A Rosa Fantasma - Athazagoraphobia I

A marionete, o cantar dos pássaros e às escadarias para o paraíso...



Depois de algum tempo sem postagens finalmente estamos de volta. Fiquem com mais um capítulo de A Rosa Fantasma com uma boa dose de correria, lobos e destruição para dar uma animada no fim de semana. Curtam a nossa página no Facebook, e se você tiver vontade de publicar sua própria história na Noveland entre no nosso grupo!


                                                                                     "Página do projeto"


Capítulo 2

Athazagoraphobia Pt.1

Era uma vez um jovem cientista de olhos azuis. Sua infinita curiosidade era o combustível que movia seus membros. Sua insaciável busca por conhecimento era a água que matava a sede de seu corpo. Aquele homem, refinado e educado, inconscientemente ganhou o respeito de pessoas influentes e poderosas, sendo reconhecido com apenas 20 anos de idade como um dos mais conceituados cientistas de toda a União Sul-americana.
Durante o nascer do sol o jovem cientista encontrou um pássaro que havia perdido uma de suas assas. Ele o acolheu com um sorriso iluminado e o levou para dentro de seu laboratório.
— Se com a ajuda da ciência eu criasse e te desse uma nova assa... Você olharia para o céu e voltaria a cantar? Você tentaria voar através das nuvens novamente?
Disse o cientista com um sorriso confiante.
Numa manhã de poucas nuvens, após meses de estudo e trabalho, o jovem cientista encontrou a cura para uma praga que matava centenas de pessoas diariamente. Ele ergueu o pequeno frasco de vidro contra a luz de uma lamparina e expirou lentamente.
— Se este liquido salvar toda uma nação... Serei lembrado pelas gerações futuras como um herói? Como aquele que salvou o mundo?
Disse o cientista com seus lábios tremendo de tanta excitação.
Sempre que olhava para a imensidão do céu azul novas criações surgiam, e imediatamente ele as colocava em prática. O jovem cientista queria que seu dom e sua sabedoria fossem sempre úteis para a humanidade. Não como os feitos de um humano, mas sim como os feitos de um salvador. Ele queria que no futuro todos lembrassem dele como a pessoa que revolucionou a ciência.
Poucos eram aqueles que possuíam um coração tão brilhante, tão puro. Sentimentos tão profundos e honestos, mas ao mesmo tempo tão sensíveis e frágeis. Sua alma era como um castelo de cartas, bastando um simples sopro para que tudo desmoronasse.
Numa tarde de garoa o jovem cientista observava um corpo sem vida sobre uma mesa estreita. Ele olhou para o alto e deu uma risada fraca enquanto calçava suas luvas cirúrgicas.
— Se com o poder da ciência eu criasse e te entregasse um novo coração que pudesse bater em seu peito... Você abriria os olhos? Você viveria novamente?
Disse o cientista com seus olhos brilhando de tanta empolgação.
O jovem cientista acabou se afogando em sua própria curiosidade enquanto navegava pelo fascinante universo do corpo humano. Dia após dia ele cortou e investigou, de novo e de novo, parando apenas no momento em que aprendera todos os mínimos detalhes sobre o funcionamento daquele corpo. Cada músculo... Cada órgão... O jovem cientista sabia tudo sobre cada um deles.
Aqueles olhos azuis cheios de fascínio estavam a apenas um passo de descobrir os segredos da vida e da morte.
Durante um anoitecer chuvoso o jovem cientista foi chamado às pressas até sua pequena residência. Lá encontrou o corpo inerte de sua esposa. A pessoa que ele mais amava, caída sobre um tapete de camurça manchado por um líquido carmesim que escapava do corpo frio dela.
Aquela mulher carregava no ventre um filho do cientista, mas alguém havia roubado a pequena vida que residia dentro dela. Sem sua amada e seu herdeiro, o jovem cientista gritou em desespero.
— Se eu chorar até a luz deixar meus olhos... Se eu gritar seu nome até minha voz falhar... Você voltaria a respirar? Você tocaria meu rosto e diria ‘vai ficar tudo bem’ com aquele sorriso gentil no rosto?
Disse o cientista em meio às lágrimas de pavor que desciam pelo seu queixo e caiam sobre o rosto de sua amada.
Aquele que queria livrar o mundo das trevas foi o primeiro a ser devorado por ela. O jovem cientista não deixou que mais ninguém chegasse perto de sua esposa. Não deixou que ninguém o consolasse. Ele se isolou em sua casa, e deixou que o corpo de sua amada repousasse sobre o mesmo tapete em que a encontrou, por dias e mais dias.
Numa noite sem estrelas o cientista enlouquecido, cercado por centenas de livros, buscava desesperadamente uma forma de trazer a pessoa que ele amava de volta. Mas mesmo após dar tudo de si, ele não conseguiu encontrar uma cura para a morte. Até mesmo sua genialidade tinha um limite.
Os olhos sem reflexo daquela mulher continuavam fitando o cientista de longe, como se estivesse implorando para que ele desse um fim à sua agonia. Ela queria chegar ao céu, mas havia alguém parado entre ela e as escadarias para o paraíso.
Numa manhã silenciosa de inverno o jovem cientista voltou seus olhos para o alto, procurando aquele céu azul que tanto o inspirava, mas encontrou apenas nuvens negras cercadas por um cinza inexplicavelmente mórbido. O cientista não conseguia seguir em frente sem sua esposa. Ele não era mais capaz de compreender seus próprios sentimentos, não tinha mais forças para gritar, não queria mais sentir. Só restava na sua vida aquela reconfortante solidão que devorava sua sanidade com uma mordida de cada vez.
Numa madrugada tempestuosa o jovem cientista pegou alguns de seus objetos cirúrgicos e foi ao encontro do corpo de sua esposa, onde com um último sorriso a abraçou forte.
— Quando te encontrei descobri a beleza da vida. Quando você me deixou sem um adeus, descobri a agonia do sofrimento. Fui manipulado pelo destino como uma marionete, para acabar sendo descartado como lixo após dar tudo que tinha. Sem você para me salvar fui engolido por uma tempestade de desespero...
Sussurrou o cientista com um tom monótono e vazio.
Suas mãos tremiam levemente enquanto ele cortava o corpo de sua amada, procurando por uma forma de aquecê-la novamente. Ao fundo o tic-tac de um velho relógio parecia amplificado, abafando o barulho da navalha cortando a carne, ressoando em suas infinitas badaladas.
O cientista e sua marionete. A putrefação e a escuridão preenchendo uma pequena sala de estar, agora tomada por poeira e teias de aranha. Os fios que ligavam os membros da mulher à este mundo haviam sido cortados há muito tempo, deixando que seu corpo desmoronasse aos poucos, voltando a sua derradeira origem.
Enquanto a mutilava, o jovem cientista sussurrava frases aleatórias, sem nexo ou ligação, como um louco queimando em sua própria insanidade.
— Por que eu? Um simples tolo dispensável! Eu e apenas eu, lançado no fogo do inferno e nas garras do Diabo. Abandonado pela pessoa que eu mais amava, por Deus e pelo mundo que eu tanto protegi...
O cientista gargalhava com um já familiar tom sem vida.
Ele, que antigamente fora conhecido por ser curioso, educado e inteligente, finalmente havia se tornado alguém morto por dentro, como a marionete que ele tanto amava.
11
22:41 P.M – Entrada de Jothenville
Pequenos pingos de chuva começavam a cair, anunciando a chegada de uma impiedosa tempestade. Dentro da profunda escuridão daquela floresta noturna, duas pessoas fitavam a gigantesca muralha da cidade imersa em silêncio.
— Parece que finalmente chegamos, irmão.
Uma garota de pele morena e cabelos castanhos falou com um sorriso simpático no rosto. Ela usava um vestido roxo sem mangas que corria até pouco acima de seus joelhos. No pescoço dela um colar redondo banhado a ouro com o desenho de uma assa comprovava que ela era uma integrante da Legião de Mahyra. Sua estatura era baixa, motivo para frequentemente ser confundida com uma criança.
— Você tem certeza de que devemos aparecer sem avisar, Karen? Segui-los a essa hora da noite faz com que pareçamos dois perseguidores...
O garoto colocou as quatro malas que estava carregando sobre o chão enlameado. Ele tinha mais de 1,85m de altura e vestia o usual terno dos soldados da legião. Seus cabelos castanho escuro corriam até pouco acima de seus ombros. Na sua cintura haviam duas bainhas que guardavam facas longas e curvadas. Sua expressão demostrava hesitação e ansiedade, como uma criança com a difícil tarefa de escolher apenas um de seus dois brinquedos favoritos.
— Ora, ora, irmão idiota. Ellenia é sua esposa, não é? Ela fugiu com outro homem sem dar explicações, então é sua obrigação impor a punição necessária naquela safada e no ladrão de mulheres que está com ela.
— A verdade chocante... Ela fugiu de mim... Será que a Ellenia me odeia tanto assim...?
O garoto abaixou a cabeça, fungando e engolindo o choro. Karen acariciou as costas de seu irmão, consolando-o.
— Não precisa se preocupar com isso, Adam... Você é um homem incrível, então tenho certeza absoluta de que conseguirá roubar o coração dela algum dia...
— Irmã...
Karen deu um sorriso empolgado, deixando a autoconfiança de Adam no máximo novamente.
— Então... Snif... Snif... Como vamos entrar neste lugar? Logo começará a chover e a cidade mais próxima daqui está há três horas de caminhada.
Adam falou enquanto confirmava que não haviam puxadores ou batedores nos portões da cidade. Depois voltou seus olhos para as nuvens carregadas e em seguida para as quatro malas que ele havia carregado por três longas horas de caminhada. Todas muito pesadas, onde metade possuía livros no lugar de roupas.
— Estou cansado... Não aguento carregar estas bagagens por mais nem um minuto. Você tinha mesmo que trazer todas essas coisas?
Karen franziu o cenho e levantou o dedo indicador, como se fosse uma professora repreendendo um aluno. Antes mesmo dela abrir a boca, Adam já estava suspirando com uma cara de ‘vai começar de novo’.
— O que seria de uma pesquisadora sem seus materiais de pesquisa, irmão? Todo o conteúdo destas malas são de crucial importância para que possamos sobreviver em qualquer circunstância. Cada um destes livros foi minuciosamente escolhido para que possamos ter o auxílio necessário na hora de encarar os mistérios que estas estradas e florestas escondem.
— A maioria deles são romances, não é mesmo?! Como romances poderão nos ajudar a sobreviver?!
Ignorando-o, Karen prosseguiu com suas explicações.
— Além disso, livros são o alimento da alma! Quando tenho um bom livro em mãos, não preciso de mais nada.
— Se não comer um alimento de verdade você morre!
Adam suspirou pesadamente, desistindo de uma briga que já parecia perdida desde o início.
— Agora respondendo sua pergunta anterior... Qual era mesmo? Ah, sim! Como vamos entrar neste lugar? Hum... Bem, se ninguém nos atender só precisamos botar este monte de pedras empilhadas abaixo. Não deve dar muito trabalho.
Adam encarou a resistente muralha e acenou com a cabeça, concordando com sua irmã.
Nesse momento gritos cortaram o silêncio da noite, infestando o ar com o peso do desespero. O tumulto que vinha do outro lado dos portões fez os lábios de Karen tomarem a forma de um sorriso empolgado.
— Parece que estão tocando a nossa canção, irmão. Você me acompanharia nesta dança?
A pequena garota de vestido roxo sorriu e estendeu sua mão direita na direção do garoto de terno. Adam curvando-se gentilmente, segurou e beijou a mão dela.
— Será um prazer acompanhá-la, irmãzinha. Vamos dançar.
12
18:12 P.M – Centro de Jothenville
A estreita pousada de quatro andares, construída inteiramente de tijolos e concreto sem nenhum revestimento ficava a menos de trinta passos de uma gigantesca capela. Acima da entrada principal havia um grande letreiro desgastado onde estava escrito ‘Pensão da Abadia’ com letras que só poderiam ser descritas como horríveis. As esquadrias da edificação aparentavam estar bem fragilizadas por culpa dos ataques de cupins e do tempo.
— Parece ser um lugar bem aconchegante, não?
Owen falou enquanto caminhava rumo àquela velha construção.
— Tudo que vejo é um amontoado de lixo... Por que não damos meia volta e procuramos por um lugar que tenha mesmo cara de um alojamento, e não de uma... casa mal assombrada...
Ellen forçou uma risada.
Para alguém que se gabava por não temer nada, sua voz estava alterada o suficiente para deixar Owen intrigado, fazendo-o pensar que a garota ao seu lado estava com medo de fantasmas ou algo do gênero.
— Você ouviu o que Aria disse. Todas as outras hospedarias estão lotadas, e esta é a última que ainda possui quartos vagos. É mais barato alugar um único cômodo do que pagar o aluguel de uma residência inteira... A maioria das pessoas que não tinham condições de bancar o alto custo de vida acabaram em lugares como este. Devem haver famílias inteiras em cada apartamento.
Ellen estava exausta e seu pé descalço bastante ferido por ter sido obrigada a caminhar por tanto tempo. E para piorar, o céu estava fechado por causa de uma tempestade que ameaçava cair a qualquer momento. Realmente não havia outra escolha além de passar a noite naquele lugar.
— Isso não vai dar certo... Estou com um mal pressentimento...
Ellen sussurrou, com seu rosto estranhamente corado.
— Não sabia que você tinha medo de lugares como este.
— Não é nada disso... É... outra coisa...
Sem entender o que ela queria dizer, Owen deu de ombros e abriu a porta da hospedaria.
Contrariando a vista grosseira do lado de fora, a recepção era um local incrivelmente harmonioso e decorado. No lado direito havia um sofá estreito de dois lugares e uma mesa de chá com adornos em dourado. No centro uma escada de metal polido que levava aos andares de cima, e no lado esquerdo havia um pequeno balcão com duas prateleiras na parede atrás dele, recheadas com livros limpos e bem cuidados. Em todas as paredes haviam incríveis pinturas à óleo, abordando desde paisagens até bustos de pessoas. Não era de se admirar que Owen tenha ficado fascinado com aquele lugar.
— Mamãe! Temos clientes!
Ellen e Owen pularam de susto ao notarem a presença de uma terceira pessoa naquele ambiente.
Num canto afastado e escuro havia uma garota parada de frente para uma tela com o dobro de seu tamanho, segurando um pincel que fora banhado em tinta ciano. Seus cabelos eram ruivos como o céu ao entardecer, seus olhos eram de um castanho escuro que beirava o preto. Seu rosto arredondado, tão perfeito quanto o de uma boneca, mostrava que ela tinha de 12 à 13 anos de idade. Em nenhum momento ela fez questão de desviar sua atenção do quadro para os recém chegados.
Em resposta ao chamado daquela criança, uma mulher desceu as escadas até a recepção. A semelhança dela com sua filha era incrível. Qualquer um que observasse as duas juntas poderia jurar que estava olhando para um retrato de antes e depois.
— Bem-vindos. Meu nome é Abadia Lima, dona desta pensão. Posso ajudá-los?
Ela falou assim que parou atrás do balcão.
— Queria alugar dois quartos por três dias e três noites. Fomos informados que sua hospedaria ainda possuí cômodos vagos.
Owen respondeu educadamente.
— Ah... Desculpe-me, mas no momento estamos com apenas um quarto disponível...
— COMO ASSIM APENAS UM QUARTO?!
Ellen gritou e literalmente partiu para cima do balcão, como um pequeno gato mostrando suas garras. A recepcionista recuou alguns passos, surpresa com o ataque súbito da garota de vestido esfarrapado.
— S-sim! Desculpe-me!
— Ei, Ellen! Não trate a dona do lugar desta maneira!
— Não... Não, não, não, não, não! Isso deixou de ser apenas uma maré de azar, já virou maldição! Os deuses devem estar adorando brincar com a minha cara!
— Ah! Então era por isso que você estava agindo daquela forma esquisita! Não era medo, e sim ansiedade...
Owen sibilou de uma forma desdenhosa. Ellen encarou seu parceiro com um olhar mortal, fazendo-o calar no mesmo instante.
— Você quer que eu passe a noite com um maníaco pervertido como ele?! Você está dizendo que vou ter que dormir na, na, na mesma cama que ele?!
A recepcionista continuava a recuar lentamente, achando que Ellen mostraria suas presas e pularia para atacá-la a qualquer momento.
— Primeiro! Não sou nenhum maníaco pervertido. Segundo! Ninguém afirmou que iremos dividir a mesma cama. Terceiro! Já faz quase um ano que moramos sobre o mesmo teto, então qual o motivo para reclamar logo agora?
— Pelo simples fato de que em casa, mais precisamente no meu quarto, fico protegida por quatro paredes e uma porta que devidamente possui uma dezena de trancas. Só Deus sabe o que você pode tentar fazer com meu corpo enquanto eu estiver dormindo...
Ellen estremeceu de uma forma exagerada, fazendo com que uma veia de raiva pulsasse na testa de Owen.
— Ellen... Você devia saber que não é inteligente dar ideias como essa para um jovem na flor da idade como eu...
Com um sorriso malicioso no rosto, Owen pegou sua carteira e retirou de lá algumas notas de dinheiro.
— Vamos ficar com o quarto...
Sacou mais duas notas altas e entregou nas mãos de Abadia.
— ...E este extra é para caso algum vizinho apareça durante a madrugada, reclamando que estamos fazendo muito barulho...
Owen assobiou e tocou a bochecha de Ellen com seu dedo indicador, fazendo-a paralisar.
— Eh... Eeeehhh?! Q-QUEM TE DEU PERMISÃO PARA ME TOCAR, IDIOTA!
Owen caiu como uma pedra assim que Ellen o chutou entre as pernas. Ele gritou e rolou, agonizando sobre o chão.
— Eu havia deixado bem claro que se você voltasse a falar merda iria acabar dessa manei—
Plaft.
Algo se chocou contra o rosto de Ellen, pegando-a de surpresa.
— Ai! Ahn?!
Um líquido azul escorreu pela sua bochecha, onde um pouco acabou por entrar dentro de sua boca. O gosto forte de tíner fez Ellen tossir sem controle. Assim que olhou para o chão ela encontrou o objeto que havia acertado seu rosto.
— Um... pincel...?
— Dá para pegar logo a chave do quarto e desaparecer da minha frente? Não consigo pintar com você berrando por aqui.
Com uma feição debochada e calculista, a criança pintora encarou Ellen pela primeira vez. O pequeno sorriso em seu rosto estava repleto de travessura e divertimento. Naquelas íris que pareciam devorar tudo que tocavam, o único sentimento que não demonstravam era medo.
Ellen precisou de mais dez segundos para entender o que havia acontecido, e quando esse momento chegou, uma fúria incontrolável tomou seu corpo.
— O QUE DIABOS VOCÊ ACABOU DE FAZER PIRRALHA?!
Como um dragão cuspindo fogo, Ellen começou a caminhar apressadamente na direção da garota ruiva.
— O que você acha? Estava tentando colocar um pouco de cultura dentro da sua cabeça, mas pelo som que ecoou quando o pincel acertou sua testa, notei que talvez seu cérebro seja pequeno demais para que caiba algo dentro.
Abadia tapou a própria boca, perplexa por causa da atitude de sua filha.
— Sofia! Mais educação ao falar com os clientes!
Ellen ficou sem palavras, e por esse motivo, Owen (que ainda tentava se levantar) começou a rir sem parar. Ellen finalmente havia encontrado um oponente que não tinha medo de seus ataques histéricos.
— Anã... Você aparenta ser uma daquelas pessoas que amam aprender coisas novas... Então que tal eu ensinar um pouco da boa e velha matéria chamada educação? Eu nem preciso de um livro, apenas um resistente galho de goiabeira será o suficiente...
— Com braços finos e anoréxicos como os seus... Tenho certeza de que não sentirei nem cocegas.
A criança chamada Sofia deu um sorriso triunfante, ciente de que havia ganhado o duelo de palavras.
O que restava da escassa paciência de Ellen finalmente acabou, e ela correu para cima da criança, berrando e cuspindo fogo para todos os lados. Mas pouco antes de alcançá-la, Owen segurou seus braços e a puxou na direção da escada.
— SOLTE-ME OWEN! Aquela pirralha precisa aprender a arte de respeitar os mais velhos! Apenas um cipó e duas palmatórias será o suficiente! Solte-me! Solte-me!
Owen lacrimejava de tanto rir. Ele acenou para Abadia, pedindo para que ela arremessasse a chave do apartamento, e seu pedido foi atendido.
— Quarto 405 senhor...
— Obrigado!
Owen piscou para Sofia, como se estivesse agradecendo pelo entretenimento e continuou arrastando Ellen, que não parava de se debater e gritar como uma criança mimada.
— Ah, só mais um aviso! Se eu fosse você lavaria o rosto o mais rápido possível! Tinta à óleo não é conhecida por fazer bem para a pele, apesar de que é impossível existir algo capaz de deixar seu rosto pior!
Sofia riu, mostrando seus caninos como um pequeno cachorro, enfurecendo ainda mais a já descontrolada Ellen.

◊ ◊ ◊

— Ainda não consigo acreditar que aquela nanica foi capaz de fazer algo assim com alguém que nunca viu antes!
— Esqueça isso, foi apenas uma brincadeira.
— Que parte daquela humilhação pareceu uma brincadeira para você?!
O espaçoso e requintado quarto da hospedaria era quase todo inspirado no estilo barroco. Havia uma cama de casal, um criado mudo (que fora movido até uma parede para que um fino colchonete pudesse ser esticado sobre o piso de concreto queimado) e um delicado lustre de cristal, com quatro lâmpadas que acendiam com o auxílio de gás tubulado. A pintura marrom das paredes e o teto curvado dava uma aparência gótica ao local. No pequeno banheiro da suíte, o espelho e todas as louças eram de um dourado brilhante e chamativo.
— Uma tragédia acontecerá assim que eu encontrar aquela baixinha novamente...
Dentro do banheiro Ellen resmungava em meio a risadas dissimuladas. Ela tentava retirar a tinta que impregnava seu rosto usando um pedaço de sabão e a água de um reservatório ao lado da pia.
No quarto Owen havia retirado seu sobretudo, ficando apenas com a blusa preta sem mangas que usava por baixo. Logo após retirou seu chapéu e o largou num canto qualquer.
— Ellen, acha que o laboratório debaixo da terra está relacionado de alguma forma com os poderes da pessoa de capuz?
Owen deitou sobre a cama. Mesmo após se livrar de todo aquele equipamento seu corpo continuava estranhamente pesado. Essa tinha sido uma tarde muito complicada, e Owen suspeitava que iria ficar ainda pior. Uma voz suave sussurrava na sua mente, dizendo que ter colocado a governanta sobre custódia não significava o fim dessa história.
Ellen pegou um pano no toalheiro e secou o rosto. Seu reflexo no espelho estava muito pálido, algo causado pela grande quantidade de sangue que ela perdeu mais cedo, e pelo uso abusivo de suas habilidades.
— Não sei explicar o que havia lá em baixo... Mas aquelas pessoas que encontrei estavam com certeza servindo de cobaias para algo maior. Se estivermos mesmo procurando por alguém com poderes sobrenaturais, deve ter sido naquele lugar que essa pessoa foi criada.
Owen ergueu sua mão direita que tremia compulsivamente, num claro sinal de que ele estava perdendo o controle de seu corpo. Diferente de sua parceira, que acolhia o medo que sentia, Owen o renegava. Guardava e escondia todos os seus sentimentos num lugar que nem mesmo ele seria capaz de encontrar.
— Algo ruim está para acontecer, eu posso sentir...
Ellen saiu do banheiro e sentou na beirada da cama. Os dois passaram alguns minutos assim, num profundo silêncio.
— Você consegue ouvir os pássaros cantando bem longe daqui, Owen? Você é capaz de imaginar as assas deles batendo, enquanto bailam pelo ar, buscando pelo inalcançável horizonte?
Owen fitou a garota ao seu lado com uma expressão de curiosidade, tentando entender os significados por trás daquelas palavras, tentando decifrar que tipos de sentimentos aquela menina impertinente queria transmitir. 
— Não... O ser humano não possui a capacidade de ouvir algo acontecendo tão longe...
— Errado. Você não consegue ouvi-los por que sua alma não para de gritar.
— Minha alma está gritando?
Mais um longo momento de silêncio.
— Sabe... De todos os Legiors que conheço, você é aquele que mais se esforça para cumprir os deveres de um soldado. Você é quem mais se sacrifica para ajudar as pessoas. Mesmo que eles te ignorem, mesmo que eles continuem a te odiar, você nunca deixará de ajudá-los. Seus esforços quase nunca são recompensados... Essa é uma lenta e cruel forma de tortura, não acha? Nem mesmo você se dá conta disso, mas toda essa desconfiança, todo esse medo, acaba ferindo seus sentimentos pouco a pouco. Você sempre está sofrendo, por isso sua alma sempre está gritando.
Owen não conseguia desviar o olhar. Era como se houvesse algo naqueles olhos verdes que o prendesse, impedindo-o de escapar.
— O que acontece com aqueles cuja alma nunca para de gritar?
— Isso não é algo que dê para prever. O cérebro humano encontra diferentes maneiras para encarar o sofrimento. Há aqueles que entram em uma profunda depressão, alguns enlouquecem, outros encontram o alívio que tanto desejam ao machucar outras pessoas...
— O que devo fazer para acalmar a minha alma? O que devo fazer para não perder minha sanidade?
Ellen respirou e expirou profundamente enquanto fitava suas próprias mãos, perdida em pensamentos.
— Eu odeio minhas mãos, sabia? Elas já machucaram tantas pessoas... Já trouxeram sofrimento a tantas outras... Sempre que toco em algo vivo sinto que estou roubando a vida que existe ali... Eu achava que era uma ceifeira, nascida apenas para me alimentar da alma dos vivos...
Ela voltou seus olhos para Owen e sorriu gentilmente.
— ...Mas então encontrei você. Pela primeira vez fui capaz de dar vida a alguém em vez de retirá-la...
Ellen deitou ao lado de Owen e segurou a mão direita dele, apertando-a com força. Não havia malícia ou qualquer outro sentimento oculto nos seus gestos, apenas a simples vontade de ajudar. Ela conseguia transmitir uma calma que deixava Owen perplexo, sem saber como reagir. Era como se ela tivesse o poder de hipnotizá-lo com apenas um olhar.
— Não me entenda mal, eu ainda odeio essas mãos... Mas pelo menos agora eu sei que há alguém nesse mundo que posso tocar sem temer machucar...
Ellenia era como o sol. Enquanto está longe é algo capaz de aquecer, mas ao se aproximar torna-se algo capaz de queimar e torturar. Owen não tinha coragem de dizer que o toque dela queimava sua pele.
— ...Sua alma só irá parar de gritar quando você tiver a coragem de fechar os olhos e ouvir...
Ela completou num tom sereno.
— Como você pode me conhecer mais do que eu mesmo?
— Nós estamos ligados, lembra? Se você não puder ouvir os pássaros cantando, eu também não serei capaz de ouvi-los. Se sua alma está gritando, a minha está gritando junto com a sua.
Não havia mais nada a ser dito. Os dois permaneceram em silêncio, um fitando o outro sem piscar. Owen não notou o momento em que sua mão havia parado de tremer pois estava perdendo a consciência aos poucos. Apenas dois minutos depois ele adormeceu.
De repente um canto sutil e um bater de assas ecoou dentro do subconsciente dele. A imagem de um céu ao entardecer preencheu sua mente.
Um casal de pardais atravessaram uma nuvem enquanto encaravam fixamente o sol alaranjado. Eles dançavam suavemente, rezando para que sua fonte de calor não desaparecesse.
Eles nunca conseguirão tocá-lo, sabia?
Uma voz doce ecoou pelo céu junto ao bater de assas.
Aqueles pássaros são como você, Owen...
O sol é inalcançável, e mesmo sabendo disso eles continuam perseguindo-o.
No horizonte aquela gigantesca bola de fogo continuava a seguir seu rumo, abandonando os pássaros, deixando que as trevas devorassem o céu e a terra.
Já está na hora de parar de sofrer por mim. Já está na hora de parar de me procurar.
Owen tentou gritar mas nenhuma palavra escapou pela sua boca. O céu alaranjado de um segundo para o outro ganhou um tom avermelhado, como sangue. 
Eu sou inalcançável, como o sol.
Nesse momento ele notou que estava de joelhos no quintal de uma casa em chamas. Tudo estava destruído, lágrimas desciam sem controle pelo seu rosto. Suas mãos estavam húmidas, mas não era suor e sim um líquido bem mais perturbador. Caído à um passo de distância estava o corpo de uma pessoa. Seus olhos ainda estavam abertos, encarando o jovem garoto de cabelos pretos.
Seu corpo estava coberto por sangue. O mesmo sangue que banhava as mãos de Owen.
Me esqueça... Me deixe morta.
Disse a garota ensanguentada com um tom de voz doce e um sorriso travesso no rosto.
Toc toc toc...
Owen despertou ao ouvir o som de alguém batendo na porta. Seu coração saltava desesperadamente em seu peito. Suor frio descia pelo seu rosto. Ele olhou para a janela do apartamento, notando que já estava escuro do lado de fora. O colchonete ao seu lado estava vazio, mas uma luz que escapava pela brecha da porta do banheiro entregava a localização de Ellen.
— Ouvir os pássaros chorando não era bem o que eu esperava, bruxa...
Owen levantou e foi até a porta. Assim que fitou a pessoa parada no lado de fora seu corpo congelou por um breve momento.
Ela era uma garota de longos cabelos pretos e olhos azuis. Aparentava ter de 19 à 20 anos e usava um simples vestido bege. Seu corpo irradiava uma atmosfera sedutora mesmo que involuntariamente.
— E você ainda me pede para te esquecer?
— Senhor?
— Não foi nada. Apenas confundi você com uma antiga amiga. Posso ajudá-la?
— Boa noite. Você é o Sr. Owen?
— Sim.
— Marcos Arthmael pediu para que fizéssemos a entrega destes alimentos...
Ao lado dela havia um carrinho com várias louças e panelas que traziam consigo um delicioso aroma. Poucos passos atrás estava Sofia com um segundo carrinho igualmente carregado de alimentos.
— Por favor, entrem.
— Com licença...
E assim as duas garotas entraram, levando os carrinhos até o centro do quarto.
— Ora, ora... Nos encontramos novamente, toquinho de amarrar jegue... Parece que você encolheu ainda mais desde a última vez que te vi...
Ellen falou com um tom provocativo. Ela havia acabado de sair do banho pois seus cabelos ainda estavam molhados e seu corpo coberto apenas por uma toalha.
— Olha se não é a cabeça de vento. Eu pensava em você como uma pessoa depravada, mas aparentemente essa é uma definição errada. Você está mais para uma concubina.
Sofia respondeu com um tom brincalhão.
A garota de cabelos pretos encarava Ellen com os olhos arregalados. Owen notou imediatamente que ela havia entendido errado a situação.
— D-desculpe-nos por termos aparecido em um momento tão inconveniente! Vamos Sofia, não devemos importuná-los por mais tempo!
— Espere, não é nada disso que você está pensando...
Sem entender o que estava acontecendo, Ellen correu até os carrinhos de comida e retirou a tampa de uma das panelas. Ao encarar o gigantesco frango assado um grande sorriso tomou seu rosto.
— Ahhh... Isso parece delicioooso...
Ela fez questão de prolongar a palavra delicioso com a intenção de provocar inveja na pequena Sofia, e seu plano foi um sucesso. A criança ruiva estava com a boca levemente aberta enquanto encarava a comida. A garota de cabelos pretos estava prestes a puxar Sofia para a porta quanto o cheiro da comida também invadiu seus pulmões, fazendo seu estômago roncar alto em resposta.
Owen sorriu.
— Nossa, nossa... Vocês aceitariam jantar conosco? Tenho certeza de que não conseguiremos consumir tudo isso sozinhos.
— Oquiiiêê?!
Com a boca cheia de comida Ellen tentou iniciar uma discussão, mas Owen a censurou imediatamente, sem dar brechas pra negociações.
— Não fale com a boca cheia, e vista alguma coisa antes de jantar!
13
20:09 P.M – Pensão de Abadia 
— Meu nome é Sofia Lima e essa envergonhada aqui é minha irmã Bianca. Tenho outros dois irmãos, mas eles estão meio ocupados tentando pescar alguma coisa num rio morto perto daqui.
Um pequeno sorriso tomou o rosto de Sofia assim que um suculento pedaço de carne tocou sua língua.
— Hum... Então você também é filha da dona deste lugar?
Ellen direcionou essa pergunta para Bianca, sem tentar esconder a curiosidade no seu tom de voz.
— Não sou filha de sangue... Eu fui adotada...
Bianca respondeu, evitando encarar o olhar lancinante de Ellen.
— Isso explica a falta de semelhança.
— Ei sua idiota nudista, não fale com a minha irmã usando esse tom!
— Quem você está chamando de nudista?!
— Você prefere ser chamada de moradora de rua?
Sofia apontou para o vestido sujo e surrado que Ellen foi forçada a usar por não ter outro, fazendo-a corar de vergonha e raiva.
— Você não sabe o momento de ficar calada não é mesmo, barata mal criada?!
A garota ruiva deu de ombros, ignorando Ellen, que iniciava mais uma rodada de discussão unilateral.
Naquele círculo de pessoas sentadas sobre o chão com várias panelas no centro, as gritarias e as risadas haviam transformado aquele quarto num ambiente agradável, algo bastante incomum no momento de crise que Jothenville estava passando. Owen soltava uma risada entre cada garfada. Bianca do lado oposto deixava escapar um sorriso de vez em quando, mas na maior parte do tempo tentava esconder sua vergonha por causa das ações de sua irmã menor.
— Você sempre soube que era adotada?
Owen perguntou para Bianca assim que terminou de comer.
— Sim... Meus pais nunca tentaram esconder isso de mim.
— Nunca teve vontade de conhecer sua verdadeira família?
— Hum... Não posso dizer que nunca tive a curiosidade de saber quem eles são... Mas nunca tive a necessidade de buscar por eles. Sabe, eu tenho uma vida boa aqui. Minha família me ama de verdade, e isso é o suficiente para mim.
Os dois continuaram conversando normalmente sem perceberem que estavam sendo encarados pelas outras duas garotas, que possuíam olhares mortais em seus rostos.
— Seu pai também cuida desta pousada?
— Meu pai, Dio Lima, trabalha como um guarda para o governo de Jothenville. Hoje ele está de serviço.
(Encara...) (Encara...)
— Qual o motivo desse interrogatório, Owen?! Você por acaso está planejando pedi-la em casamento?
Finalmente Owen e Bianca notaram os dois pares de olhares perfurantes que eram direcionados para eles.
— Vocês parecem estar se dando muuuuito bem... Mas senhor Owen, para conseguir a mão dela é necessário ter a minha permissão...
Sofia sussurrou em meio a risada dissimuladas.
— Hoho... Será que você tem um complexo pela sua irmã, gnomo?
Ellen perguntou com a intenção de envergonhar Sofia, mas a resposta da garota ruiva foi praticamente o oposto do esperado.
— E como não teria?! Minha irmã é muito, muito linda! Olhe para este rosto esculpido por anjos, bonito e delicado. Esta timidez hipnotizante e este sorriso fascinante. E o que dizer sobre este corpo perfeito? Todas as curvas nos seus devidos lugares, peitos, cintura, nádegas... Todas as manhãs eu agradeço por ter uma irmã como ela!
Owen e Ellen estavam boquiabertos. O rosto de Bianca parecia que ia explodir de tão vermelho que estava. Sofia começou a gargalhar, e essas gargalhadas foram acompanhadas pelas risadas de Ellen e Owen.
Nesse momento alguém bateu na porta. Owen levantou e a abriu. Do outro lado estava um pequeno garoto de cabelos avermelhados, claramente um dos irmãos de Bianca e Sofia. Ele cumprimentou Owen e acenou para suas irmãs.
— Bianca, Sofia, a mamãe precisa de vocês lá em baixo.
Bianca levantou e sorriu.                        
— Muito obrigado pela refeição Sr. Owen e Srta. Ellen. Vamos Sofia?
As duas juntaram todas as louças organizando-as sobre os carrinhos.
— A comida estava deliciosa, Amanda. Você é uma cozinheira incrível.
Owen falou assim que as duas irmãs saíram do apartamento. Essa afirmação pegou de surpresa não apenas Ellen, mas também a própria Bianca, que hesitou antes de responder.
— Muito obrigado... Saber que o senhor gostou me deixa feliz...
Owen sorriu gentilmente e deixou que os três irmãos fossem embora. Assim que eles desceram a escada uma feição sombria tomou seu rosto.
— O que foi aquilo?
Ellen perguntou com uma feição idêntica à de Owen.
— Se a empregada de Marcos não tem permissão para sair de seu quarto, quem você acha que preparou o jantar? Ao que parece não temos apenas uma pessoa trabalhando naquela casa.

◊ ◊ ◊

Para qualquer um que olhasse de longe aquela era uma cena bastante desagradável. Todas as luzes artificiais estavam apagadas, prevalecendo apenas a claridade que vinha do lado de fora. As únicas duas pessoas naquele quarto estavam em cantos diferentes, perdidos em seus próprios pensamentos, envoltos num silêncio que parecia não ter fim.
Apesar de estarem sempre juntos, Ellen e Owen eram por natureza pessoas solitárias. Apesar de se conhecerem perfeitamente havia algo que os afastavam. Algo que não podia ser explicado com gestos ou palavras. A ligação indestrutível que os uniam era também uma maldição.
Ellen estava deitada sobre a cama, ouvindo o barulho do vento forte que fazia a grande janela de vidro do apartamento tremular. Owen permanecia sentado sobre o colchonete, apoiando as costas contra uma parede, fitando o vazio.
— Qual será o nosso próximo passo?
A garota de cabelos brancos sussurrou num tom monótono, quebrando o silêncio que já durava horas.
— Se Marcos enviou o pedido para entrega de suprimentos, amanhã pela manhã eles devem estar se aproximando de Jothenville. Nós devemos escoltá-los para que possam chegar em segurança.
‘Todos que tentam sair da cidade são encurralados por dezenas de lobos’. Esse não é o motivo para a população desta cidade não conseguir escapar? Apenas duas pessoas para enfrentar dezenas de animais selvagens enquanto tentam proteger um comboio... Você não acha que essa é uma missão suicida?
Owen mordeu a unha de seu polegar. Ellen estava certa. Aquilo era algo impossível até mesmo para dois soldados vindos de um dos melhores exércitos do mundo.
— Ellen, você não acha essa história estranha?
— Que parte dela exatamente?
— Essa contradição. Todos os comboios que são enviados para Jothenville são atacados. Todas as pessoas que tentam fugir da cidade são encurraladas. Eu estava me perguntando... Por que os lobos não nos atacaram quando nos aproximamos da cidade?
Ellen sentou sobre a cama e fitou Owen.
— Hum... Essa não seria apenas mais uma prova de que há alguém controlando os lobos? Nós não fomos atacados por que a pessoa de capuz não sabia da nossa chegada.
— Exatamente. Não acredito que Marcos saia avisando para toda a cidade o momento exato em que o comboio de alimentos estará se aproximando. Então só resta acreditar que alguém próximo a ele esteja vazando as informações para a pessoa de capuz. Como você suspeita pode ser a própria governanta, ou talvez a cozinheira...
Ellen deu uma risada fraca e se espreguiçou de uma maneira exagerada.
— Você acha mesmo que a tal Bianca é uma suspeita? Ela não aparenta ser uma psicopata, não acha?
Owen deu um sorriso tranquilo.
— Você melhor do que ninguém deveria saber que não é inteligente confiar nas aparências.
Disse enquanto encarava a única pessoa nesse mundo que conhecia todas as suas máscaras, todas as suas mentiras.

HYAAAAAAAH!!! AAAAAHHH!!! HUAAAAA!!!

Uma série de gritos ecoaram pelos corredores da hospedaria. O lustre no teto começou a balançar levemente enquanto os objetos que estavam por cima do criado mudo tremulavam entre pequenos intervalos. Era como se um terremoto estivesse fazendo a estrutura do prédio tremer.
Owen levantou em um salto e sem pensar duas vezes saiu correndo do quarto. Ellen também levantou, mas antes de sair pegou o Sensorium que estava dentro do sobretudo de seu parceiro. Assim que ela tentou apressar o passo, seu pé descalço acabou prendendo na barra de seu vestido, fazendo-a cair no chão.
— Aaaahhh!! Que droga de vestido! Estou cansada de você me atrapalhando o tempo todo!
Ellen sentou e rasgou boa parte do pano de sua saia bem acima dos joelhos. Aquele vestido que custara uma fortuna estava agora completamente destruído, mas isso não foi motivo suficiente para tirar aquele sorriso travesso do rosto de Ellen.
— Vou chamar isso de minissaia! Acho que eu acabei de criar uma nova moda que fará sucesso no futuro! Quem precisa de todo este pano?!
E assim voltou a correr, agora mais livremente, na direção da escada.

◊ ◊ ◊

Owen fez a descida de três andares o mais rápido que seu corpo permitiu. Na recepção ele encontrou Abadia, Sofia e mais duas crianças, escondidas atrás do balcão.
— O que está acontecendo?!
Antes que Abadia pudesse responder um ataque violento contra a porta de entrada fez a estrutura do lugar tremer, derrubando várias das pinturas que estavam nas paredes. Primeiro Owen pensou que a porta estava trancada, mas considerando o fato de que ele estava em uma pensão 24h era mais provável que a pessoa do outro lado não sabia, ou era incapaz de girar uma maçaneta.
— Um assalto?! Estão querendo nos roubar!
Abadia e seus filhos gritavam toda vez que o prédio tremia.
— Por favor! Por favor, ajude minha irmã Bianca! Ela foi até o armazém do lado de fora e ainda não voltou!
Sofia implorou assim que seus olhos encontraram o jovem de cabelos pretos.
Owen voltou sua atenção para a porta. Se fossem apenas assaltantes ele poderia detê-los facilmente, mas ataques monstruosos como aqueles não podiam ser causados por humanos comuns. Ellen havia detalhado toda a sua batalha contra o mutante no subsolo, então Owen já podia imaginar o que estava do lado de fora.
Após mais uma série de ataques a porta voou das dobradiças e se chocou contra a parede oposta a ela, destruindo todos os quadros e abrindo literalmente um buraco nos tijolos.
Parado na entrada estava a figura de uma pessoa com olhos amarelos que brilhavam como faróis na escuridão. Ele vestia o que restara de um uniforme militar. Havia um corte profundo partindo do pescoço até o abdômen. Seu braço esquerdo havia sido decepado e sua mão direita estava deformada, cheia de veias pulsantes e unhas que pareciam garras, capazes de rasgar qualquer coisa. Sangue fresco ainda banhava completamente seu corpo.
Nesse momento uma forte tempestade começou a cair do lado de fora e uma incontrolável ventania adentrou a pequena recepção. Mas nem o barulho da tempestade ou a destruição causada pelo vento foi o suficiente para abafar o grito de Abadia e seus filhos, que estavam perplexos, sem acreditar naquilo que estavam presenciando.
— Pa-papai...? É você...?!
Sofia perguntou, tremendo com o frio repentino que tomou seu corpo.
A criatura gritou, preenchendo o ar com sua sede de sangue. Deixando claro que não havia mais nenhuma gota de humanidade nele.
14
22:37 P.M – Pensão de Abadia
O rugido gutural da criatura forçou todos no local a tamparem os ouvidos. Owen estava petrificado. Ele reconheceu aquele homem como um dos guardas que desceriam até a cidade subterrânea para resgatar os corpos dos cidadãos que Ellen havia encontrado.
Meu pai, Dio Lima. Ele é um guarda que trabalha para o governo de Jothenville. Hoje ele está de serviço’, havia dito Bianca.
Sofia tentou ir ao encontro de seu pai, mas Abadia não permitiu. Ela encarava fixamente aquela criatura de olhos cheios de ódio sem encontrar nenhuma semelhança com o homem gentil que conhecia. Normalmente o primeiro sentimento que Abadia tinha quando olhava para Dio era carinho e afeição, mas dessa vez foi diferente. Havia apenas medo e pânico corroendo seu coração.
            — Meu Deus... O que é isto...?
                            — O que está acontecendo?!
                                           — Um demônio...
Novas vozes ecoaram. Várias pessoas desciam a escada, parando assim que encontravam a figura sinistra que permanecia imóvel na porta. Menos de um minuto depois haviam cerca de trinta pessoas se espremendo no pequeno espaço da recepção. Owen entrou em pânico. Ele já havia presenciado a força e a velocidade de uma criatura como aquela e sabia que era impossível proteger todas aquelas pessoas num espaço tão pequeno.
Dio rugiu e deu um único passo para dentro da hospedaria. Uma ação estranha para alguém que aparentemente deveria ser incontrolável. Por isso Owen acabou comparando-o a um soldado parado na linha de frente, esperando pelas ordens de seu superior. Aguardando o sinal para atacar.
E apenas cinco segundos depois a ordem finalmente chegou.
Dio cravou as garras de seus pés no chão, pegou impulso e avançou rápido como o disparo de uma arma. Enquanto a multidão de pessoas tentava desesperadamente subir as escadas, Owen correu na direção do mutante. Mesmo sem estar com suas armas, mesmo sabendo que em uma luta corpo-a-corpo estaria em grande desvantagem. Ainda assim, sem pensar duas vezes, ele continuou a avançar.
Dio lançou um golpe circular usando as garras de sua única mão. Owen desviou agilmente e segurou o braço dele.
— Eu sou o seu oponente!
Ele girou o mutante e o lançou para o outro lado da sala. Dio bateu contra o sofá e caiu sobre a mesa de chá, deixando-a em pedaços.
— TODOS PARA FORA, AGORA!!
Owen berrou usando todo o ar de seus pulmões. Os moradores perplexos demoraram segundos importantes antes de começarem a esvaziar o local. Nesse momento um tumulto generalizado teve início. Empurrões, agressões, desespero. Um homem pegou alguns livros de uma prateleira e os lançaram contra a janela do local, quebrando-a em milhares de pedaços e transformando-a numa nova rota de fuga. A cidade então foi tomada por gritaria e correria.
Owen ficou entre Dio e o aglomerado de pessoas com a missão de segurá-lo durante o tempo necessário para que todos pudessem fugir.
— Não vou deixar você passar...
GROAAAAAAAAAA!!!
Dio iniciou uma série de tentativas de cravar suas presas no garoto de cabelos pretos. A medida que desviava, Owen lançava socos rápidos contra o rosto do mutante.
Pela primeira vez ele sentiu que poderia vencer. Aquela criatura podia ser incrivelmente forte e resistente, mas ainda era algo que podia ser derrotado.
Nesse momento aconteceu algo que mudou completamente o rumo daquela batalha. As pessoas que tentavam atravessar a porta da pensão começaram a cair como uma fileira de dominós, pisoteadas por dois grandes lobos marrons.
Owen perdeu o foco, e no desespero para tentar ajudar aquelas pessoas acabou deixando uma brecha para o ataque de Dio. As garras afiadas que o despedaçaria facilmente desceram numa velocidade incrível, mas pouco antes de acertá-lo uma lâmina negra dançou no ar e cortou o braço de Dio. Não foi o suficiente para desmembrá-lo, mas abriu um corte profundo que fez sangue jorrar sem controle por todos os lados.
Ellen girou a espada e acertou o peito de Dio, atravessando-o completamente. Em seguida apoiou seu pé descalço contra o estômago dele e o empurrou, jogando o mutante no chão enquanto retirava a lâmina. Dio passou algum tempo se retorcendo de dor e agonia antes de ficar imóvel.
Owen voltou sua atenção para a dupla de lobos que corriam na direção dele, ignorando toda a multidão que tentava escapar.
— Eles estão atrás de nós... Ellen, meu Sensorium!
Ellen jogou a espada para Owen. O primeiro lobo pulou e o garoto de cabelos pretos o acertou ainda no ar usando o lado sem corte de sua lâmina, derrubando-o. Antes mesmo do segundo animal conseguir saltar, Owen o acertou com um poderoso golpe no pescoço, fazendo-o rolar pelo chão e bater contra o primeiro lobo que tentava se levantar.
— Ellen, precisamos levá-los para fora!
— Owen, como você acha que os lobos se comunicam?
A garota de cabelos brancos murmurou e começou a girar sem rumo.
— O quê?!
— Acompanhe o raciocínio! Há estudos dizendo que canídeos se comunicam por meio de uivos, gestos, até mesmo pelo ranger dos dentes. Mas também existem as lendas! Há uma falando que eles são capazes de se comunicar através de telecinese!
— Você está supondo que a pessoa de capuz está enviando ordens para essas criaturas através de pensamentos?
— Não sei, é apenas um palpite!
— E que palpite...
Dessa vez os dois lobos raivosos pularam ao mesmo tempo para cima de Owen, mas o lado sem corte da espada foi ainda mais rápido. O garoto de cabelos pretos acertou o primeiro lobo no estômago, e o segundo bem no meio da face, lançando-os para o outro lado da recepção novamente.
— Tem mais! E se esse poder funcionar como ondas de rádio? O controlador precisaria estar num local aberto para que possa enviar as ‘ordens’ sem nenhum tipo de interferência.
Ellen falou enquanto continuava a girar em círculos sem parar.
— A pessoa de capuz precisaria estar bem perto de nós, com uma visão clara do que está acontecendo aqui dentro...
O que não era muito difícil, graças a janela e a porta quebrada.
— São apenas suposições, Owen. Não há nenhuma garantia de que eu esteja certa.
— Não custa nada tentar.
Owen reparou que a maioria das pessoas já haviam deixado o local, restando apenas Abadia e seus filhos, ainda paralisados atrás do balcão.
— Ellen, eu irei atrás do controlador. Você precisa levá-los para um lugar seguro!
O par de lobos já estavam de pé novamente. Eles rugiram e correram mais uma vez para cima de Owen.
— Vocês querem brincar?
Owen sorriu e correu, atravessando a porta da hospedaria com os gigantescos lobos em seu encalço.
Mesmo com a forte chuva caindo, o centro de Jothenville continuava cheio de pessoas. A grande maioria composta por curiosos que tentavam descobrir o motivo para tanta correria e gritaria. Owen deu a volta na pensão enquanto buscava por um local que possibilitaria uma visão privilegiada da hospedaria, e imediatamente encontrou o lugar mais suspeito. Um velho armazém escondido pela escuridão da noite, duas ruas após a pensão.
Assim que ele chegou à frente do armazém, os lobos misteriosamente pararam e logo após sentaram, agindo como simples cães adestrados.
— A pessoa de capuz está aqui...
Owen apoiou as mãos sobre os joelhos para recuperar o fôlego, e nesse momento notou a presença de outra pessoa na frente do armazém.
As mãos da garota de olhos azuis tremiam compulsivamente. Seu vestido estava completamente encharcado por causa da chuva fria que caia. Ela respirava forçadamente, com o medo e o pânico refletido em cada pequeno gesto.
Ela respirou fundo e ergueu uma espingarda de dois canos na direção de Owen, com seu dedo roçando o gatilho.
— Bianca...

◊ ◊ ◊

Assim que Owen deu o primeiro passo para fora da hospedaria, Ellen correu até Abadia e seus filhos.
— Levantem! Precisamos sair daqui antes que outros deles apareçam!
Como se estivesse despertando de um transe, Sofia levantou em um pulo, livrou-se dos braços de sua mãe e correu desesperada até o corpo do mutante caído.
— Papai?! Papai?! Levante-se! Você precisa vir conosco! Por favor! Por favor! Acorde!!
Ela ficou de joelhos ao lado de Dio e começou a balançá-lo, na esperança de que ele estivesse apenas preso em um sono profundo.
— ...Papai...?
Ellen sussurrou enquanto um frio súbito tomava seu corpo, notando pela primeira vez o que havia feito. Ela matou o pai daquelas crianças na frente deles. Aquelas mãos que ela tanto odiava haviam destruído mais uma família.
Sofia tentou erguer o corpo de seu pai, sem sucesso. Abadia e seus outros filhos levantaram, e cambaleantes formaram um círculo ao redor de Dio.
— Marido...
Abadia caiu de joelhos. Seus outros dois filhos começaram a chorar, finalmente se dando conta do que havia acontecido.
Então aquilo que Ellen mais temia aconteceu. Uma série de gritos guturais ecoaram e dois novos mutantes, trajando uniformes militares como os de Dio surgiram, invadindo a recepção da hospedaria. Seus corpos estavam ensanguentados. Veias grossas e pulsantes cobriam completamente a pele de cada um deles.
Assim que os monstros avançaram, Ellen ergueu suas duas mãos que começaram a brilhar imediatamente, lançando canhões de luz que cegaram as criaturas momentaneamente, fazendo-as recuar.
— TODOS VOCÊS SUBAM AGORA!!!
Ellen gritou e voltou seu rosto na direção de Abadia e seus filhos. Nesse momento ela presenciou o exato momento em que um dos dedos de Dio se moveu.
— Fujam... FUJAM AGORA!!
Ellen correu na direção de Abadia, mas já era tarde.
Dio rugiu subitamente e lançou sua mão na direção da primeira pessoa que seus olhos sem vida encontraram, segurando-a pelo pescoço.
— AAAaagh!!!
Abadia tentou desesperadamente escapar. Seus três filhos gritaram em desespero e correram para ajudar, mas eles não tinham a força necessária para retirar a mão de Dio. Cinco segundos depois o mutante dobrou a força imposta sobre o pescoço de Abadia, fazendo-a sucumbir.
E assim o soldado matou sua esposa. A pessoa que ele mais amava.
— MAMÃE!!!
                          — MÃE!!!
                                              — MAMÃE!!!
O grito estridente das três crianças ecoaram ao mesmo tempo pelo cômodo destruído da hospedaria.
15
22:51 P.M – Centro de Jothenville
— Largue a espada senão eu atiro.
Bianca falou com um tom de voz frio.
— Isso não faz sentido... Por mais que eu tente encontrar um motivo, nada me vem à cabeça... Você não disse que tinha uma vida boa aqui?! Você não disse que o amor de seus pais e irmãos era o suficiente?! Então por que diabos você está fazendo isso?! O que você ganha torturando todas essas pessoas?!
Owen estava confuso e atordoado. No momento em que ele colocou Bianca como uma suspeita, ele estava se preparando mentalmente para encarar aquela situação. Mas aparentemente ele ainda não estava pronto. Era cruel demais saber que existia uma pessoa tão fria e irracional ao ponto de matar aos poucos toda uma cidade.
— ...Me poupe de suas mentiras... São vocês que estão por trás de tudo isso!
Bianca vociferou.
— Nós somos os responsáveis? Como assim?!
— Marcos estava cansado de toda aquela corrupção, de todo aquele abuso... Ele não queria mais ser considerado uma das raízes podres do governo, por isso tentou mudar a Legião de Mahyra por dentro... Transformá-la em um exército que fosse capaz de ajudar as pessoas e não de oprimi-las. Ele queria ser o herói de seu povo, não o vilão. Mas a maioria não permitiu que isso acontecesse... Como uma forma de parar as ações de Marcos, mataram sua esposa cruelmente, dentro de sua própria casa! Ele foi obrigado a fugir da República do Rio para não ver sua filha sofrer o mesmo destino daquela que ele amava! Marcos apenas não queria que Aria continuasse respirando a podridão daquela cidade de demônios...
Owen estava perplexo, tentando de todas as formas compreender as palavras que escapavam pela boca de Bianca.
— Marcos era um Legior...?
Ignorando-o a garota de cabelos pretos prosseguiu.
‘Quem entra nunca consegue sair’... Esta não é uma das políticas da Legião?! Vocês consideram a fuga de Marcos uma traição... Não foram capazes de deixá-lo viver em paz! Caçaram-no e assim que o encontraram nesta cidade começaram essa vingança sem sentido! Impedindo a chegada de alimentos, transformando toda a Jothenville numa prisão particular! Tudo isso por que não foram capazes de aceitar alguém honesto e gentil como parte da equipe... Vocês são os piores tipos de monstros que existem!
— Bianca, você tem ideia do quanto essa história é absurda?
Owen falou com o tom mais calmo e convincente que podia. Bianca não o ouviu. Seu dedo roçava nervosamente o gatilho da arma, enquanto a tempestade ficava ainda mais forte.
— Vá atrás de sua cúmplice e saiam dessa cidade...
Owen apertou o botão de seu Sensorium, retrocedendo sua lâmina. Em seguida deu um passo na direção da garota de cabelos pretos.
— Não sou alguém que cumpre as ordens da legião cegamente, Bianca... Não sou um demônio sem coração que cometeria genocídio por um motivo tão estúpido e irracional. A legião pode ter cometido muitos erros no passado, mas atualmente existem Legiors que lutam pela ordem e pelo bem de toda essa nação!
Outro passo.
— NÃO SE APROXIME OU MATAREI VOCÊ!
— ENTÃO EU PEÇO PARA QUE ATIRE AGORA, POIS EU NÃO VOU PARAR!
Mais um passo.
— A primeira vez que ouvi falar de Marcos Arthmael foi no momento em que uma carta assinada por ele parou nas minhas mãos. Não acha estranho ele mandar uma mensagem para as pessoas que supostamente estão caçando ele? Aquela carta informava sobre a situação de Jothenville, um obvio pedido de ajuda. Eu e Ellenia viemos sem uma ordem oficial da legião para investigar e reverter o desastre que prendeu este povo dentro de sua própria cidade. Estamos aqui para salvar vocês! Então definitivamente, é impossível que alguém da legião seja responsável pelo que está acontecendo em Jothenville.
Pela primeira vez Bianca hesitou.
— Olhe nos meus olhos e diga que estou mentindo... Olhe nos meus olhos e diga que sou alguém que mataria milhares de pessoas apenas para satisfazer meu ego! Eu aparento ser um demônio sem sentimentos, incapaz de sentir remorso?!
A voz dele não continha nenhum traço de mentira, e Bianca estava ciente disso. Aqueles olhos dourados não piscavam e também não hesitavam. Eram os olhos de alguém que acreditava firmemente em seus conceitos, e nunca os trairia.
Owen finalmente ficou à um passo de distância da garota de cabelos pretos.
— Confie em mim...
Ele tocou a espingarda e a abaixou, voltando sua ponta para o chão.
— ...Foi a pessoa de capuz que contou toda essas mentiras para você? Você sabe quem é essa pessoa, não sabe?
Aproximou seu rosto do ouvido direito dela e sussurrou.
— ...A pessoa de capuz está naquele armazém, não está...?
Nesse momento o sangue de Owen jorrou sobre o corpo de Bianca.
UAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHhh!!!
Owen gritou e caiu de joelhos por causa do animal pesado que cravara as presas nas suas costas. A visão dele tremulou. A dor insuportável fazia com que ele perdesse os sentidos aos poucos.
Passos sobre o piso de pedras ecoaram, e uma nova figura parou ao lado do segundo lobo que ainda permanecia deitado. 
— Eu já imaginava que você não conseguiria cumprir esta tarefa, Bianca. Uma pessoa tão... pura, não teria a força necessária para puxar o gatilho...
A voz que atravessava a fina máscara de gesso era fria e calculista.
Bianca teve que tapar a boca com as mãos para conter a ânsia de vômito que tomava seu corpo. O sangue quente que escorria pelo seu rosto havia deixado ela em estado de choque.
— O que você fez... ELE DISSE QUE NÃO FOI A LEGIÃO QUE PLANEJOU ESSA VINGANÇA CONTRA MARCOS! Ele... não estava mentindo...
A pessoa de capuz acariciou a cabeça do lobo ao seu lado.
— Não é por esse motivo que irei matá-lo. Há algo bem mais importante do que o futuro dessa cidade... Se eu deixar este homem viver, não serei capaz de realizar meu sonho...
A pessoa de capuz ergueu seu braço direito, ordenando que o segundo lobo levantasse.
— Não, não, não... Se você fizer isso não terá mais volta... Você se tornará uma assassina!
Bianca gritou desesperada.
— Heh... Você realmente não me conhece, não é?
— Eu conheço você! Eu cresci ao seu lado, então sei que você é uma boa pessoa! Minha melhor amiga, não uma assassina!
— Ah... Isso só prova que você nunca me olhou de verdade. Mesmo após tanto tempo juntas, você nunca conseguiu entender meus verdadeiros sentimentos. Não foi capaz de enxergar meu verdadeiro eu...
O segundo lobo avançou. Owen estava preso, incapaz de fugir por causa do primeiro lobo que continuava restringindo seus movimentos. A dor insuportável o impedia de formular qualquer plano de fuga.
RWOAAAAAAAA!!!
O animal selvagem saltou. Owen conseguiu se mover alguns centímetros para o lado, evitando que o lobo arrancasse sua cabeça. Mas não foi o suficiente para tirar seu braço esquerdo do caminho.
Com uma única mordida, o segundo lobo levou o braço do garoto de cabelos pretos.
AAAAAAAAAAAHHHHHhhh!!
O grito de Owen cortou a noite, ecoando por todas as ruas e becos de Jothenville.

◊ ◊ ◊

Dio soltou o pescoço de Abadia e fitou o rosto de cada um dos seus filhos.
— Não...
Ellen rapidamente direcionou o jato de luz dos mutantes na porta para o rosto de Dio, cegando-o por tempo suficiente para que ela alcançasse as crianças.
— Venham comigo, agora!
Ellen interrompeu sua habilidade para que pudesse segurar o pulso de Sofia com uma mão e o braço do garoto mais velho com a outra, puxando-os imediatamente na direção da escada.
— Irmão! Vamos!
Sofia gritou ao notar que seu irmão mais novo não estava seguindo ela. Ellen parou no meio da escada, preparando-se para ir ao resgate daquele que havia ficado para trás.
Mas Dio foi mais rápido.
Ele segurou a perna do pequeno menino e o derrubou. Sofia tentou correr para ajudá-lo, mas Ellen não permitiu. Se eles voltassem agora acabariam encurralados pelos outros dois mutantes que se aproximavam rapidamente. Sem encontrar outra alternativa, Ellen voltou a puxar Sofia e o garoto mais velho escada acima.
Aquela pequena criança nem ao menos gritou quando Dio ficou por cima de seu corpo e cravou as garras em seu peito. Ele ainda não compreendia o significado da morte, por isso não estava com medo. Mesmo banhado em seu próprio sangue, o garoto mais novo ainda não acreditava que seu pai queria lhe fazer mal.
Por esse motivo ele continuava sorrindo inocentemente.
Menos de um minuto depois aquela criança finalmente encontrou a paz.
E assim o soldado matou o filho mais novo.
Ellen arrastou as duas crianças escada acima até chegarem ao último andar do prédio, onde entraram no quarto que foi alugado por Owen.
Após trancar a porta, Ellen soltou os dois irmãos e correu até a janela de vidro. Eles estavam muito alto. Fazer com que as crianças pulassem de uma altura tão grande seria o mesmo que mandá-los para a morte. Ellen pensou em improvisar uma corda usando as roupas de cama, mas antes dela ter a chance de colocar esse plano em prática, a porta do quarto e boa parte da estrutura da parede foram jogadas para baixo com apenas um golpe, gerando uma imensa nuvem de poeira.
Os três mutantes invadiram o local.
— Como eles nos acharam tão rápido?!
Ellen notou que o pano de seu vestido, logo abaixo do pescoço, estava estranhamente húmido. Ela tocou o local e se assustou ao notar o líquido vermelho que ficara impregnado nos seus dedos. Suas costas estavam sangrando.
Tentando não perder o foco, Ellen rapidamente sacou uma navalha e cortou a palma de sua mão direita. Sua intenção era derreter o piso para impedir o avanço das criaturas, mas assim que ela encostou a mão no chão algo inesperado aconteceu.
O braço direito dela caiu.
Sangue rapidamente encharcou suas vestes e se espalhou pelo piso à sua volta. Ellen estava de olhos arregalados, perplexa. Ela não sentia a dor daquele grave ferimento, mas podia sentir a poderosa vertigem causada pela grande perda de sangue.
— Owen... Owen... Owen... Owen... Owen...
A garota de cabelos brancos levantou, cambaleante, e tentou estancar o sangramento usando sua mão esquerda, inutilmente. Ela recuou até as duas crianças que encaravam aquela cena em pânico absoluto.
Dos três mutantes Dio tomou a frente, agindo como uma espécie de líder.
— MEUS FILHOS... ELES SÃO MEUS!
As outras duas criaturas recuaram em resposta, obedecendo as ordens de seu superior. Dio estava consciente das barbaridades que estava fazendo, e quem eram as pessoas que ele estava machucando. Mas aquele monstro não parecia se importar. Na verdade ele estava apreciando todo aquele desespero.
— Eu preciso protegê-los... Eu tenho que protegê-los... É meu dever... Eu preciso fazer alguma coisa!
Ellen procurava desesperadamente uma forma de escapar, mas sua mente estava nebulosa. Ela não conseguia pensar em nenhuma maneira de deter aquele ser imortal.
Como se zombasse do medo de Ellen, Dio avançou, ergueu suas garras e atacou sem hesitar.
— NÃO!!
O garoto mais velho empurrou Ellen e Sofia usando suas duas mãos, tirando-as da frente daquele golpe mortal. Infelizmente era impossível para ele escapar.
— Sobreviva... Irmã...
Com um último sorriso em seu rosto, o garoto voou e se chocou violentamente contra uma parede, manchando-a de vermelho. Logo após ele caiu sobre a cama do quarto. Mesmo com os olhos fechados ele continuava a sorrir. Qualquer um que o observasse nesse momento poderia dizer que ele estava apenas dormindo, tendo o mais belo dos sonhos.
E assim o soldado matou o filho mais velho.
UAAAAAAHHHH!!!
Sofia cobriu os próprios olhos, incapaz de encarar a realidade, enquanto lágrimas desciam sem cessar pelo seu pequeno rosto. Já Ellen caiu de joelhos, parte pela grande perda de sangue, e a outra parte pelo choque de ter presenciado algo tão brutal.
— Eu... não posso desistir... Ainda não é o fim... Enquanto restar alguém que precise da minha proteção... Enquanto eu continuar respirando, devo continuar lutando!
Ellen usou o que restava de suas forças para se levantar novamente. Ela tinha que continuar seguindo em frente. Mesmo sem seu braço, mesmo com suas pernas se negando a avançar.
A garota de cabelos brancos estava ciente de que seria o fim no momento em que ela se desse por vencida.
Mas se dependesse de Ellenia Gweneth esse dia nunca chegaria.
Sem hesitar, Dio atacou novamente. Ellen empurrou Sofia, jogando-a de costas no chão, consequentemente tirando-a da rota de ataque. Em seguida usou seu braço esquerdo para proteger seu corpo do ataque mortal que estava por vir.
Ellen voou ao ser atingida, batendo primeiramente no criado mudo para depois se chocar contra uma parede. Mesmo abalada pela dor imensurável causada pelo choque, ela tentou ficar de pé mais uma vez. Mas ao dar o primeiro passo, Ellen caiu novamente como uma pedra.
Seu tornozelo esquerdo estava quebrado.
— Não... Não... Minhas pernas... Vocês não podem me abandonar agora! Vamos lá, de pé!
Ellen gritou enquanto tentava desesperadamente se erguer, mas seus membros não obedeciam.
Dio olhou primeiramente para Ellen, mas em seguida, contrariando todas as pistas de que a garota de cabelos brancos era o alvo, voltou-se para Sofia.
— Não... Ela não... VOCÊ ESTÁ ATRÁS DE MIM!!! EU ESTOU AQUI!!!
Ellen continuou gritando, mas Dio não lhe dava atenção. Sofia se levantou lentamente e ficou imóvel. A pequena garota ruiva não ameaçou fugir. Ela apenas prendeu a respiração e esperou pelo fim.
Não havia rancor em seu coração. Sofia sabia que aquele demônio não era o pai gentil que conhecia, por isso ela queria deixar essa vida lembrando de Dio como um homem alegre e corajoso.  Aquele que sempre a incentivou, que sempre a amou.
O mutante parou há um passo de distância e encarou a pequena criança por alguns segundos.
— Estou pronta... Papai...
Sofia deu um último sorriso, idêntico ao de seus outros dois irmãos. Dessa vez sem lágrimas.
Dio segurou o pescoço dela e a ergueu.
— NÃO!! LARGUE ELA!! LARGUE-A AGORA!! SE NÃO SOLTÁ-LA EU O MATAREI!! EU JURO QUE O MATAREI!!
Ellen se arrastava pelo chão usando seu único braço, deixando um grande rastro de sangue pelo piso de concreto queimado. Mas ela não era rápida o suficiente para parar aquele demônio. Não era forte o suficiente para proteger uma única vida.
— Não... Por favor... Não...
Todas as orações foram feitas. O soldado estava pronto para matar sua última filha de sangue. A filha prodígio, sua favorita.
Dio lançou Sofia. A pequena pintora girou pelo ar antes de atravessar a janela de vidro do apartamento, ainda sorrindo, enquanto inspirava pela última vez o ar húmido de uma noite sem estrelas.
Ela era como um espirito solitário, com seu coração cheio de medos e incertezas, voando em busca do paraíso...


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