu serei? Aqueles dois estão machucados... Mas eles não perderam o que tem de mais importante: A esperança. Eles sentem dor, mas mesmo assim, querem desesperadamente que seus pais voltem para eles. Eles não desistiram ainda... Eles dois ainda acreditam em milagres. Em outras palavras...

Eu só preciso fazer um acontecer, não é?

Akakyo!

Ele não se virou para mim. Provavelmente não queria que eu o visse chorar. Eu o puxei pela roupa, fazendo o tronco dele se virar para mim.

Se recomponha!

Ele ficou sem reação. Eu não posso perder o momento, então avancei ainda mais.

Sua irmã está chorando, não é? Você vai deixa-la assim?

O que eu posso fazer?

Ele desviou o olhar, convencido de sua própria fraqueza. Eu não vou deixa-lo assim.

Você ainda não desistiu, desistiu?

Não importa... Não depende de mim.

Não, tem uma coisa que depende. Vocês querem continuar juntos, não é? Querem que deixem que vocês continuem conosco, na nossa cidade, não é?

...

Ele ficou calado. Vou considerar isso um sim.

Então você não pode ficar aqui parado. Temos que dar um jeito de vocês dois ficarem conosco. Não vamos ceder. Vocês me trouxeram para ajudar, então... Eu estou aqui por vocês. Contem comigo.

Akakyo passou a mão no rosto, limpando as lágrimas. Com o rosto ainda corado e de olhos inchados, ele sorriu para mim.

Quanto sentimentalismo, cara.

Eu sorri de volta. Idiota, eu que deveria dizer isso.

De qualquer forma, se conseguirmos enfrentar aquele homem e ganharmos o direito de deixar vocês na mesma cidade dentro do jogo dele, vamos com certeza aumentar a moral de todos. Se conseguirmos fazer isso de cabeça erguida, se todos assistirem... Certamente algo muito bom vai sair disso.
Nesse ponto Yuragi já estava de pé e de rosto seco. Ela cobriu o irmão, que claramente tremia, com o casaco dele, e sorriu. Acho que até mesmo um monstro consegue ser gentil de vez em quando.

Vamos fazer isso então. Algum plano?

Eu comecei a descer até a praia, onde eu avistei um objeto redondo. Era uma bola. Provavelmente algumas crianças haviam esquecido ela aqui. Eu peguei ela e joguei para Akakyo, que a agarrou sem problemas.

Na verdade, nada demais... Só temos que provar que vocês dois não sentem atração nenhuma pelo outro. Não deve ser tão difícil.

Akakyo deixou a bola de futebol cair e a arrastou até a praia também. A areia está gelada... Ele chutou a bola pra mim, e eu a peguei com meus pés depois de ter que andar um pouco. Yuragi começou a descer também, então eu chutei para ela, que parou a bola com muito mais facilidade que eu.

Droga, eu realmente devo estar parecendo patética para depender de um fracassado.

Patética seria um elogio...

Um cometa passou onde minha cabeça estava um segundo atrás. Se eu não tivesse me abaixado, estaria decapitado agora. Esse chute...

Perigoso...

Akakyo foi até a beira da água para pegar a bola. Ele ia chutar para um de nós dois quando algo chamou a atenção dele lá em cima. Eu e a garota Nekogami olhamos para cima e vimos um grupo de quatro crianças ali. Elas não deviam ter mais que sete anos.

Nossa bola!

Aqui.

Akakyo olhou para a bola e para as crianças. Então, a gravidade fez com que a bola caísse até seus pés e ele desse um chute preciso na altura em que as crianças estavam. O garoto que estava na frente teve que pular, mas conseguiu pegar a bola.

Obrigado, irmãozão!

O garoto sorriu e acenou. Nós três acenamos de volta, embora ele tivesse se despedido só de Kyo. Depois disso, ele enfiou as mãos nos bolsos, com um espírito renovado.

Quanto a nós, temos que ir atrás do que perdemos também.


. . .


Agora que estávamos andando, sentimos o frio nos pés muito mais do que antes.

O par de Nekogamis vieram me explicando um pouco mais da história deles no caminho.

Então... Quando descobriram que nossos estavam tendo um caso, eles foram expulsos de onde morávamos. Nossos avós foram contra, mas, como sempre, não eram eles que estavam no comando... Nossos pais foram banidos da família. Eles foram aceitos de volta aos poucos, embora ainda sofressem preconceito mesmo dentro da família...

Yuragi parou de falar e pensou em como continuar, mas Akakyo aproveitou sua deixa.

Depois disso, nós nascemos, mas eles não nos deixaram ficar com nossos pais. Fomos mandados para morar com nossos avós. Não que tenha sido ruim. Amávamos a vovó e amamos o vovô. Mas eles eram nossos pais, deviam ter lutado para ficar com a gente, apesar de tudo... Então, agora, querem nos separar para evitar que o mesmo que aconteceu com nossos pais aconteça.

Eu já havia entendido tudo isso do contexto. Mas ouvir tudo numa cronologia tirou as dúvidas e possíveis pormenores que ainda guardava em minha mente.

É verdade que ainda queria que nossos pais se redimissem... Eu até pensei em algumas maneiras de nos aproximarmos. Até queria trazer um presente para meu pai... Ele adora Shogi, sabia?

Ah, é mesmo! Então era disso que se tratava aquela vez, quando você...

Sim.

Akakyo respondeu antes de eu terminar de falar. Há um tempo paramos numa loja, onde ele procurou uma edição especial de Shogi para comprar... Mas não havia nenhuma. Mas isso quer dizer que...

Espere... Há quanto tempo você sabe dessa reunião?

Yuragi se virou para seu irmão. Ela, claro, não sabia disso até pouco tempo atrás, quando recebeu aquela ligação, mas Akakyo parecia que sabia a mais tempo. Ele coçou a cabeça e desviou o olhar para a parte superior esquerda de seu campo de visão.

Isso é... Por que você não me contou?

Desculpe. Você ia reclamar por menos tempo se soubesse depois.

Imbecil.

Ele recebeu um soco de leve no ombro. Isso só quer dizer que ela concorda, suponho.

No caminho, conversamos sobre várias outras coisas. O frio fez com que o tempo demorasse de passar, e caminhamos durante longos minutos.


. . .


Demorou para chegarmos, mas finalmente aconteceu. De cabeça erguida, como havíamos combinado, entramos na casa. Com as mãos na maçaneta, estava o pai dos dois irmãos. Ele estava com as malas e mãos, assim como a ruiva logo atrás dele. Eles estão indo embora? Não. Não vamos deixar. Se eles não virem isso, não faz sentido.

Nós três abrimos caminho por eles e entramos na casa. Aquele clima pesado e uma sensação de morte preencheu a casa novamente. Nana emergiu da cozinha como um rato emerge de sua toca, e estava prestes a buscar refúgio em mim. Mas quando isso aconteceu, Akakyo tomou-a pela mão e a puxou para perto dele, abraçando-a por cima do ombro. Ela olhou confusa, sem saber direito como agir. Está tudo bem... Apenas siga nossa deixa.

Yuragi caminhou até a frente do homem velho, o líder daquele local. Ela colocou as mãos na cintura e botou em seu rosto aquela expressão mandona e que não ouve desaforos. Essa sim é a Yuragi que eu conheço.

Escute aqui, velho. Nós não vamos fazer o que você quer. Vamos continuar vivendo da forma que viemos vivendo até agora.

Yuragi. Com quem você pensa que está falando?

O homem se levantou e eu tive a sensação de que ele poderia esmurra-la a qualquer segundo. Eu me movi rapidamente até o lado dela e passei a mão pela sua cintura, puxando-a para apoiar-se em mim. Ela tinha se abalado um pouco, mas pouco depois o sorriso confiante voltou para ela.

Vamos em frente.

Pouco me importa o quanto você acha que é importante. Nós já nos decidimos.

O homem deu dois passos em nossa direção. Tenho que admitir que ele é uma figura intimidadora, mas se eu desse um passo para trás agora tudo seria em vão.

Eu não vou permitir que uma desgraça como seus pais aconteça de novo na família Nekogami. Isso é inadmissível! Temos um nome a manter!

É como você pode ver... Nós nunca vamos ser o mesmo que aqueles dois.

Do fundo, eu ouvi a voz de Akakyo se aproximar. Ele e Nana ainda estavam abraçados, mas a loira apenas ficava cada vez mais tensa. Boa garota, apenas aguente firme...

Que piada de mal gosto. É óbvio para qualquer um aqui que o que vocês estão fazendo é uma farsa.

Do que você está falando?

Eu senti a respiração de Yuragi fica inconstante quando ela disse aquilo. O homem deu um sorriso maquiavélico e olhou para mim, diretamente.

Se é mesmo verdade, casais deveriam se beijar, não é?

Como reação, eu engoli a seco. Meu rosto se virou para Yuragi, que também ficou completamente tensa. O silêncio que emanava de todos os indivíduos na casa não serviu para nos acalmar. Ao contrário, só nos deixou mais nervosos. Eu fiquei de frente para ela e a segurei pelos ombros.

Yuragi... Isso é pela sua família, não é..? Se fizermos isso, vamos conseguir deixar que vocês continuem como sempre viveram... Com isso em mente, eu comecei a me aproximar do rosto dela. A ruiva fechou os olhos.

Não é totalmente ruim, não é? Ela é linda, afinal de contas... E aposto que ela também nunca beijou, então não vai ter do que reclamar. É perfeito, não é?

A garota começou a se aproximar de mim também. Meus olhos se estreitaram.

É perfeito... Com exceção de uma coisa.

Yuragi... No fim das contas... Você é minha amiga, mas... Eu não amo você. Não queria que acontecesse dessa forma...

Desculpe... Se você se aproximar mais, eu...

... não posso fazer isso.

Yuragi disse aquelas palavras quase como se estivesse completando meu pensamento. Eu abri os olhos, e vi ela olhando para o homem, que estava tomado de sadismo em sua face.

Entendo... É como eu suspeitei. Uma farsa. No fim, vocês dois são uma desgraça para nós.

Yuragi apertou o punho com força e seus olhos se encheram de raiva. Meu olhar enojado recaiu sobre Nekogami Ren. Akakyo olhou para seus pais, atrás de toda a cena, parados, sem mover um dedo. Ele amaldiçoou a falta de atitude dos dois e tomou a frente da situação.

Não importa, Ren. Você não entendeu? Não estamos pedindo sua permissão.

Você entende sua posição, não é, garoto? Sem o suporte da raiz da família, vocês não vão conseguir se manter.

Eu me pergunto sobre isso...

Uma voz diferente emanou da direção da porta. Uma voz velha, uma voz conhecida. Essa voz...

Vovô!?

Jii-chan? O que você...

O avô daqueles dois entrou pela porta e parou na frente dos dois filhos, olhando-os de cima a baixo.

Pai...

O filho chamou o velho por seu título, e este sorriu, por debaixo daquela barba grisalha.

Há quanto tempo...

O grisalho tocou o rosto de seus dois filhos. Apenas de olha-lo, você pode dizer que ele está perdido em memórias... Mas, como de todo sonho, ele teve que despertar.

O que você está fazendo aqui, Tanaka?

Tanaka e Ren. Os dois irmãos se entreolharam. Podia-se ver claramente a amargura que saltava de seus olhares. Tanaka, no entanto, não se deixou abalar. Ele continuou dando passos para frente, até se virar de costas, tendo visão, portanto, de todos no ambiente.

Toda essa desavença... Toda essa dor... Tudo isso que separa nossa família. Vocês... Tenho que me desculpar com vocês, por tudo.

Desculpar? Do que você está falando, vovô?

Akakyo ficou surpreso com aquilo. Todos ficamos. De todas as pessoas quem eu poderia imaginar para serem e se sentirem as culpadas, eu certamente não conseguia imaginar aquele velho aproveitador.

Isso é tudo minha culpa... Por ter sido um pai terrível todos esses anos.

Ele usou a pausa que fez para olhar nos olhos de todos no recinto.

Saeko e eu não vimos aquilo chegando. Quem poderia imaginar, não é? Achamos que aqueles dois se davam bem, mas era coisa de irmãos. A medida que os anos passavam, acho que começamos a perceber... Mas não queríamos acreditar... Até que ficou tão óbvio que negar aquilo já não era uma opção. Foi mais ou menos na mesma época que meu pai faleceu. Ren tomou a liderança da família e deu um basta naquilo. Meus filhos, exilados... Que tipo de pai permite algo assim? Saeko já estava doente, e tudo para nós sempre foi muito pressionador... Mas isso não é justificativa. Eu falhei com vocês. Eu deveria ter lutado com vocês, amado vocês... Se eu fosse um bom pai, vocês não precisariam ter perdido a mãe de vocês sem estar do lado dela.

Nesse ponto, o homem grisalho já lutava para não chorar. Seus olhos brilhavam, a experiência dolorosa da vida vencendo em manter as lágrimas dentro dos olhos. A filha dele a envolveu gentilmente com seus braços e afagou sua cabeça.

Está tudo bem, pai... Está tudo bem...

Não está... Agora, por causa do mau exemplo que eu dei, meus dois filhos estão cometendo o mesmo erro que eu cometi. Meus netos não puderam viver com os pais... E agora estão tentando tira-los de casa como vocês foram tirados. Não posso deixar isso acontecer.

Ah, é, e o que pretende fazer, Tanaka?

O líder dos Nekogami impôs sua voz novamente, falando num tom alto o bastante para ultrapassar o de todos ali. Os pais de Yuragi e Akakyo se entreolharam, dessa vez, como ainda não haviam demonstrado, com um brilho de confiança no olhar.

Nós vamos ajuda-los.

Isso é inadmissível! Vocês só vão poluí-los com suas ideias impróprias! Eles ainda te esperança, ainda podem carregar o nome da família Nekogami!

Quem liga pra esse nome idiota!?

Quem falou dessa vez foi o ruivo de cabelos longos e barba por fazer, o tio daqueles dois. Ele colocou os braços de forma relaxada atrás da cabeça, e assumiu uma postura claramente perigosa. A medida que ele falava, um pequeno pedaço de madeira, um palito, se mexia para cima e para baixo na boca dele. Acho que já vi Yuragi fazer aquilo.

Ah, então foi aqui que ela herdou esse hábito.

O quê!?

O velho ficou claramente irritado com a resposta desleixada e indiferente do homem.

Eu estou desfazendo o casamento.

Hã!?

Agora a reação veio do outro lado da sala. Sempre cordial e com um sorriso politicamente correto, a loira de cabelos na altura do pescoço havia corado completamente e estava com uma feição de raiva e descontrole total.

Do que você está falando, Hanzo? Quem você pensa que eu sou? Eu...

É, é, você é uma princesinha e tudo mais. Mas quer saber? Eu não estou interessado.

Blasfêmia! Você não pode fazer isso conosco? Vocês não veem o que estão fazendo!? Estão destruindo a nossa família!

O vermelho do sangue que corria pela face do homem me fez pensar em como ele era quando seus cabelos ainda eram ruivos. Ele estava totalmente tomado pela fúria. Me parece que aquela havia sido a gota d'água. O plano havia dado certo. Com o empurrão que demos, aquele era o primeiro dominó que havia caído rumo ao sucesso de nossa empreitada. Aquela reação por parte do tio de Akakyo certamente havia influenciado ainda mais do que eu podia imaginar o pensamento de todos ali. Minhas suspeitas se confirmaram quando o pai de Akakyo tocou o ombro do filho e sorriu. Sua voz saiu calma e serena, mas, ainda assim, firme e confiante.

Não, tio. Nós estamos unindo-a.


. . .


Depois da desfeita com Ren, seus dois filhos e uma loira histérica, nós fomos até um restaurante para comemorar. O tio de Yuragi e Akakyo fez uma festa, com direito a gritos e brindes que aconteciam a todo minuto. 'Yahoooooo! Liberdade!'. Ele também costumava dizer essas coisas de tempos em tempos. Ele até mesmo fez com que eu e Nana brindássemos com ele, embora fossemos menores e sem o menor interesse em bebidas. Acho que é o tipo de coisa que só alguém incrivelmente de bem com a vida consegue fazer.

Eu não bebi mais que alguns goles, mas ainda assim pode ser o álcool tendo influência sobre mim... Mas a cara de bunda de Ren e os filhos dele quando saímos pela porta foi impagável.

Pensando bem, eu posso estar enganado, mas não acho que eles disseram nada pelo tempo que estive aqui. Olhando por esse lado, eles mais pareciam lacaios.

Eu me assustei mais uma vez quando Hanzo gritou 'Arrancar os ouvidos!!', quando se referia à ex-noiva dele. Ele já havia dito aquilo antes, mas só conseguiu me fazer pensar que eu era quem queria arrancar os ouvidos para não ter que ouvir o homem que me abraçava e chorava a fio.

Você bebeu demais, cara.


. . .


De qualquer forma, quando acabamos de comer os jovens Nekogamis e seus pais precisavam ter uma conversa séria. Eles já estavam conversando há um bom tempo, e agora que tudo estava caminhando na direção certa, eu não me sentia mais necessário ali, então fiz um sinal para a outra estrangeira da mesa e fui até lá fora.

Poucos segundos depois, ela me encontrou ali.

Eu me apoiei num corrimão que tinha logo ali na frente, me dobrei para frente, e fiquei a observar o fim do pôr do sol. Metade do céu já estava escuro nesse ponto, e a lua já podia ser vista. Nana parou atrás de mim, e eu me virei para vê-la.

Que bom que tudo acabou bem, não é?

É verdade.

Eu me senti meio inútil aqui. Eu não fiz nada demais.

Não é bem assim. Se não fosse você para me dar apoio, eu não conseguiria fazer nada também. Só de saber que você estava ali eu pude me esforçar.

Hum, é mesmo? Tem certeza que não se apoiou na sua namoradinha?

Mas... O que foi isso?

Eh? Você sabe que estávamos apenas fingindo.

Você ia beijá-la.

O quê? Não ia nada!

Ia. Eu vi você se derretendo todo pra ela lá.

Nana cruzou os braços e virou o rosto, emburrada. Eu corei com a situação. Mais do que gostaria. Eu não posso estar sentindo nada por ela, não é? Quero dizer... Assim como Yuragi, ela é apenas minha amiga. Em outras palavras, não podemos ter uma relação de outro tipo. Essa coisa toda de ciúmes é só coisa de amigos também, não é verdade?

Eu não estava. Eu tentei entrar no personagem, mas se ela não tivesse dado para trás aquela hora, eu também não ia conseguir. Acredite em mim.

Não. Não acredito.

Ela deu as costas e começou a descer a pequena escadaria que havia ali. Eu estiquei meu braço inutilmente na direção dela, tentando alcança-la.

E-ei, Nana! Espere aí! Nana!!

Eu corri atrás dela até alcança-la, embora ela tenha me ignorado completamente.

Suzuyama Nanami... Minha amiga de infância, a pessoa que tem me ajudado todo esse tempo.

Não é como se eu estivesse apaixonado por você, mas...

Você fica linda com ciúmes.


. . .


Aaah, não! O que faremos se eles já tiverem ido sem nós?

Nanami colocou a mão na boca e caminhou apressada. Isso é culpa sua, você não devia perguntar isso pra mim...

Quando eu finalmente convenci Nana a voltar para o restaurante, já havia anoitecido completamente. No momento em que chegamos até os pequenos degraus do restaurante, encontramos o velhote descendo aquelas escadas, com um sorriso no rosto. Nós ficamos ali em baixo, esperando ele descer. Ele olhou para mim quando desceu completamente.

Tanaka-san... Para onde o senhor está indo? Não é melhor irmos todos juntos?

Não, Alkaev-san. Vamos só nós três. Aqueles dois tem um carro também.

Eh? Mas e quanto a Akakyo e a Yuragi? Os pais deles moram em outra cidade, não é? Não vai ser muito trabalhoso terem que viajar tanto assim?

Não é isso. Aqueles dois vão morar com os pais a partir de agora.

... Isso... É verdade?

Receio que sim.

Não que eu esteja triste por causa deles, mas... Na verdade, eu deveria estar feliz! Eles vão voltar à morar com os pais... Era o que eles queriam desde o começo, não é? Acho que toda essa conversa fez eles se redimirem... Ou ao menos abriu uma chance... Isso é algo bom! Eu deveria sorrir e dar meus parabéns!

Mas se eu não consigo, isso faz de mim uma pessoa egoísta?

Entendi... Então, vamos indo?

Sim. Ficar aqui só tornaria as coisas mais difíceis.

Eu me voltei para o velho furgão estacionado na esquina e caminhei na direção dele. Nana estava me olhando com ambos os braços sobre o peito, preocupada. Eu sorri para acalma-la e apenas continuei caminhando. O velho veio logo atrás, cabisbaixo, e pensativo.

É claro, ele havia vivido com aqueles dois a vida inteira. Devia ser difícil. Ainda assim, o homem mais uma vez vencia a luta em manter as lágrimas em seus olhos. Eu também sentia dor. Akakyo havia sido, junto com Kai, meu primeiro amigo desde que cheguei. E Yuragi, do jeito mandão dela, com aquele sorriso sinistro, responsável por me arrastar pra lá e pra cá, quase como uma ameaça, se tornou importante pra mim também. Ela é a líder da nossa banda... É, sem aqueles dois, não temos Rakuen. Vamos ter que fechar o clube.

Eu não quero isso. Não quero que nos separem.

Mesmo que eu esteja sendo egoísta, eu...

Aonde vocês pensam que vão?

Uma voz feminina nos chamou. Eu quase não acreditei quando ouvi. Era...

Yuragi..!

O que é isso, vovô? Você não pretendia ir embora e nos deixar aqui, não é?

Ela deu aquele sorriso provocante de sempre e desceu as escadinhas de braços cruzados. Akakyo apareceu logo atrás, e, depois dele, os dois filhos de Tanaka, que sorriram e se abraçaram, vendo seus filhos descerem juntos.

Yuragi... Akakyo... Por quê?

Akakyo parou ao lado de Yuragi e colocou os braços atrás da cabeça. Ele lembrou muito o seu tio fazendo aquilo.

Não podemos deixar você sozinho, não é, vovô?

Com certeza! Um velhote como você vai cair no primeiro dia se não estivermos lá para segurar.

Certamente era uma brincadeira de Yuragi, então, claro que o homem não se importou. Ele apenas ficou surpreso, parado, sem acreditar no que estava ouvindo.

Vovô... Nós passamos toda nossa vida com você. É claro que queríamos ficar com nossos pai e mãe, mas... Você é nossa família. Pelo menos até terminarmos a escola... Nos aguente um pouco mais. Pode ser assim?

Yuragi sorriu gentilmente, algo que eu nunca tinha visto ela fazer. Mais uma vez eu me convenci que mesmo um monstro tinha um coração. O avô deles virou de costas, fazendo-os abrir a boca de leve. Ele não vai rejeita-los... Vai?

Não...

Aquele homem está... Chorando.

Ele se virou de costas para que seus filhos não o vissem. Para que seus netos não o vissem. É a mesma razão de por que ele segurou o choro antes. Um pai deve proteger seus filhos. É isso, não é? Se você chorar, se você se mostrar fraco, você não será capaz de protege-los... Você não será capaz de ser uma barreira intransponível, um pilar inquebrável que um pai deve ser ao proteger seu filho. É assim que ele pensava.

Ainda assim, ele estava chorando.

Mas não poderia deixar que aquilo continuasse por mais do que alguns segundos. O velho se recompôs e usou seu indicador e polegar para apoiar a parte superior do seu nariz, enxugando suas lágrimas. Ele se virou com um sorriso para sua família, logo ali, em sua frente.
Então, vocês não me deixam escolha. Vamos para casa.
Sim, aqueles eram a família dele. Eram as pessoas que sempre estiveram do lado dele. Eram também as pessoas que a partir de agora estariam ao lado dele.
Da janela, Hanzo também nos observava, com um sorriso bobo estampado no rosto.
Todos estavam sorrindo.
E aquele sorriso era o que os reunia novamente.

. . .

O carro velho balançou perigosamente, me fazendo sentir à beira da morte como da última vez.

E-então... Como vocês vão se virar a partir de agora que os Nekogami estão divididos?

Nossos pais vão nos ajudar. Eles tem um pouco de dinheiro sobrando, pelo que nos disseram.

Akakyo respondeu com um sorriso confiante no rosto. Ao ver aquilo, perguntar se tudo ficaria bem me pareceu tolo. Estava tudo bem ali, no semblante dele.

Ainda vai levar um tempo para nos aproximarmos totalmente de novo, então não quero depender demais deles. Akakyo, você vai trabalhar.

O quê? Você quem está sugerindo isso, então trabalhe você!

Eu para Yuragi. Tudo começou, pelo menos para mim, quando vi ela brigando com sua mãe. Como ela disse, eles não estão totalmente próximos ainda. Perdoar e dar uma chance foi apenas o primeiro passo. Eles precisam agora contar um com o outro, depender um do outro, confiar um no outro. Isso sim é o que vai construir a família deles. Mas certamente, era um alívio tão grande que mesmo o clima ao redor deles parecia bastante satisfatório.

Mas, sabe... Temos que agradecer vocês dois. Mesmo não tendo nada a ver conosco, fizemos vocês passarem por isso...

Akakyo corou um pouco e coçou a bochecha. Ele que havia sugerido para mim esse plano, então era natural que fosse ele quem se desculpasse. Eu e Nana nos olhamos e sorrimos um para o outro, concordando silenciosamente.
Não foi nada, Akakyo. Somos amigos, não é?

Sim! Se eu pude ajuda-los a se aproximar um pouco mais de sua família, claro que ficarei feliz!

E quanto a você, Yuragi, pode me pagar uma bebida depois por ser um bom garoto e fingir ser seu namorado.

Ho!? Você é quem devia estar me dando presentes, aqui! Eu deixei você olhar para mim, até mesmo andar ao meu lado em público!

É esse tipo de atitude que faz de você uma solteirona.

Silêncio.

Todos no carro pararam para olhar para mim. Era como se eles não acreditassem no que eu tinha acabado de falar.

Parando para pensar... Até eu me surpreendi em descobrir que tinha tendências suicidas.

O carro do vovô até que ficaria charmoso, pintado de vermelho...

Yuragi-chan..?

Dedos estralaram.

Yuragi-sama!!??

Ela sorriu.

Eu também sorri.

Era uma vez, um garoto chamado Makoto. Ele não sobreviveu.

. . .

Chiharu - 12

Família.

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