Chiharu - Capítulo 04



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Chiharu

Capítulo 04

Meus olhos fraquejaram e protestaram enquanto eu tentava abri-los. Eu estava meio zonzo. Eu simplesmente levei os olhos de um canto a outro tentando reconhecer o lugar que eu estava, sem sucesso. Bem de leve eu podia sentir uma dor na parte traseira da minha cabeça que aumentava a medida que eu ganhava consciência. Eu virei o rosto para a direita e percebi a silhueta de um homem encostado na parede de braços cruzados, olhando a janela. Ele tem um corpo alto e forte. Ele veste o que parece ser um robe samurai totalmente negro, tão negro quanto seus cabelos. Sua silhueta não me é estranha... É a mesma que eu vi antes de...

Ai!

Com a dor, as memórias voltaram.  Minha cabeça latejou quando eu lembrei dos últimos acontecimentos antes de perder a consciência... Esse cara... Ele me acertou com alguma coisa! Olhando bem o meu arredor eu estava num cômodo japonês feito totalmente de madeira, com uma porta de correr, e estava deitado sobre um futon. Eu levantei enquanto levava a mão ao local dolorido, e isso fez com que ele notasse meu movimento. Ele olhou na minha direção com um olhar gélido e assustador.

Minhas expressão também não é de muitos amigos.

Quem é você?

A pergunta fez com que meu sangue fervesse, fazendo minha dor aumentar. Eu tirei a mão do local dolorido e apoiei ela no chão, devolvendo a pergunta.

Eu é que pergunto! Por que você me acertou daquele jeito? Onde eu estou?

Na mesma casa que você andou espiando nas últimas noites.

Eu não entendi muito bem o que ele quis dizer. Ele só pode ter me confundido com alguém.

Do que você está falando!?

Você tem passado aqui e passado tempos olhando fixamente a nossa casa. Tempo demais.  

Ele se aproximou e fez com que eu tivesse que inclinar meu pescoço para cima para olha-lo nos olhos.

Eu não gosto do seu olhar.

O sentimento é recíproco.

O que você quer? Explique-se.

Ele tirou de trás de si o que parecia estar escondendo atrás da perna para que eu não visse. Uma Katana de treino, feita de madeira, estava apontada para a minha testa. Eu levantei a mão direita e afastei o objeto do meu rosto antes de responder.

Pra falar a verdade, eu continuei olhando ele nos olhos por mais dois segundos. Talvez por causa do trauma, eu não tinha conseguido, ainda, raciocinar direito. Foi então que eu liguei os fatos. Quando volto da casa de Nanami eu sempre observo a mesma casa em que vi aquela garota... Deve ser isso! Mas que tipo de maluco iria acertar alguém só por isso?

... Não é nada. Eu gostei da casa, só isso.

Tch.

Eu pude ouvir ele fazer um som de repúdio. O objeto de madeira alcançou minha garganta e impeliu meu queixo para cima.

Eu posso dizer quando está mentindo. Diga a verdade.

A adrenalina subiu pelo meu corpo enquanto eu o encarava ferozmente. Eu queria poder levantar e dar uma surra nesse cara. A atitude dele me irrita. Mas no meu estado atual... Não... Provavelmente mesmo que eu estivesse no meu perfeito estado eu acabaria levando a pior para aquele cara. Algo me dizia que ele não era um oponente que se quer ter. Se ele vive na mesma casa que aquela garota, ele deve ser alguma espécie de parente dela. Ele não parece muito mais velho que eu. Talvez seu irmão ou seu primo. Em todo caso, dado o temperamento de alguém que te acerta só por que você observa sua casa, se eu disser dela agora não sei o que ele faria. No entanto a Katana, mais ameaçadora do que nunca pressionou a minha resposta.

Diga!

Eu não quis pensar sobre o assunto. Eu apenas agarrei o objeto e o afastei do desconforto da minha garganta para poder falar.

Eu..!

Aquelas palavras não terminaram de sair da minha boca. No momento que eu ia falar a porta de deslizar se abriu e um homem de vestes japonesas brancas e negras entrou no cômodo. Ele tinha um rosto sério e experiente. Seus cabelos começavam a desaparecer dando lugar a duas entradas. Sua barba era fechada mas aparada, tendo poucos milímetros de tamanho. Podiam-se notar alguns dos seus fios começando a ficar brancos. Como o rapaz mais jovem, sua expressão era séria e acusadora. O jovem se afastou um passo ao vê-lo entrar. Eu simplesmente fiquei olhando.

Então esse é o garoto?

Sim, pai, é ele.

Pai... Então aquele homem é o pai dele. Pela sua atitude ele parece ser o chefe daquela família. Eu continuei calado esperando para ver como o homem lidaria com a situação.

Qual é o seu nome, garoto?

Eu relutei em responder. No entanto ocultar algo agora, numa situação claramente desvantajosa e opressora seria uma péssima escolha. Eu pensei em dar um nome falso, mas o que aquele garoto disse sobre saber quando estou mentindo me segurou. As palavras saíram da minha boca quase como que eu as estivesse cuspindo.

É Makoto.

Makoto...

Ele continuou olhando pra mim por uns 3 segundos e então se aproximou de mim como se quisesse confirmar algo. Nós nos olhamos nos olhos e eu pude perceber, pela minha inclinação do pescoço, que ele era um pouco mais baixo que o filho. Eu pude notar ele arregalando os olhos um pouco antes de se virar bruscamente e rumar para fora do cômodo.

Tire esse garoto daqui. Não quero ele dentro da minha casa nunca mais. É uma ordem.

Ele disse a última frase lançando mais um olhar gélido para dentro do cômodo e então sumiu de vista. O rapaz olhou para mim e se virou para sair do cômodo, parando de costas, já do lado de fora.

Você o ouviu. Levante-se.

A atitude dele novamente se provou irritante. Mas eu não dou a mínima, só quero dar o fora daqui.


. . .


Nós seguimos sem dizer nada um para o outro. Eu pude notar que a casa era uma verdadeira mansão japonesa, só pude imaginar que aquela família devia ser bem rica. Ainda estava de noite, isso quer dizer que eu não fiquei desacordado por muito tempo. Eu podia ouvir o som de um piano sendo tocado com muita habilidade, que ficava mais forte a medida que nos aproximávamos de certo cômodo. Eu pensei em parar para ouvir mas decidi que seria melhor manter o passo. O som foi diminuindo com o tempo. Nós continuamos andando até chegarmos ao jardim. Lá eu podia ver uma pequena trilha de pedras que levaria até o portão principal. Algo chamou minha atenção então eu olhei para cima.

Então eu vi.

Era a silhueta de uma garota, iluminada timidamente pela luz da lua. Ela carregava nas costas uma capa de violão, e estava apoiada quase como um gato em cima do muro alto. Com um salto ela foi ao chão, caindo tão silenciosamente que eu me surpreendi. Eu, que havia parado de caminhar, voltei a andar ao passo que ela também começou a caminhar em minha direção. O rapaz olhou a garota com um olhar de reprovação.

Yami. Seus maus hábitos estão começando a ficar inoportunos.

Ela continuou andando e olhando para frente, segurando a capa do violão pela alça com a mão direita, como se não ligasse.

Me deixe em paz.

Ela passou por ele e então continuou caminhando até passar por mim. Eu podia ver suas roupas claramente agora. Ela estava usando uma blusa preta que deixava seus ombros a mostra, e um short jeans escuro. A parte esquerda da blusa estava dentro do short de forma a deixar a blusa com a ilusão de estar inclinada. Ela passou ao meu lado. Nesse momento, o olhar dela caiu sobre mim. Eu me senti despido. Os olhos vermelhos dela me olharam tão profundamente que eu senti que ela podia ver dentro da minha alma. Normalmente alguém estaria olhando com um olhar indagativo como quem perguntasse: " Quem é você, o que você está fazendo na minha casa? ". No entanto o que havia ali era um olhar examinador, como se ela estivesse investigando tudo a meu respeito naquele único segundo que mais pareceu uma eternidade.

Sem demonstrar nada, ela continuou caminhando enquanto eu fiquei vendo a figura dela diminuir.

O rapaz abriu a porta e olhou para mim, esperando que eu saísse. Eu passei por ele sem olha-lo com uma expressão sólida. Eu me virei para a casa depois de sair. Ele simplesmente me olhou pela abertura enquanto fechava o portão.

Não incomode mais.

A porta se fechou com o aviso. Eu ainda fiquei alguns instantes observando o portão fechado e revivendo a cena que tinha acabado de ocorrer. Eu olhei para o lado e notei uma pequena placa indicativa presa na parede. Estava escrito 'Kurou'.

Kurou Yami...

Por algum motivo não consegui tirar esse nome da cabeça enquanto tomava o caminho de volta para casa.


. . .



Eu acordei com o sinal do fim das classes do dia. Eu levantei a cabeça só para descobrir que um filete de baba se formava e molhava uma página aberta do meu livro de inglês, embora, ao olhar para o quadro, eu houvesse descoberto que estávamos na aula de matemática.

Então eu dormi tanto assim...

Ontem à noite eu cheguei bem tarde em casa, por isso Shizuka acabou ficando bem preocupada. Ela não conseguiu dormir até quase de madrugada e eu só consegui dormir depois dela. Agora todo o cansaço estava sobre minhas costas e eu havia dormido a maior parte das últimas aulas. Eu olhei ao redor para ter certeza que ninguém havia visto, embora soubesse que isso era impossível. Eu suspirei e levantei da carteira, guardando minhas coisas e indo em direção à saída. Eu atravessei os corredores até avistar a figura de dois garotos ao longe. Eu acenei.

Yo.

Os dois responderam com um aceno mas ainda não estávamos numa distância ideal para conversar. Estávamos de frente para uma das salas do segundo ano enquanto alguns alunos ainda saiam de lá e ficavam entre a gente. Eu senti um impacto violento vindo da minha direita que foi seguido por uma voz feminina autoritária e nada feliz.

Ei, saia da frente!

O impacto não foi o bastante pra me derrubar, mas me fez perder o equilíbrio e dobrar meu corpo de um jeito esquisito para não cair. Espere aí... Eu conheço essa voz... Eu olhei na direção da qual a voz tinha vindo, e havia uma garota de cabelos ruivos presos por um laço preto com as mãos na cintura. Indo contra suas próprias palavras, agora ela estava na frente da sala obstruindo a passagem. Ela pareceu me reconhecer ao mesmo tempo que eu fiz o mesmo. Eu involuntariamente gritei em reflexo.

Aaaaah!

Ela mudou sua expressão para uma entediada.

Ah, perdedor, é só você.

As palavras me atingiram como um ferrão. Ela deu um passo pro lado para desobstruir a passagem e logo Nekogami e Osakura se juntaram a nós.

Espere aí! Desde quando você estuda nessa escola!?

Desde o primeiro ano.

Ela respondeu com naturalidade. Eu olhei em seu uniforme o pequeno escudo que identificava de que ano eram os alunos, e o dela correspondia ao segundo. Ela não é do meu ano e eu estou aqui há pouco tempo, mas... Acho que eu já deveria ter conhecido a irmã do Nekogami, ou mesmo visto uma garota de atitude odiável gritando por aí pelos corredores se ela estivesse aqui antes.

A verdade é que ela esteve suspensa por uns tempos, então...

As palavras de Akakyo esclareceram minhas dúvidas, mas foram logo cortadas por um olhar afiado da irmã. Só posso imaginar que ela se meteu em alguma briga ou discussão com algum professor e foi suspensa por isso.

Bom, eu estive fora da escola algum tempo, mas agora estou de volta, isso é o que importa.

Ela falou isso num tom convencido. Ninguém mais teve a chance de dizer nada antes de chegar até nós uma voz fina cortando o corredor.

Maaakootoo-saaaan!

Eu me virei pra trás cerca de 60 graus antes de sentir a pequena garota que corria em minha direção pular em cima de mim e me derrubar no chão. Vários alunos pararam para ver aquela cena. Os alunos do primeiro ano que viram olharam entediados e disseram algo que eu pude ler em seus lábios como sendo provavelmente: 'Ah, é apenas ela'. Isso me preocupa... Quer dizer que para essa garota esse tipo de coisa é cotidiano?

Yuujimura...

Minhas costas estavam doendo da queda e o peso dela em cima de mim apenas deixava tudo mais desconfortável.

Ei, ei, você vai vir pro clube hoje, não vai?

Não, hoje eu não posso...

A garota fez beicinho. Nekogami fêmea fez uma pergunta direcionada a mim.

É sua namorada?

Eu olhei para a ruiva e depois para a pequena morena fazendo beicinho enquanto olhava pra mim. Uma cena se formou na minha mente.


. . .


Estávamos numa praça, sentados numa mesa com sorvete na mão. O dela era de morango e o meu de chocolate.

Ah, Makoto-kun, você se melou aqui!

Waah! Aonde?

Aqui!

Ela aproximou a mão da minha bochecha esquerda e tirou um pouco de sorvete de chocolate e levou até a boca dela.

Pronto!

Ela sorriu e eu não pude evitar sorrir também.

Você é tão atenciosa, Hanabi-chan.

Já sei!

Ela teve uma de suas ideias geniais, e começou a falar por um fantoche que pareceu sair do nada.

Hanabi-sama, vamos fazer a dança do vaga-lume!

Certo, Crocodile-kun!

Crocodile kun? Eu tinha quase certeza que aquele era o Aligator-kun.

Ela se levantou e estava vestida com um vestido cheio de miçangas. Eu estava vestindo um terno branco e tinha meu próprio par de fantoches quando levantei também. Alguém no fundo da cena bateu palmas e um globo de luz desceu de algum lugar que eu não estou certo de onde. Dois disparadores de confetes foram acionados. Aquele era o sinal!

Nós começamos a dançar e repetir juntos.

Vaga-lumes! Vaga-lumes!

A coreografia continuou por alguns segundos. Nós estávamos com sorrisos exageradamente grandes enquanto dançávamos. Era hora do salto do grand finale!

Vaga-lumes... Banzai!

E depois, apenas ficamos rindo.


. . .



Eu nem posso imaginar como minha cara ficou depois da cena absurda que brotou na minha mente em uma questão de segundos. Eu olhei novamente para o rosto fazendo beicinho em cima de mim e respondi a pergunta de Yuragi com veemência enquanto balançava a cabeça prum lado e pro outro.

Não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não, não!

Os múltiplos não eram para negar a pergunta. Balançar a cabeça era para tentar esquecer da cena horrenda que se passou na minha cabeça.

Infelizmente, eu falhei.

A ruiva fez um gesto entediado, que se seguiu por um convencido, e trocou seu olhar para um desafiador.

E então, vai querer outra surra hoje, perdedor?

Eu empurrei o peso em cima de mim, que ficou com a mesma expressão pidona mesmo estando agora de joelhos no chão e me levantei. Tenho certeza que o comentário dela fez uma veia saltar na minha testa mas eu resolvi me acalmar e responder cordialmente.

Não, como eu disse, hoje eu vou estar ocupado.

Fazendo o que?

Ela perguntou, sem o mínimo de respeito com a privacidade de alguém que ela mal conhece. No entanto, Akakyo e Kaioshi olharam pra mim também curiosos. Eu apenas desviei o olhar e me embolei.

Bom, eu...

Kai e Kyo olharam um para o outro. O alvo foi quem se pronunciou.

Você está sempre ocupado, Makoto... E você também fica sempre saindo das aulas mas não parece o tipo de pessoa que fica matando aula por aí... O que diabos você faz com o seu tempo?

A pergunta dele foi direto ao ponto. A verdade é que... Eu não quero ter que responder. Se eu disser eu vou ter que contar a eles sobre Shizuka... Não que eu tenha vergonha dela, eu a amo demais pra isso... É só que... Talvez eu não me sinta íntimo e confortável o suficiente pra falar isso com eles ainda... Ou talvez eu não queira causar problemas desnecessários pra eles... Ou simplesmente...

Talvez eu não queira que eles sintam pena.

Eles começaram a ficar inquietos com minha demora de responder. Eu também comecei a ficar irritado com a situação.

Não é da conta de vocês. Eu vou pra casa.

Eu notei a surpresa no olhar dos dois rapazes ao me ouvir dizer aquelas palavras. A expressão de Yuragi ficou séria e condenadora. Hanabi havia perdido sua expressão pidona para uma curiosa quando a pergunta foi feita. Ela fez uma cara triste... Na verdade, decepcionada quando ouviu minhas palavras. Eu não podia mais aguentar todos aqueles olhares, então eu apenas abri caminho entre eles e fui embora.


. . .


A medida em que eu caminhava, a culpa ia me consumindo. Eu não deveria ter descontado tudo neles. Eu caminhei para fora da escola cabisbaixo, pensando numa forma de me desculpar. Quando eu finalmente levantei a cabeça eu avistei uma garota de cabelos negros e olhos vermelhos caminhar à minha frente e um pouco a minha direita. Ela carregava nas costas uma capa que presumi ser de um violino. Não há dúvidas... Kurou Yami... Ela é a garota de ontem... A garota com quem eu sempre quis encontrar desde o dia em que a vi cantando, naquele dia em que tudo começou, quando eu reencontrei Nana e conheci Nekogami e Osakura... Eu me lembrei um pouco da cena naquela noite e da canção que ela cantou... Eu ainda queria muito saber o refrão daquela música. Acordando dos meus pensamentos e percebendo que ela estava se distanciando, eu me apressei um pouco e arrisquei chamar a garota.

Kurou-san!

Ela não respondeu. Nem mesmo se virou. Eu tentei chama-la mais uma vez, agora de mais perto.

Kurou-san..!

Ela continuou caminhando sozinha em direção ao portão, embora eu tenha certeza que dessa distância ela possa me ouvir. Eu tentei mudar a forma como eu chamo ela.

Yami-san...

Ela parou de caminhar um pouco. Só depois de um ou dois segundos ela virou na minha direção e olhou nos meus olhos. Isso me fez parar também e apenas ficar ali, meio boquiaberto, enquanto nos olhávamos.

E então?

... Eh?

Eu balbuciei algo ao acordar do transe.

O que você quer?

Ah, eu...

Na verdade, pensando bem, eu não tinha um motivo em especial para tê-la chamado... Eu simplesmente senti que tinha que fazer isso...  Sem conseguir pensar em algo apropriado para dizer, eu decidi que seria melhor me apresentar.

Meu nome é Makoto.

Ela continuou calada, esperando eu continuar. Eu pensei que ela diria algo, mas... Bom, faz sentido... Já que eu já sabia o nome dela não fazia sentido ela precisar se apresentar também. Eu mal posso acreditar no quanto eu fiquei nervoso. Eu desviei o olhar e cocei um pouco a testa para disfarçar que estava, na verdade, limpando uma gota de suor.

Você canta muito bem...

Obrigada.

Ela respondeu depressa e então o silêncio caiu de novo sobre nós. Continuamos ali, nos olhando, sem dizer nada. Eu tenho que pensar em alguma coisa... Vamos, homem, pense..!

Sabe, eu queria muito saber o no...

Por que você está fazendo isso?

Eh... O quê?

Ela me pegou de surpresa.

Você não deveria falar comigo. Você viu o que aconteceu da última vez.
Ela se refere ao evento de ontem à noite... Eu cocei a parte de trás da cabeça e ri para tentar descontrair o clima.

Ahaha! Foi mesmo esquisito não é? Que tipo de pessoa bate na cabeça de um estranho por aí? Aquele cara é o que seu?

O olhar dela dizia: 'você ignorou tudo o que eu disse...'

Ele é meu irmão.

A-ah, então ele é seu irmão, haha...
Eu desviei o olhar de novo. Aquela conversa, se é que eu posso chamar assim, estava ficando extremamente desconfortável.

... Se você tem algo a dizer, diga logo.

Não, eu... Não tenho nada em particular.

Então com licença.

Ela se virou com um gesto educado e caminhou em direção ao portão. Eu simplesmente fiquei olhando até que ela desaparecesse da minha vista, remoendo e me culpando por aquilo ter ido tão mal. Eu suspirei e então tomei meu próprio rumo em direção à minha casa.


. . .


Eu resolvi caminhar um pouco para espairecer. Dobrei em várias ruas que não conhecia muito bem, mas prestando bastante atenção para não me perder. Eu parei no meio do caminho para comprar um sorvete e também para ouvir um pouco uma banda de rua que tocava por ali. Eu não conseguia parar de pensar no que eu tinha feito. Eu realmente não devia ter tratado eles daquela forma... E ainda, a cereja no topo do bolo, minha performance desprezível na minha tentativa de conversar com a Yami e...

Aaaaaaah!

Eu baguncei freneticamente meu cabelo na tentativa de esquecer aquilo. Então, suspirei. Não havia nada a ser feito no momento... Eu olhei ao redor. Essa rua me parece familiar. Eu parei para olhar a bela casa adiante e percebi onde eu estava. Aquele lugar... Então eu ouvi uma série de baques surdos e me lembrei. Mais adiante era o lugar daquela obra. Eu parei de caminhar. Talvez eu devesse tomar outro rumo...

Minhas pernas protestaram. Eu já havia caminhado bastante e não tinha a intenção de tomar uma rota mais longa para chegar em casa. Além disso, quais as chances de algo problemático como na última vez acontecer? Eu me movi para frente e caminhei com cautela enquanto passava na frente do local.

Eu ouvi o som de algo cortando o ar rapidamente, mas eu estava preparado. Com um olhar confiante, eu imaginei o trajeto da picareta no ar e me virei para esquivar dela. Mas o que vinha era algo muito pior que me deixou quase sem reação. Eu vi a figura de um homem em cima de uma viga de aço, que vinha desgovernada na minha direção. Ela estava pendurada em algo que deveria ser um guindaste, e o homem estava em pé sobre ela se apoiando na corda, como se estivesse surfando. Sua outra mão segurava seu capacete para ter certeza de que não iria voar. Eu estava boquiaberto, mas a voz grave e a intensidade do grito do homem me fizeram me mover.

MADEEEEEEIRA!

Meus instintos me guiaram e eu consegui pular pra esquerda antes da viga passar exatamente por onde eu estava. O grito o homem continuou até que a ponta da viga atingiu e atravessou um muro. A inércia fez o homem voar e bater com todo seu corpo na parece, ficando ali, esparramado, por algum tempo.

O tempo foi o bastante para que eu saísse do meu estado  de choque. O homem se apoiou no chão enquanto passava a mão no nariz.

Acho que ter dito aço seria mais apropriado...

É REALMENTE com isso que você está preocupado!?

AH! Você é aquele garoto esquentadinho!

Ele disse aquilo com um largo sorriso no rosto. Sua despreocupação me fez corar de raiva. Eu levantei e encarei ele. Era o mesmo pedreiro da última vez.

Você podia ter me matado! E se aquilo tivesse me atingido!?

Ele se aproximou de mim e me deu 'tapinhas' nas costas, que quase me fizeram vomitar meu próprio coração.

Ah, vamos, você tem bons reflexos garoto, algo desse tipo nunca iria te atingir!

Eu endireitei a coluna e olhei agressivamente para ele. Ele envolveu meu pescoço com seu braço enorme e cabeludo, quase me matando sufocado.

Você parece abalado rapaz! Venha, vamos tomar algo!

Eu apenas pude grunhir em resposta. Eu tentei usar os dois braços para me livrar da pegada que me arrastava na direção de uma máquina de bebidas. Sem sucesso.

Nós sentamos no banco que havia ali do lado. Estávamos afastado o bastante para não ouvir a conversa dos outros operários mas ainda podíamos ouvir o som do baque surdo de vez em quando. Ele me pagou um café quente, mas preferiu tomar um chá gelado para se refrescar. Acho que mesmo que eu tentasse correr agora ele poderia me segurar com apenas um braço e então me dar outro abraço daqueles. Além disso, não posso mentir e dizer que a ideia de beber algo de graça não me agradou um pouco. Eu dei um gole no café e fiquei calado. Não estou particularmente interessado em iniciar uma conversa com ele. Ao invés disso usei o tempo para refletir sobre meus próprios problemas. Eu senti a ponta de um cotovelo me atingir de leve no braço esquerdo e olhei para a figura corpulenta sentada ao meu lado.

O que foi, jovem? Você parece preocupado com algo.

Não é nada.

Eu disse isso enquanto fitava o líquido negro se movendo pelo pequeno buraco na lata. Ele me cutucou um pouco mais forte e fez um pouco do café espirrar e cair no chão.

Vamos, garoto. Essa sua cara não engana ninguém.

Eu me sinto meio mal em ter que me abrir assim com um estranho. Mas eu também penso que se eu não falar com alguém o peso nas minhas costas pode acabar ficando grande demais. Além disso, havia algo sobre esse cara que me fazia sentir algo que eu não sinto a muito tempo... É uma sensação estranha de confiança, mesmo que eu nunca tenha falado de verdade com ele, e que ele seja um maníaco desajeitado e quase assassino... Eu suspirei e sorri. Eu realmente devo ser um idiota.       

 Eu fiz algo estúpido e acabei brigando com meus amigos.

Ele deu dois grandes goles que quase esgotaram o conteúdo do chá e então olhou para o céu do fim da tarde.

Algo estúpido, não é...

...

... E então? O que você vai fazer sobre isso?

Eu dei um gole na minha própria bebida e olhei para cima também. A lua estava ali, mesmo que o sol ainda não tivesse se posto completamente.

Acho que eu vou pedir desculpas...

Acha?
Ele olhou pra mim. Eu respondi com certeza. Bom, mais ou menos.

 Eu vou pedir desculpas... Mas... Eu não sei ao certo como eu vou fazer isso. Acho que não vou conseguir olhar direito na cara deles.

Ele grunhiu como se estivesse elaborando as palavras na sua mente. Eu olhei para seu rosto.

Escute, garoto. Eles são seus amigos não é? Então não se preocupe, se eles realmente gostarem de você eles vão te perdoar.

É que não somos amigos a tanto tempo assim...

E o que tem isso? Amizade não é uma questão de tempo, tem a ver com...

Com..?

Ele cruzou os braços, pensativo.

É isso! Tem a ver com fogo!

... Hã?

Mas do que diabos ele está falando?

Ele se levantou empolgado. Eu podia jurar ver faíscas saltando dos seus olhos enquanto sua expressão determinada fitava o céu.

É como uma intensa fogueira! Não importa quanto tempo ela está pegando fogo, importa a quantidade de lenha que você continua colocando a cada instante, para mantê-la viva!

Eu olhei pra ele, não muito convencido. Ele se acalmou e se sentou, olhando agora para o chão. De alguma forma seu rosto se tornou um rosto muito sábio de uma hora pra outra. Eu me surpreendi.

Escute, jovem. Você está na idade em que você pode cometer erros. Você deve cometer erros! Nós aprendemos com esses erros e idiotices, e as pessoas que temos para fazer essas bobagens junto conosco são nossos amigos! Por isso não tenha medo de pedir desculpas. Errar e fazer coisas estúpidas é uma obrigação sua! Você tem que aproveitar essa idade para fazer isso o quanto for possível, e então você tem que se arrepender... Assim você não vai fazer as mesmas coisas quando for mais velho. Quando você envelhece, você não pode mais errar.

Ele disse a última sentença com um olhar sofrido. Eu percebi uma coisa. Quando você vê uma pessoa pela primeira vez você só consegue ver a casca dela. Olhando para esse homem eu podia ver um operário desajeitado e bruto sem nenhuma preocupação. Mas agora eu posso ver um lado adulto de alguém que viveu e experimentou mais do que eu. Se eu não tivesse conversado com ele dessa forma provavelmente teria achado ele igual a todos os outros operários daquela obra, vestindo o mesmo uniforme sujo, fazendo as mesmas coisas... Mas... Pessoas são diferentes, mesmo que pareçam iguais. Então dizer que você que pessoas devem parecer diferentes só vale para essa casca... Se você quer que as pessoas pareçam diferentes umas das outras, o melhor  a fazer pode ser conhece-las... Eu fiquei meio boquiaberto por um tempo. Foi impressionante a quantidade de coisas que consegui absorver apenas naquele momento. A sensação quente e confortante que eu senti há pouco correu pelo meu corpo novamente. Eu sorri enquanto olhava para o chão.

Eu notei o olhar do homem caindo sobre mim. Ele provavelmente sentiu que o clima estava ficando emotivo demais e me deu um tapa nas costas que fez meu café, já não tão quente, espirrar de novo. Ele se levantou com uma gargalhada e as mãos na cintura.

Hahaha! A folga acabou, garoto. Agora você já sabe o que fazer. Vá pega-los!

Eu não achei que a frase final fosse realmente necessária, mas eu concordei com a cabeça. Eu me virei e comecei a caminhar na direção de casa. Eu parei logo depois de dois ou três passos e olhei por cima do ombro.

Hum... Eu...

Eu coçei a bochecha sem jeito.

Obrigado.

Ele simplesmente abriu os dentes num largo sorriso.


. . .


Eu cheguei em casa e levei Shizuka para tomar banho, como de costume. Eu contei a ela sobre meu dia. Ela ouviu a tudo atentamente, sempre mudando sua expressão de acordo com o que eu falava. Eu não sei se é apenas audacioso da minha parte, mas eu sinto como se pudesse saber tudo que ela diz mesmo que ela não possa falar. Eu penteei seus cabelos e vesti uma blusa e um short folgado nela. Eu nunca soube muito bem que tipo de roupas comprar para uma garota então acho que nunca havia vestido ela muito bem. Eu me lembrei de Nanami me dando bronca enquanto mexia nas gavetas. "Que tipo de roupas são essas? Aaah, que horrível!". Ela trouxe várias roupas de presente pra Shizuka. O corpo das duas é meio parecido então as roupas até que caíram muito bem. Olhando agora ela realmente parece mais feminina do que costumava ser quando apenas eu cuidava dela. Acho que moda realmente não é o meu forte.

Eu fiz o jantar e comi junto com ela, depois assistimos um pouco de tv. Ela não demorou muito para dormir naquela noite, e meu sono veio logo também. Eu fechei a porta do quarto dela com cuidado e fui pro meu próprio quarto. Eu me cobri com o fino lençol azul da cama e fechei os olhos.

. . .


                   Aquela voz está desesperadamente tentando me tirar daqui. De alguma forma, posso senti-lo. A neve está caindo cada vez mais. Minhas pernas estão geladas. Aquela pessoa deve estar com muito mais frio do que eu. Afinal, ela está lá fora, e eu estou aqui dentro. Mas talvez...

                                                            Só talvez...

                                                  Lá fora seja primavera.

 Me salve... 

— Onii-chan! 


. . .

Eu acordei com suor escorrendo por todo o meu rosto. Aquele sonho havia sido muito real. Uma garota de cabelos brancos, totalmente acorrentada num lugar escuro, gritava por ajuda. Ela estava apavorada. Eu sentei. Ainda estava muito afobado. Eu olhei na direção da porta, por onde uma fresta de luz passava. Sem conseguir me acalmar, tudo que eu pude fazer foi externar minha única dúvida.

O que... foi isso?

. . .

Chiharu - 04

Me salve.

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