A marionete, o cantar dos pássaros e às escadarias para o paraíso...
Depois de algum tempo sem postagens finalmente estamos de volta. Fiquem com mais um capítulo de A Rosa Fantasma com uma boa dose de correria, lobos e destruição para dar uma animada no fim de semana. Curtam a nossa página no Facebook, e se você tiver vontade de publicar sua própria história na Noveland entre no nosso grupo!
Capítulo 2
Athazagoraphobia Pt.1
Era uma vez
um jovem cientista de olhos azuis. Sua infinita curiosidade era o combustível
que movia seus membros. Sua insaciável busca por conhecimento era a água que
matava a sede de seu corpo. Aquele homem, refinado e educado, inconscientemente
ganhou o respeito de pessoas influentes e poderosas, sendo reconhecido com
apenas 20 anos de idade como um dos mais conceituados cientistas de toda a
União Sul-americana.
Durante o
nascer do sol o jovem cientista encontrou um pássaro que havia perdido uma de
suas assas. Ele o acolheu com um sorriso iluminado e o levou para dentro de seu
laboratório.
— Se com a
ajuda da ciência eu criasse e te desse uma nova assa... Você olharia para o céu
e voltaria a cantar? Você tentaria voar através das nuvens novamente?
Disse o
cientista com um sorriso confiante.
Numa manhã
de poucas nuvens, após meses de estudo e trabalho, o jovem cientista encontrou
a cura para uma praga que matava centenas de pessoas diariamente. Ele ergueu o
pequeno frasco de vidro contra a luz de uma lamparina e expirou lentamente.
— Se este
liquido salvar toda uma nação... Serei lembrado pelas gerações futuras como um
herói? Como aquele que salvou o mundo?
Disse o
cientista com seus lábios tremendo de tanta excitação.
Sempre que
olhava para a imensidão do céu azul novas criações surgiam, e imediatamente ele
as colocava em prática. O jovem cientista queria que seu dom e sua sabedoria
fossem sempre úteis para a humanidade. Não como os feitos de um humano, mas sim como os feitos de um salvador. Ele queria que no futuro todos
lembrassem dele como a pessoa que revolucionou a ciência.
Poucos eram
aqueles que possuíam um coração tão brilhante, tão puro. Sentimentos tão
profundos e honestos, mas ao mesmo tempo tão sensíveis e frágeis. Sua alma era
como um castelo de cartas, bastando um simples sopro para que tudo
desmoronasse.
Numa tarde
de garoa o jovem cientista observava um corpo sem vida sobre uma mesa estreita.
Ele olhou para o alto e deu uma risada fraca enquanto calçava suas luvas
cirúrgicas.
— Se com o
poder da ciência eu criasse e te entregasse um novo coração que pudesse bater
em seu peito... Você abriria os olhos? Você viveria novamente?
Disse o
cientista com seus olhos brilhando de tanta empolgação.
O jovem
cientista acabou se afogando em sua própria curiosidade enquanto navegava pelo
fascinante universo do corpo humano. Dia após dia ele cortou e investigou, de
novo e de novo, parando apenas no momento em que aprendera todos os mínimos
detalhes sobre o funcionamento daquele corpo. Cada músculo... Cada órgão... O
jovem cientista sabia tudo sobre cada um deles.
Aqueles
olhos azuis cheios de fascínio estavam a apenas um passo de descobrir os
segredos da vida e da morte.
Durante um
anoitecer chuvoso o jovem cientista foi chamado às pressas até sua pequena
residência. Lá encontrou o corpo inerte de sua esposa. A pessoa que ele mais
amava, caída sobre um tapete de camurça manchado por um líquido carmesim que
escapava do corpo frio dela.
Aquela
mulher carregava no ventre um filho do cientista, mas alguém havia roubado a
pequena vida que residia dentro dela. Sem sua amada e seu herdeiro, o jovem
cientista gritou em desespero.
— Se eu
chorar até a luz deixar meus olhos... Se eu gritar seu nome até minha voz falhar...
Você voltaria a respirar? Você tocaria meu rosto e diria ‘vai ficar tudo bem’ com aquele sorriso gentil no rosto?
Disse o
cientista em meio às lágrimas de pavor que desciam pelo seu queixo e caiam
sobre o rosto de sua amada.
Aquele que
queria livrar o mundo das trevas foi o primeiro a ser devorado por ela. O jovem
cientista não deixou que mais ninguém chegasse perto de sua esposa. Não deixou
que ninguém o consolasse. Ele se isolou em sua casa, e deixou que o corpo de
sua amada repousasse sobre o mesmo tapete em que a encontrou, por dias e mais
dias.
Numa noite
sem estrelas o cientista enlouquecido, cercado por centenas de livros, buscava
desesperadamente uma forma de trazer a pessoa que ele amava de volta. Mas mesmo
após dar tudo de si, ele não conseguiu encontrar uma cura para a morte. Até
mesmo sua genialidade tinha um limite.
Os olhos sem
reflexo daquela mulher continuavam fitando o cientista de longe, como se
estivesse implorando para que ele desse um fim à sua agonia. Ela queria chegar
ao céu, mas havia alguém parado entre ela e as escadarias para o paraíso.
Numa manhã
silenciosa de inverno o jovem cientista voltou seus olhos para o alto,
procurando aquele céu azul que tanto o inspirava, mas encontrou apenas nuvens
negras cercadas por um cinza inexplicavelmente mórbido. O cientista não
conseguia seguir em frente sem sua esposa. Ele não era mais capaz de
compreender seus próprios sentimentos, não tinha mais forças para gritar, não queria mais sentir. Só restava na sua
vida aquela reconfortante solidão que devorava sua sanidade com uma mordida de
cada vez.
Numa
madrugada tempestuosa o jovem cientista pegou alguns de seus objetos cirúrgicos
e foi ao encontro do corpo de sua esposa, onde com um último sorriso a abraçou
forte.
— Quando te
encontrei descobri a beleza da vida. Quando você me deixou sem um adeus,
descobri a agonia do sofrimento. Fui manipulado pelo destino como uma
marionete, para acabar sendo descartado como lixo após dar tudo que tinha. Sem
você para me salvar fui engolido por uma tempestade de desespero...
Sussurrou o
cientista com um tom monótono e vazio.
Suas mãos
tremiam levemente enquanto ele cortava o corpo de sua amada, procurando por uma
forma de aquecê-la novamente. Ao fundo o tic-tac
de um velho relógio parecia amplificado, abafando o barulho da navalha cortando
a carne, ressoando em suas infinitas badaladas.
O cientista
e sua marionete. A putrefação e a escuridão preenchendo uma pequena sala de
estar, agora tomada por poeira e teias de aranha. Os fios que ligavam os
membros da mulher à este mundo haviam sido cortados há muito tempo, deixando
que seu corpo desmoronasse aos poucos, voltando a sua derradeira origem.
Enquanto a
mutilava, o jovem cientista sussurrava frases aleatórias, sem nexo ou ligação,
como um louco queimando em sua própria insanidade.
— Por que
eu? Um simples tolo dispensável! Eu e apenas eu, lançado no fogo do inferno e
nas garras do Diabo. Abandonado pela pessoa que eu mais amava, por Deus e pelo
mundo que eu tanto protegi...
O cientista
gargalhava com um já familiar tom sem vida.
Ele, que
antigamente fora conhecido por ser curioso, educado e inteligente, finalmente
havia se tornado alguém morto por dentro, como a marionete que ele tanto amava.
11
22:41 P.M – Entrada de Jothenville
Pequenos
pingos de chuva começavam a cair, anunciando a chegada de uma impiedosa tempestade.
Dentro da profunda escuridão daquela floresta noturna, duas pessoas fitavam a
gigantesca muralha da cidade imersa em silêncio.
— Parece que
finalmente chegamos, irmão.
Uma garota
de pele morena e cabelos castanhos falou com um sorriso simpático no rosto. Ela
usava um vestido roxo sem mangas que corria até pouco acima de seus joelhos. No
pescoço dela um colar redondo banhado a ouro com o desenho de uma assa
comprovava que ela era uma integrante da Legião de Mahyra. Sua estatura era
baixa, motivo para frequentemente ser confundida com uma criança.
— Você tem
certeza de que devemos aparecer sem avisar, Karen?
Segui-los a essa hora da noite faz com que pareçamos dois perseguidores...
O garoto
colocou as quatro malas que estava carregando sobre o chão enlameado. Ele tinha
mais de 1,85m de altura e vestia o usual terno dos soldados da legião. Seus
cabelos castanho escuro corriam até pouco acima de seus ombros. Na sua cintura
haviam duas bainhas que guardavam facas longas e curvadas. Sua expressão
demostrava hesitação e ansiedade, como uma criança com a difícil tarefa de
escolher apenas um de seus dois brinquedos favoritos.
— Ora, ora,
irmão idiota. Ellenia é sua esposa, não é? Ela fugiu com outro homem sem dar
explicações, então é sua obrigação impor a punição necessária naquela safada e
no ladrão de mulheres que está com ela.
— A verdade
chocante... Ela fugiu de mim... Será que a Ellenia me odeia tanto assim...?
O garoto abaixou
a cabeça, fungando e engolindo o choro. Karen acariciou as costas de seu irmão,
consolando-o.
— Não precisa
se preocupar com isso, Adam... Você é
um homem incrível, então tenho certeza absoluta de que conseguirá roubar o
coração dela algum dia...
— Irmã...
Karen deu um
sorriso empolgado, deixando a autoconfiança de Adam no máximo novamente.
— Então... Snif... Snif... Como vamos entrar neste
lugar? Logo começará a chover e a cidade mais próxima daqui está há três horas
de caminhada.
Adam falou
enquanto confirmava que não haviam puxadores ou batedores nos portões da cidade.
Depois voltou seus olhos para as nuvens carregadas e em seguida para as quatro
malas que ele havia carregado por três longas horas de caminhada. Todas muito
pesadas, onde metade possuía livros no lugar de roupas.
— Estou
cansado... Não aguento carregar estas bagagens por mais nem um minuto. Você
tinha mesmo que trazer todas essas coisas?
Karen
franziu o cenho e levantou o dedo indicador, como se fosse uma professora
repreendendo um aluno. Antes mesmo dela abrir a boca, Adam já estava suspirando
com uma cara de ‘vai começar de novo’.
— O que
seria de uma pesquisadora sem seus materiais de pesquisa, irmão? Todo o
conteúdo destas malas são de crucial importância para que possamos sobreviver
em qualquer circunstância. Cada um destes livros foi minuciosamente escolhido
para que possamos ter o auxílio necessário na hora de encarar os mistérios que
estas estradas e florestas escondem.
— A maioria
deles são romances, não é mesmo?! Como romances poderão nos ajudar a
sobreviver?!
Ignorando-o,
Karen prosseguiu com suas explicações.
— Além disso,
livros são o alimento da alma! Quando tenho um bom livro em mãos, não preciso
de mais nada.
— Se não
comer um alimento de verdade você morre!
Adam
suspirou pesadamente, desistindo de uma briga que já parecia perdida desde o
início.
— Agora
respondendo sua pergunta anterior... Qual era mesmo? Ah, sim! Como vamos entrar
neste lugar? Hum... Bem, se ninguém nos atender só precisamos botar este monte
de pedras empilhadas abaixo. Não deve dar muito trabalho.
Adam encarou
a resistente muralha e acenou com a cabeça, concordando com sua irmã.
Nesse
momento gritos cortaram o silêncio da noite, infestando o ar com o peso do
desespero. O tumulto que vinha do outro lado dos portões fez os lábios de Karen
tomarem a forma de um sorriso empolgado.
— Parece que
estão tocando a nossa canção, irmão. Você me acompanharia nesta dança?
A pequena
garota de vestido roxo sorriu e estendeu sua mão direita na direção do garoto
de terno. Adam curvando-se gentilmente, segurou e beijou a mão dela.
— Será um
prazer acompanhá-la, irmãzinha. Vamos dançar.
12
18:12 P.M – Centro de Jothenville
A estreita
pousada de quatro andares, construída inteiramente de tijolos e concreto sem
nenhum revestimento ficava a menos de trinta passos de uma gigantesca capela.
Acima da entrada principal havia um grande letreiro desgastado onde estava
escrito ‘Pensão da Abadia’ com letras
que só poderiam ser descritas como horríveis. As esquadrias da edificação
aparentavam estar bem fragilizadas por culpa dos ataques de cupins e do tempo.
— Parece ser
um lugar bem aconchegante, não?
Owen falou
enquanto caminhava rumo àquela velha construção.
— Tudo que
vejo é um amontoado de lixo... Por que não damos meia volta e procuramos por um
lugar que tenha mesmo cara de um alojamento, e não de uma... casa mal
assombrada...
Ellen forçou
uma risada.
Para alguém
que se gabava por não temer nada, sua voz estava alterada o suficiente para
deixar Owen intrigado, fazendo-o pensar que a garota ao seu lado estava com
medo de fantasmas ou algo do gênero.
— Você ouviu
o que Aria disse. Todas as outras hospedarias estão lotadas, e esta é a última
que ainda possui quartos vagos. É mais barato alugar um único cômodo do que
pagar o aluguel de uma residência inteira... A maioria das pessoas que não
tinham condições de bancar o alto custo de vida acabaram em lugares como este.
Devem haver famílias inteiras em cada apartamento.
Ellen estava
exausta e seu pé descalço bastante ferido por ter sido obrigada a caminhar por
tanto tempo. E para piorar, o céu estava fechado por causa de uma tempestade
que ameaçava cair a qualquer momento. Realmente não havia outra escolha além de
passar a noite naquele lugar.
— Isso não
vai dar certo... Estou com um mal pressentimento...
Ellen
sussurrou, com seu rosto estranhamente corado.
— Não sabia
que você tinha medo de lugares como este.
— Não é nada
disso... É... outra coisa...
Sem entender
o que ela queria dizer, Owen deu de ombros e abriu a porta da hospedaria.
Contrariando
a vista grosseira do lado de fora, a recepção era um local incrivelmente
harmonioso e decorado. No lado direito havia um sofá estreito de dois lugares e
uma mesa de chá com adornos em dourado. No centro uma escada de metal polido
que levava aos andares de cima, e no lado esquerdo havia um pequeno balcão com
duas prateleiras na parede atrás dele, recheadas com livros limpos e bem
cuidados. Em todas as paredes haviam incríveis pinturas à óleo, abordando desde
paisagens até bustos de pessoas. Não era de se admirar que Owen tenha ficado
fascinado com aquele lugar.
— Mamãe!
Temos clientes!
Ellen e Owen
pularam de susto ao notarem a presença de uma terceira pessoa naquele ambiente.
Num canto
afastado e escuro havia uma garota parada de frente para uma tela com o dobro
de seu tamanho, segurando um pincel que fora banhado em tinta ciano. Seus
cabelos eram ruivos como o céu ao entardecer, seus olhos eram de um castanho
escuro que beirava o preto. Seu rosto arredondado, tão perfeito quanto o de uma
boneca, mostrava que ela tinha de 12 à 13 anos de idade. Em nenhum momento ela
fez questão de desviar sua atenção do quadro para os recém chegados.
Em resposta
ao chamado daquela criança, uma mulher desceu as escadas até a recepção. A
semelhança dela com sua filha era incrível. Qualquer um que observasse as duas
juntas poderia jurar que estava olhando para um retrato de antes e depois.
—
Bem-vindos. Meu nome é Abadia Lima,
dona desta pensão. Posso ajudá-los?
Ela falou
assim que parou atrás do balcão.
— Queria
alugar dois quartos por três dias e três noites. Fomos informados que sua
hospedaria ainda possuí cômodos vagos.
Owen
respondeu educadamente.
— Ah...
Desculpe-me, mas no momento estamos com apenas um quarto disponível...
— COMO ASSIM
APENAS UM QUARTO?!
Ellen gritou
e literalmente partiu para cima do balcão, como um pequeno gato mostrando suas
garras. A recepcionista recuou alguns passos, surpresa com o ataque súbito da
garota de vestido esfarrapado.
— S-sim! Desculpe-me!
— Ei, Ellen!
Não trate a dona do lugar desta maneira!
— Não...
Não, não, não, não, não! Isso deixou de ser apenas uma maré de azar, já virou
maldição! Os deuses devem estar adorando brincar com a minha cara!
— Ah! Então
era por isso que você estava agindo daquela forma esquisita! Não era medo, e
sim ansiedade...
Owen sibilou
de uma forma desdenhosa. Ellen encarou seu parceiro com um olhar mortal,
fazendo-o calar no mesmo instante.
— Você quer que eu passe a
noite com um maníaco pervertido como ele?! Você está dizendo que vou ter que
dormir na, na, na mesma cama que ele?!
A
recepcionista continuava a recuar lentamente, achando que Ellen mostraria suas
presas e pularia para atacá-la a qualquer momento.
— Primeiro!
Não sou nenhum maníaco pervertido. Segundo! Ninguém afirmou que iremos dividir
a mesma cama. Terceiro! Já faz quase um ano que moramos sobre o mesmo teto,
então qual o motivo para reclamar logo agora?
— Pelo
simples fato de que em casa, mais precisamente no meu quarto, fico protegida por quatro paredes e uma porta que
devidamente possui uma dezena de trancas. Só Deus sabe o que você pode tentar
fazer com meu corpo enquanto eu estiver dormindo...
Ellen
estremeceu de uma forma exagerada, fazendo com que uma veia de raiva pulsasse
na testa de Owen.
— Ellen...
Você devia saber que não é inteligente dar ideias como essa para um jovem na
flor da idade como eu...
Com um
sorriso malicioso no rosto, Owen pegou sua carteira e retirou de lá algumas
notas de dinheiro.
— Vamos
ficar com o quarto...
Sacou mais duas notas altas e
entregou nas mãos de Abadia.
— ...E este
extra é para caso algum vizinho apareça durante a madrugada, reclamando que
estamos fazendo muito barulho...
Owen
assobiou e tocou a bochecha de Ellen com seu dedo indicador, fazendo-a paralisar.
— Eh...
Eeeehhh?! Q-QUEM TE DEU PERMISÃO PARA ME TOCAR, IDIOTA!
Owen caiu
como uma pedra assim que Ellen o chutou entre as pernas. Ele gritou e rolou,
agonizando sobre o chão.
— Eu havia
deixado bem claro que se você voltasse a falar merda iria acabar dessa manei—
Plaft.
Algo se
chocou contra o rosto de Ellen, pegando-a de surpresa.
— Ai! Ahn?!
Um líquido
azul escorreu pela sua bochecha, onde um pouco acabou por entrar dentro de sua
boca. O gosto forte de tíner fez Ellen tossir sem controle. Assim que olhou
para o chão ela encontrou o objeto que havia acertado seu rosto.
— Um...
pincel...?
— Dá para
pegar logo a chave do quarto e desaparecer da minha frente? Não consigo pintar
com você berrando por aqui.
Com uma
feição debochada e calculista, a criança pintora encarou Ellen pela primeira
vez. O pequeno sorriso em seu rosto estava repleto de travessura e
divertimento. Naquelas íris que pareciam devorar tudo que tocavam, o único
sentimento que não demonstravam era medo.
Ellen
precisou de mais dez segundos para entender o que havia acontecido, e quando
esse momento chegou, uma fúria incontrolável tomou seu corpo.
— O QUE
DIABOS VOCÊ ACABOU DE FAZER PIRRALHA?!
Como um
dragão cuspindo fogo, Ellen começou a caminhar apressadamente na direção da
garota ruiva.
— O que você
acha? Estava tentando colocar um pouco de cultura dentro da sua cabeça, mas
pelo som que ecoou quando o pincel acertou sua testa, notei que talvez seu
cérebro seja pequeno demais para que caiba algo dentro.
Abadia tapou
a própria boca, perplexa por causa da atitude de sua filha.
— Sofia! Mais
educação ao falar com os clientes!
Ellen ficou
sem palavras, e por esse motivo, Owen (que
ainda tentava se levantar) começou a rir sem parar. Ellen finalmente havia
encontrado um oponente que não tinha medo de seus ataques histéricos.
— Anã...
Você aparenta ser uma daquelas pessoas que amam aprender coisas novas... Então
que tal eu ensinar um pouco da boa e velha matéria chamada educação? Eu nem preciso de um livro, apenas um resistente galho de
goiabeira será o suficiente...
— Com braços
finos e anoréxicos como os seus... Tenho certeza de que não sentirei nem
cocegas.
A criança
chamada Sofia deu um sorriso triunfante, ciente de que havia ganhado o duelo de
palavras.
O que
restava da escassa paciência de Ellen finalmente acabou, e ela correu para cima
da criança, berrando e cuspindo fogo para todos os lados. Mas pouco antes de
alcançá-la, Owen segurou seus braços e a puxou na direção da escada.
— SOLTE-ME
OWEN! Aquela pirralha precisa aprender a arte
de respeitar os mais velhos! Apenas um cipó e duas palmatórias será o
suficiente! Solte-me! Solte-me!
Owen
lacrimejava de tanto rir. Ele acenou para Abadia, pedindo para que ela arremessasse
a chave do apartamento, e seu pedido foi atendido.
— Quarto 405
senhor...
— Obrigado!
Owen piscou
para Sofia, como se estivesse agradecendo pelo entretenimento e continuou
arrastando Ellen, que não parava de se debater e gritar como uma criança
mimada.
— Ah, só
mais um aviso! Se eu fosse você lavaria o rosto o mais rápido possível! Tinta à
óleo não é conhecida por fazer bem para a pele, apesar de que é impossível existir
algo capaz de deixar seu rosto pior!
Sofia riu,
mostrando seus caninos como um pequeno cachorro, enfurecendo ainda mais a já
descontrolada Ellen.
◊
◊ ◊
— Ainda não
consigo acreditar que aquela nanica foi capaz de fazer algo assim com alguém
que nunca viu antes!
— Esqueça
isso, foi apenas uma brincadeira.
— Que parte daquela
humilhação pareceu uma brincadeira para você?!
O espaçoso e
requintado quarto da hospedaria era quase todo inspirado no estilo barroco.
Havia uma cama de casal, um criado mudo (que
fora movido até uma parede para que um fino colchonete pudesse ser esticado
sobre o piso de concreto queimado) e um delicado lustre de cristal, com
quatro lâmpadas que acendiam com o auxílio de gás tubulado. A pintura marrom
das paredes e o teto curvado dava uma aparência gótica ao local. No pequeno
banheiro da suíte, o espelho e todas as louças eram de um dourado brilhante e
chamativo.
— Uma
tragédia acontecerá assim que eu encontrar aquela baixinha novamente...
Dentro do
banheiro Ellen resmungava em meio a risadas dissimuladas. Ela tentava retirar a
tinta que impregnava seu rosto usando um pedaço de sabão e a água de um
reservatório ao lado da pia.
No quarto
Owen havia retirado seu sobretudo, ficando apenas com a blusa preta sem mangas
que usava por baixo. Logo após retirou seu chapéu e o largou num canto
qualquer.
— Ellen,
acha que o laboratório debaixo da terra está relacionado de alguma forma com os
poderes da pessoa de capuz?
Owen deitou
sobre a cama. Mesmo após se livrar de todo aquele equipamento seu corpo
continuava estranhamente pesado. Essa tinha sido uma tarde muito complicada, e
Owen suspeitava que iria ficar ainda pior. Uma voz suave sussurrava na sua
mente, dizendo que ter colocado a governanta sobre custódia não significava o
fim dessa história.
Ellen pegou um
pano no toalheiro e secou o rosto. Seu reflexo no espelho estava muito pálido,
algo causado pela grande quantidade de sangue que ela perdeu mais cedo, e pelo
uso abusivo de suas habilidades.
— Não sei
explicar o que havia lá em baixo... Mas aquelas pessoas que encontrei estavam
com certeza servindo de cobaias para algo maior. Se estivermos mesmo procurando
por alguém com poderes sobrenaturais, deve ter sido naquele lugar que essa
pessoa foi criada.
Owen ergueu
sua mão direita que tremia compulsivamente, num claro sinal de que ele estava
perdendo o controle de seu corpo. Diferente de sua parceira, que acolhia o medo
que sentia, Owen o renegava. Guardava e escondia todos os seus sentimentos num
lugar que nem mesmo ele seria capaz de encontrar.
— Algo ruim
está para acontecer, eu posso sentir...
Ellen saiu do
banheiro e sentou na beirada da cama. Os dois passaram alguns minutos assim,
num profundo silêncio.
— Você
consegue ouvir os pássaros cantando bem longe daqui, Owen? Você é capaz de
imaginar as assas deles batendo, enquanto bailam pelo ar, buscando pelo inalcançável
horizonte?
Owen fitou a
garota ao seu lado com uma expressão de curiosidade, tentando entender os
significados por trás daquelas palavras, tentando decifrar que tipos de
sentimentos aquela menina impertinente queria transmitir.
— Não... O
ser humano não possui a capacidade de ouvir algo acontecendo tão longe...
— Errado.
Você não consegue ouvi-los por que sua alma não para de gritar.
— Minha alma
está gritando?
Mais um
longo momento de silêncio.
— Sabe... De
todos os Legiors que conheço, você é aquele que mais se esforça para cumprir os
deveres de um soldado. Você é quem mais se sacrifica para ajudar as pessoas.
Mesmo que eles te ignorem, mesmo que eles continuem a te odiar, você nunca
deixará de ajudá-los. Seus esforços quase nunca são recompensados... Essa é uma
lenta e cruel forma de tortura, não acha? Nem mesmo você se dá conta disso, mas
toda essa desconfiança, todo esse medo, acaba ferindo seus sentimentos pouco a
pouco. Você sempre está sofrendo, por isso sua alma sempre está gritando.
Owen não
conseguia desviar o olhar. Era como se houvesse algo naqueles olhos verdes que
o prendesse, impedindo-o de escapar.
— O que
acontece com aqueles cuja alma nunca para de gritar?
— Isso não é
algo que dê para prever. O cérebro humano encontra diferentes maneiras para
encarar o sofrimento. Há aqueles que entram em uma profunda depressão, alguns
enlouquecem, outros encontram o alívio que tanto desejam ao machucar outras
pessoas...
— O que devo
fazer para acalmar a minha alma? O que devo fazer para não perder minha
sanidade?
Ellen
respirou e expirou profundamente enquanto fitava suas próprias mãos, perdida em
pensamentos.
— Eu odeio
minhas mãos, sabia? Elas já machucaram tantas pessoas... Já trouxeram
sofrimento a tantas outras... Sempre que toco em algo vivo sinto que estou
roubando a vida que existe ali... Eu achava que era uma ceifeira, nascida
apenas para me alimentar da alma dos vivos...
Ela voltou
seus olhos para Owen e sorriu gentilmente.
— ...Mas
então encontrei você. Pela primeira vez fui capaz de dar vida a alguém em vez
de retirá-la...
Ellen deitou
ao lado de Owen e segurou a mão direita dele, apertando-a com força. Não havia
malícia ou qualquer outro sentimento oculto nos seus gestos, apenas a simples
vontade de ajudar. Ela conseguia transmitir uma calma que deixava Owen
perplexo, sem saber como reagir. Era como se ela tivesse o poder de
hipnotizá-lo com apenas um olhar.
— Não me
entenda mal, eu ainda odeio essas mãos... Mas pelo menos agora eu sei que há alguém
nesse mundo que posso tocar sem temer machucar...
Ellenia era
como o sol. Enquanto está longe é algo capaz de aquecer, mas ao se aproximar
torna-se algo capaz de queimar e torturar. Owen não tinha coragem de dizer que
o toque dela queimava sua pele.
— ...Sua
alma só irá parar de gritar quando você tiver a coragem de fechar os olhos e
ouvir...
Ela
completou num tom sereno.
— Como você
pode me conhecer mais do que eu mesmo?
— Nós
estamos ligados, lembra? Se você não puder ouvir os pássaros cantando, eu
também não serei capaz de ouvi-los. Se sua alma está gritando, a minha está
gritando junto com a sua.
Não havia
mais nada a ser dito. Os dois permaneceram em silêncio, um fitando o outro sem
piscar. Owen não notou o momento em que sua mão havia parado de tremer pois
estava perdendo a consciência aos poucos. Apenas dois minutos depois ele
adormeceu.
De repente
um canto sutil e um bater de assas ecoou dentro do subconsciente dele. A imagem
de um céu ao entardecer preencheu sua mente.
Um casal de
pardais atravessaram uma nuvem enquanto encaravam fixamente o sol alaranjado.
Eles dançavam suavemente, rezando para que sua fonte de calor não desaparecesse.
Eles nunca conseguirão tocá-lo, sabia?
Uma voz doce ecoou pelo céu junto ao bater de assas.
Aqueles pássaros são como você, Owen...
O sol é inalcançável, e mesmo sabendo disso eles
continuam perseguindo-o.
No horizonte aquela gigantesca
bola de fogo continuava a seguir seu rumo, abandonando os pássaros, deixando
que as trevas devorassem o céu e a terra.
Já está na hora de parar de sofrer por mim. Já
está na hora de parar de me procurar.
Owen tentou
gritar mas nenhuma palavra escapou pela sua boca. O céu alaranjado de um
segundo para o outro ganhou um tom avermelhado, como sangue.
Eu sou inalcançável, como o sol.
Nesse
momento ele notou que estava de joelhos no quintal de uma casa em chamas. Tudo
estava destruído, lágrimas desciam sem controle pelo seu rosto. Suas mãos
estavam húmidas, mas não era suor e sim um líquido bem mais perturbador. Caído
à um passo de distância estava o corpo de uma pessoa. Seus olhos ainda estavam
abertos, encarando o jovem garoto de cabelos pretos.
Seu corpo
estava coberto por sangue. O mesmo sangue que banhava as mãos de Owen.
Me esqueça... Me deixe morta.
Disse a
garota ensanguentada com um tom de voz doce e um sorriso travesso no rosto.
Toc toc toc...
Owen
despertou ao ouvir o som de alguém batendo na porta. Seu coração saltava
desesperadamente em seu peito. Suor frio descia pelo seu rosto. Ele olhou para
a janela do apartamento, notando que já estava escuro do lado de fora. O
colchonete ao seu lado estava vazio, mas uma luz que escapava pela brecha da porta
do banheiro entregava a localização de Ellen.
— Ouvir os
pássaros chorando não era bem o que eu esperava, bruxa...
Owen
levantou e foi até a porta. Assim que fitou a pessoa parada no lado de fora seu
corpo congelou por um breve momento.
Ela era uma
garota de longos cabelos pretos e olhos azuis. Aparentava ter de 19 à 20 anos e
usava um simples vestido bege. Seu corpo irradiava uma atmosfera sedutora mesmo
que involuntariamente.
— E você
ainda me pede para te esquecer?
— Senhor?
— Não foi
nada. Apenas confundi você com uma antiga amiga. Posso ajudá-la?
— Boa noite.
Você é o Sr. Owen?
— Sim.
— Marcos
Arthmael pediu para que fizéssemos a entrega destes alimentos...
Ao lado dela
havia um carrinho com várias louças e panelas que traziam consigo um delicioso
aroma. Poucos passos atrás estava Sofia com um segundo carrinho igualmente
carregado de alimentos.
— Por favor,
entrem.
— Com
licença...
E assim as
duas garotas entraram, levando os carrinhos até o centro do quarto.
— Ora,
ora... Nos encontramos novamente, toquinho de amarrar jegue... Parece que você
encolheu ainda mais desde a última vez que te vi...
Ellen falou
com um tom provocativo. Ela havia acabado de sair do banho pois seus cabelos
ainda estavam molhados e seu corpo coberto apenas por uma toalha.
— Olha se
não é a cabeça de vento. Eu pensava em você como uma pessoa depravada, mas
aparentemente essa é uma definição errada. Você está mais para uma concubina.
Sofia
respondeu com um tom brincalhão.
A garota de
cabelos pretos encarava Ellen com os olhos arregalados. Owen notou
imediatamente que ela havia entendido errado a situação.
— D-desculpe-nos
por termos aparecido em um momento tão inconveniente! Vamos Sofia, não devemos
importuná-los por mais tempo!
— Espere,
não é nada disso que você está pensando...
Sem entender
o que estava acontecendo, Ellen correu até os carrinhos de comida e retirou a
tampa de uma das panelas. Ao encarar o gigantesco frango assado um grande
sorriso tomou seu rosto.
— Ahhh...
Isso parece delicioooso...
Ela fez
questão de prolongar a palavra delicioso
com a intenção de provocar inveja na pequena Sofia, e seu plano foi um sucesso.
A criança ruiva estava com a boca levemente aberta enquanto encarava a comida.
A garota de cabelos pretos estava prestes a puxar Sofia para a porta quanto o
cheiro da comida também invadiu seus pulmões, fazendo seu estômago roncar alto
em resposta.
Owen sorriu.
— Nossa,
nossa... Vocês aceitariam jantar conosco? Tenho certeza de que não
conseguiremos consumir tudo isso sozinhos.
— Oquiiiêê?!
Com a boca
cheia de comida Ellen tentou iniciar uma discussão, mas Owen a censurou
imediatamente, sem dar brechas pra negociações.
— Não fale
com a boca cheia, e vista alguma coisa antes de jantar!
13
20:09 P.M – Pensão de Abadia
— Meu nome é
Sofia Lima e essa envergonhada aqui é
minha irmã Bianca. Tenho outros dois
irmãos, mas eles estão meio ocupados tentando pescar alguma coisa num rio morto
perto daqui.
Um pequeno
sorriso tomou o rosto de Sofia assim que um suculento pedaço de carne tocou sua
língua.
— Hum...
Então você também é filha da dona deste lugar?
Ellen
direcionou essa pergunta para Bianca, sem tentar esconder a curiosidade no seu
tom de voz.
— Não sou
filha de sangue... Eu fui adotada...
Bianca
respondeu, evitando encarar o olhar lancinante de Ellen.
— Isso
explica a falta de semelhança.
— Ei sua
idiota nudista, não fale com a minha irmã usando esse tom!
— Quem você
está chamando de nudista?!
— Você
prefere ser chamada de moradora de rua?
Sofia
apontou para o vestido sujo e surrado que Ellen foi forçada a usar por não ter
outro, fazendo-a corar de vergonha e raiva.
— Você não
sabe o momento de ficar calada não é mesmo, barata mal criada?!
A garota
ruiva deu de ombros, ignorando Ellen, que iniciava mais uma rodada de discussão
unilateral.
Naquele
círculo de pessoas sentadas sobre o chão com várias panelas no centro, as
gritarias e as risadas haviam transformado aquele quarto num ambiente
agradável, algo bastante incomum no momento de crise que Jothenville estava
passando. Owen soltava uma risada entre cada garfada. Bianca do lado oposto
deixava escapar um sorriso de vez em quando, mas na maior parte do tempo
tentava esconder sua vergonha por causa das ações de sua irmã menor.
— Você
sempre soube que era adotada?
Owen
perguntou para Bianca assim que terminou de comer.
— Sim...
Meus pais nunca tentaram esconder isso de mim.
— Nunca teve
vontade de conhecer sua verdadeira família?
— Hum... Não
posso dizer que nunca tive a curiosidade
de saber quem eles são... Mas nunca tive a necessidade
de buscar por eles. Sabe, eu tenho uma vida boa aqui. Minha família me ama de
verdade, e isso é o suficiente para mim.
Os dois
continuaram conversando normalmente sem perceberem que estavam sendo encarados
pelas outras duas garotas, que possuíam olhares mortais em seus rostos.
— Seu pai
também cuida desta pousada?
— Meu pai, Dio Lima, trabalha como um guarda para o
governo de Jothenville. Hoje ele está de serviço.
(Encara...) (Encara...)
— Qual o
motivo desse interrogatório, Owen?! Você por acaso está planejando pedi-la em
casamento?
Finalmente
Owen e Bianca notaram os dois pares de olhares perfurantes que eram
direcionados para eles.
— Vocês
parecem estar se dando muuuuito bem... Mas senhor Owen, para conseguir a mão
dela é necessário ter a minha permissão...
Sofia
sussurrou em meio a risada dissimuladas.
— Hoho...
Será que você tem um complexo pela sua irmã, gnomo?
Ellen
perguntou com a intenção de envergonhar Sofia, mas a resposta da garota ruiva
foi praticamente o oposto do esperado.
— E como não
teria?! Minha irmã é muito, muito linda! Olhe para este rosto esculpido por
anjos, bonito e delicado. Esta timidez hipnotizante e este sorriso fascinante.
E o que dizer sobre este corpo perfeito? Todas as curvas nos seus devidos
lugares, peitos, cintura, nádegas... Todas as manhãs eu agradeço por ter uma
irmã como ela!
Owen e Ellen
estavam boquiabertos. O rosto de Bianca parecia que ia explodir de tão vermelho
que estava. Sofia começou a gargalhar, e essas gargalhadas foram acompanhadas
pelas risadas de Ellen e Owen.
Nesse
momento alguém bateu na porta. Owen levantou e a abriu. Do outro lado estava um
pequeno garoto de cabelos avermelhados, claramente um dos irmãos de Bianca e
Sofia. Ele cumprimentou Owen e acenou para suas irmãs.
— Bianca,
Sofia, a mamãe precisa de vocês lá em baixo.
Bianca levantou e sorriu.
— Muito
obrigado pela refeição Sr. Owen e Srta. Ellen. Vamos Sofia?
As duas
juntaram todas as louças organizando-as sobre os carrinhos.
— A comida
estava deliciosa, Amanda. Você é uma
cozinheira incrível.
Owen falou
assim que as duas irmãs saíram do apartamento. Essa afirmação pegou de surpresa
não apenas Ellen, mas também a própria Bianca, que hesitou antes de responder.
— Muito
obrigado... Saber que o senhor gostou me deixa feliz...
Owen sorriu
gentilmente e deixou que os três irmãos fossem embora. Assim que eles desceram
a escada uma feição sombria tomou seu rosto.
— O que foi
aquilo?
Ellen
perguntou com uma feição idêntica à de Owen.
— Se a
empregada de Marcos não tem permissão para sair de seu quarto, quem você acha
que preparou o jantar? Ao que parece não temos apenas uma pessoa trabalhando
naquela casa.
◊
◊ ◊
Para qualquer um que olhasse de longe
aquela era uma cena bastante desagradável. Todas as luzes artificiais estavam
apagadas, prevalecendo apenas a claridade que vinha do lado de fora. As únicas duas
pessoas naquele quarto estavam em cantos diferentes, perdidos em seus próprios
pensamentos, envoltos num silêncio que parecia não ter fim.
Apesar de estarem sempre juntos, Ellen e
Owen eram por natureza pessoas solitárias. Apesar de se conhecerem perfeitamente
havia algo que os afastavam. Algo que não podia ser explicado com gestos ou
palavras. A ligação indestrutível que os uniam era também uma maldição.
Ellen estava deitada sobre a cama,
ouvindo o barulho do vento forte que fazia a grande janela de vidro do
apartamento tremular. Owen permanecia sentado sobre o colchonete, apoiando as
costas contra uma parede, fitando o vazio.
— Qual será o nosso próximo passo?
A garota de cabelos brancos sussurrou
num tom monótono, quebrando o silêncio que já durava horas.
— Se Marcos enviou o pedido para entrega
de suprimentos, amanhã pela manhã eles devem estar se aproximando de
Jothenville. Nós devemos escoltá-los para que possam chegar em segurança.
— ‘Todos
que tentam sair da cidade são encurralados por dezenas de lobos’. Esse não
é o motivo para a população desta cidade não conseguir escapar? Apenas duas
pessoas para enfrentar dezenas de animais selvagens enquanto tentam proteger um
comboio... Você não acha que essa é uma missão suicida?
Owen mordeu a unha de seu polegar. Ellen
estava certa. Aquilo era algo impossível até mesmo para dois soldados vindos de
um dos melhores exércitos do mundo.
— Ellen, você não acha essa história
estranha?
— Que parte dela exatamente?
— Essa contradição. Todos os comboios
que são enviados para Jothenville são atacados. Todas as pessoas que tentam
fugir da cidade são encurraladas. Eu estava me perguntando... Por que os lobos
não nos atacaram quando nos aproximamos da cidade?
Ellen sentou sobre a cama e fitou Owen.
— Hum... Essa não seria apenas mais uma
prova de que há alguém controlando os lobos? Nós não fomos atacados por que a
pessoa de capuz não sabia da nossa chegada.
— Exatamente. Não acredito que Marcos
saia avisando para toda a cidade o momento exato em que o comboio de alimentos estará
se aproximando. Então só resta acreditar que alguém próximo a ele esteja
vazando as informações para a pessoa de capuz. Como você suspeita pode ser a
própria governanta, ou talvez a cozinheira...
Ellen deu uma risada fraca e se espreguiçou
de uma maneira exagerada.
— Você acha mesmo que a tal Bianca é uma
suspeita? Ela não aparenta ser uma psicopata, não acha?
Owen deu um sorriso tranquilo.
— Você melhor do que ninguém deveria
saber que não é inteligente confiar nas aparências.
Disse enquanto encarava a única pessoa
nesse mundo que conhecia todas as suas máscaras, todas as suas mentiras.
HYAAAAAAAH!!! AAAAAHHH!!! HUAAAAA!!!
Uma série de gritos ecoaram pelos
corredores da hospedaria. O lustre no teto começou a balançar levemente enquanto
os objetos que estavam por cima do criado mudo tremulavam entre pequenos
intervalos. Era como se um terremoto estivesse fazendo a estrutura do prédio
tremer.
Owen levantou em um salto e sem pensar
duas vezes saiu correndo do quarto. Ellen também levantou, mas antes de sair
pegou o Sensorium que estava dentro do sobretudo de seu parceiro. Assim que ela
tentou apressar o passo, seu pé descalço acabou prendendo na barra de seu vestido,
fazendo-a cair no chão.
— Aaaahhh!! Que droga de vestido! Estou
cansada de você me atrapalhando o tempo todo!
Ellen sentou e rasgou boa parte do pano
de sua saia bem acima dos joelhos. Aquele vestido que custara uma fortuna
estava agora completamente destruído, mas isso não foi motivo suficiente para
tirar aquele sorriso travesso do rosto de Ellen.
— Vou chamar isso de minissaia! Acho que
eu acabei de criar uma nova moda que fará sucesso no futuro! Quem precisa de
todo este pano?!
E assim voltou a correr, agora mais
livremente, na direção da escada.
◊
◊ ◊
Owen fez a descida de três andares o
mais rápido que seu corpo permitiu. Na recepção ele encontrou Abadia, Sofia e
mais duas crianças, escondidas atrás do balcão.
— O que está acontecendo?!
Antes que Abadia pudesse responder um
ataque violento contra a porta de entrada fez a estrutura do lugar tremer,
derrubando várias das pinturas que estavam nas paredes. Primeiro Owen pensou
que a porta estava trancada, mas considerando o fato de que ele estava em uma pensão
24h era mais provável que a pessoa do outro lado não sabia, ou era incapaz de
girar uma maçaneta.
— Um assalto?! Estão querendo nos
roubar!
Abadia e seus filhos gritavam toda vez
que o prédio tremia.
— Por favor! Por favor, ajude minha irmã
Bianca! Ela foi até o armazém do lado de fora e ainda não voltou!
Sofia implorou assim que seus olhos
encontraram o jovem de cabelos pretos.
Owen voltou sua atenção para a porta. Se
fossem apenas assaltantes ele poderia detê-los facilmente, mas ataques
monstruosos como aqueles não podiam ser causados por humanos comuns. Ellen
havia detalhado toda a sua batalha contra o mutante no subsolo, então Owen já podia
imaginar o que estava do lado de fora.
Após mais uma série de ataques a porta
voou das dobradiças e se chocou contra a parede oposta a ela, destruindo todos
os quadros e abrindo literalmente um buraco nos tijolos.
Parado na entrada estava a figura de uma
pessoa com olhos amarelos que brilhavam como faróis na escuridão. Ele vestia o
que restara de um uniforme militar. Havia um corte profundo partindo do pescoço
até o abdômen. Seu braço esquerdo havia sido decepado e sua mão direita estava
deformada, cheia de veias pulsantes e unhas que pareciam garras, capazes de
rasgar qualquer coisa. Sangue fresco ainda banhava completamente seu corpo.
Nesse momento uma forte tempestade
começou a cair do lado de fora e uma incontrolável ventania adentrou a pequena
recepção. Mas nem o barulho da tempestade ou a destruição causada pelo vento
foi o suficiente para abafar o grito de Abadia e seus filhos, que estavam
perplexos, sem acreditar naquilo que estavam presenciando.
— Pa-papai...? É você...?!
Sofia perguntou, tremendo com o frio
repentino que tomou seu corpo.
A criatura gritou, preenchendo o ar com
sua sede de sangue. Deixando claro que não havia mais nenhuma gota de
humanidade nele.
14
22:37 P.M – Pensão de Abadia
O rugido gutural da criatura forçou
todos no local a tamparem os ouvidos. Owen estava petrificado. Ele reconheceu
aquele homem como um dos guardas que desceriam até a cidade subterrânea para
resgatar os corpos dos cidadãos que Ellen havia encontrado.
‘Meu
pai, Dio Lima. Ele é um guarda
que trabalha para o governo de Jothenville. Hoje ele está de serviço’, havia dito Bianca.
Sofia tentou ir ao encontro de seu pai,
mas Abadia não permitiu. Ela encarava fixamente aquela criatura de olhos cheios
de ódio sem encontrar nenhuma semelhança com o homem gentil que conhecia.
Normalmente o primeiro sentimento que Abadia tinha quando olhava para Dio era
carinho e afeição, mas dessa vez foi diferente. Havia apenas medo e pânico
corroendo seu coração.
—
Meu Deus... O que é isto...?
—
O que está acontecendo?!
—
Um demônio...
Novas vozes ecoaram. Várias pessoas
desciam a escada, parando assim que encontravam a figura sinistra que
permanecia imóvel na porta. Menos de um minuto depois haviam cerca de trinta
pessoas se espremendo no pequeno espaço da recepção. Owen entrou em pânico. Ele
já havia presenciado a força e a velocidade de uma criatura como aquela e sabia
que era impossível proteger todas aquelas pessoas num espaço tão pequeno.
Dio rugiu e deu um único passo para
dentro da hospedaria. Uma ação estranha para alguém que aparentemente deveria
ser incontrolável. Por isso Owen acabou comparando-o a um soldado parado na
linha de frente, esperando pelas ordens de seu superior. Aguardando o sinal
para atacar.
E apenas cinco segundos depois a ordem
finalmente chegou.
Dio cravou as garras de seus pés no
chão, pegou impulso e avançou rápido como o disparo de uma arma. Enquanto a
multidão de pessoas tentava desesperadamente subir as escadas, Owen correu na
direção do mutante. Mesmo sem estar com suas armas, mesmo sabendo que em uma
luta corpo-a-corpo estaria em grande desvantagem. Ainda assim, sem pensar duas
vezes, ele continuou a avançar.
Dio lançou um golpe circular usando as
garras de sua única mão. Owen desviou agilmente e segurou o braço dele.
— Eu sou o seu oponente!
Ele girou o mutante e o lançou para o
outro lado da sala. Dio bateu contra o sofá e caiu sobre a mesa de chá,
deixando-a em pedaços.
— TODOS PARA FORA, AGORA!!
Owen berrou usando todo o ar de seus
pulmões. Os moradores perplexos demoraram segundos importantes antes de
começarem a esvaziar o local. Nesse momento um tumulto generalizado teve
início. Empurrões, agressões, desespero. Um homem pegou alguns livros de uma
prateleira e os lançaram contra a janela do local, quebrando-a em milhares de
pedaços e transformando-a numa nova rota de fuga. A cidade então foi tomada por
gritaria e correria.
Owen ficou entre Dio e o aglomerado de
pessoas com a missão de segurá-lo durante o tempo necessário para que todos
pudessem fugir.
— Não vou deixar você passar...
— GROAAAAAAAAAA!!!
Dio iniciou
uma série de tentativas de cravar suas presas no garoto de cabelos pretos. A
medida que desviava, Owen lançava socos rápidos contra o rosto do mutante.
Pela primeira
vez ele sentiu que poderia vencer. Aquela criatura podia ser incrivelmente forte
e resistente, mas ainda era algo que podia ser derrotado.
Nesse
momento aconteceu algo que mudou completamente o rumo daquela batalha. As
pessoas que tentavam atravessar a porta da pensão começaram a cair como uma
fileira de dominós, pisoteadas por dois grandes lobos marrons.
Owen perdeu
o foco, e no desespero para tentar ajudar aquelas pessoas acabou deixando uma
brecha para o ataque de Dio. As garras afiadas que o despedaçaria facilmente
desceram numa velocidade incrível, mas pouco antes de acertá-lo uma lâmina
negra dançou no ar e cortou o braço de Dio. Não foi o suficiente para
desmembrá-lo, mas abriu um corte profundo que fez sangue jorrar sem controle por
todos os lados.
Ellen girou
a espada e acertou o peito de Dio, atravessando-o completamente. Em seguida
apoiou seu pé descalço contra o estômago dele e o empurrou, jogando o mutante
no chão enquanto retirava a lâmina. Dio passou algum tempo se retorcendo de dor
e agonia antes de ficar imóvel.
Owen voltou
sua atenção para a dupla de lobos que corriam na direção dele, ignorando toda a
multidão que tentava escapar.
— Eles estão
atrás de nós... Ellen, meu Sensorium!
Ellen jogou
a espada para Owen. O primeiro lobo pulou e o garoto de cabelos pretos o
acertou ainda no ar usando o lado sem corte de sua lâmina, derrubando-o. Antes
mesmo do segundo animal conseguir saltar, Owen o acertou com um poderoso golpe
no pescoço, fazendo-o rolar pelo chão e bater contra o primeiro lobo que
tentava se levantar.
— Ellen, precisamos levá-los
para fora!
— Owen, como você acha que os
lobos se comunicam?
A garota de cabelos brancos
murmurou e começou a girar sem rumo.
— O quê?!
— Acompanhe o raciocínio! Há
estudos dizendo que canídeos se comunicam por meio de uivos, gestos, até mesmo
pelo ranger dos dentes. Mas também existem as lendas! Há uma falando que eles
são capazes de se comunicar através de telecinese!
— Você está supondo que a pessoa
de capuz está enviando ordens para essas criaturas através de pensamentos?
— Não sei, é apenas um palpite!
— E que palpite...
Dessa vez os dois lobos raivosos
pularam ao mesmo tempo para cima de Owen, mas o lado sem corte da espada foi
ainda mais rápido. O garoto de cabelos pretos acertou o primeiro lobo no
estômago, e o segundo bem no meio da face, lançando-os para o outro lado da
recepção novamente.
— Tem mais! E se esse poder
funcionar como ondas de rádio? O controlador precisaria estar num local aberto para
que possa enviar as ‘ordens’ sem
nenhum tipo de interferência.
Ellen falou enquanto continuava
a girar em círculos sem parar.
— A pessoa de capuz precisaria
estar bem perto de nós, com uma visão clara do que está acontecendo aqui
dentro...
O que não era muito difícil,
graças a janela e a porta quebrada.
— São apenas suposições, Owen.
Não há nenhuma garantia de que eu esteja certa.
— Não custa nada tentar.
Owen reparou que a maioria das
pessoas já haviam deixado o local, restando apenas Abadia e seus filhos, ainda
paralisados atrás do balcão.
— Ellen, eu
irei atrás do controlador. Você precisa levá-los para um lugar seguro!
O par de lobos já estavam de pé
novamente. Eles rugiram e correram mais uma vez para cima de Owen.
— Vocês querem brincar?
Owen sorriu e correu,
atravessando a porta da hospedaria com os gigantescos lobos em seu encalço.
Mesmo com a forte chuva caindo,
o centro de Jothenville continuava cheio de pessoas. A grande maioria composta
por curiosos que tentavam descobrir o motivo para tanta correria e gritaria.
Owen deu a volta na pensão enquanto buscava por um local que possibilitaria uma
visão privilegiada da hospedaria, e imediatamente encontrou o lugar mais
suspeito. Um velho armazém escondido pela escuridão da noite, duas ruas após a
pensão.
Assim que ele chegou à frente do
armazém, os lobos misteriosamente pararam e logo após sentaram, agindo como simples
cães adestrados.
— A pessoa de capuz está aqui...
Owen apoiou as mãos sobre os
joelhos para recuperar o fôlego, e nesse momento notou a presença de outra
pessoa na frente do armazém.
As mãos da garota de olhos azuis
tremiam compulsivamente. Seu vestido estava completamente encharcado por causa
da chuva fria que caia. Ela respirava forçadamente, com o medo e o pânico
refletido em cada pequeno gesto.
Ela respirou fundo e ergueu uma
espingarda de dois canos na direção de Owen, com seu dedo roçando o gatilho.
— Bianca...
◊
◊ ◊
Assim que Owen deu o primeiro
passo para fora da hospedaria, Ellen correu até Abadia e seus filhos.
— Levantem! Precisamos sair
daqui antes que outros deles apareçam!
Como se estivesse despertando de
um transe, Sofia levantou em um pulo, livrou-se dos braços de sua mãe e correu
desesperada até o corpo do mutante caído.
— Papai?! Papai?! Levante-se!
Você precisa vir conosco! Por favor! Por favor! Acorde!!
Ela ficou de joelhos ao lado de
Dio e começou a balançá-lo, na esperança de que ele estivesse apenas preso em
um sono profundo.
— ...Papai...?
Ellen sussurrou enquanto um frio
súbito tomava seu corpo, notando pela primeira vez o que havia feito. Ela matou
o pai daquelas crianças na frente deles. Aquelas mãos que ela tanto odiava
haviam destruído mais uma família.
Sofia tentou erguer o corpo de
seu pai, sem sucesso. Abadia e seus outros filhos levantaram, e cambaleantes
formaram um círculo ao redor de Dio.
— Marido...
Abadia caiu de joelhos. Seus
outros dois filhos começaram a chorar, finalmente se dando conta do que havia
acontecido.
Então aquilo que Ellen mais
temia aconteceu. Uma série de gritos guturais ecoaram e dois novos mutantes,
trajando uniformes militares como os de Dio surgiram, invadindo a recepção da
hospedaria. Seus corpos estavam ensanguentados. Veias grossas e pulsantes
cobriam completamente a pele de cada um deles.
Assim que os monstros avançaram,
Ellen ergueu suas duas mãos que começaram a brilhar imediatamente, lançando
canhões de luz que cegaram as criaturas momentaneamente, fazendo-as recuar.
— TODOS VOCÊS SUBAM AGORA!!!
Ellen gritou e voltou seu rosto
na direção de Abadia e seus filhos. Nesse momento ela presenciou o exato momento
em que um dos dedos de Dio se moveu.
— Fujam... FUJAM AGORA!!
Ellen correu na direção de
Abadia, mas já era tarde.
Dio rugiu subitamente e lançou
sua mão na direção da primeira pessoa que seus olhos sem vida encontraram,
segurando-a pelo pescoço.
— AAAaagh!!!
Abadia tentou desesperadamente
escapar. Seus três filhos gritaram em desespero e correram para ajudar, mas eles
não tinham a força necessária para retirar a mão de Dio. Cinco segundos depois
o mutante dobrou a força imposta sobre o pescoço de Abadia, fazendo-a sucumbir.
E assim o soldado matou sua esposa. A pessoa que ele mais amava.
E assim o soldado matou sua esposa. A pessoa que ele mais amava.
— MAMÃE!!!
— MÃE!!!
—
MAMÃE!!!
O grito
estridente das três crianças ecoaram ao mesmo tempo pelo cômodo destruído da
hospedaria.
15
22:51 P.M – Centro de Jothenville
— Largue a espada senão eu
atiro.
Bianca falou com um tom de voz
frio.
— Isso não faz sentido... Por
mais que eu tente encontrar um motivo, nada me vem à cabeça... Você não disse
que tinha uma vida boa aqui?! Você não disse que o amor de seus pais e irmãos
era o suficiente?! Então por que diabos você está fazendo isso?! O que você
ganha torturando todas essas pessoas?!
Owen estava confuso e atordoado.
No momento em que ele colocou Bianca como uma suspeita, ele estava se
preparando mentalmente para encarar aquela situação. Mas aparentemente ele
ainda não estava pronto. Era cruel demais saber que existia uma pessoa tão fria
e irracional ao ponto de matar aos poucos toda uma cidade.
— ...Me poupe de suas
mentiras... São vocês que estão por trás de tudo isso!
Bianca vociferou.
— Nós somos os responsáveis?
Como assim?!
— Marcos estava cansado de toda
aquela corrupção, de todo aquele abuso... Ele não queria mais ser considerado
uma das raízes podres do governo, por isso tentou mudar a Legião de Mahyra por
dentro... Transformá-la em um exército que fosse capaz de ajudar as pessoas e
não de oprimi-las. Ele queria ser o herói de seu povo, não o vilão. Mas a
maioria não permitiu que isso acontecesse... Como uma forma de parar as ações
de Marcos, mataram sua esposa cruelmente, dentro de sua própria casa! Ele foi
obrigado a fugir da República do Rio para não ver sua filha sofrer o mesmo
destino daquela que ele amava! Marcos apenas não queria que Aria continuasse
respirando a podridão daquela cidade de demônios...
Owen estava perplexo, tentando de
todas as formas compreender as palavras que escapavam pela boca de Bianca.
— Marcos era um Legior...?
Ignorando-o a garota de cabelos
pretos prosseguiu.
— ‘Quem entra nunca consegue sair’... Esta não é uma das políticas da
Legião?! Vocês consideram a fuga de Marcos uma traição... Não foram capazes de
deixá-lo viver em paz! Caçaram-no e assim que o encontraram nesta cidade
começaram essa vingança sem sentido! Impedindo a chegada de alimentos,
transformando toda a Jothenville numa prisão particular! Tudo isso por que não
foram capazes de aceitar alguém honesto e gentil como parte da equipe... Vocês
são os piores tipos de monstros que existem!
— Bianca, você tem ideia do
quanto essa história é absurda?
Owen falou com o tom mais calmo
e convincente que podia. Bianca não o ouviu. Seu dedo roçava nervosamente o
gatilho da arma, enquanto a tempestade ficava ainda mais forte.
— Vá atrás de sua cúmplice e
saiam dessa cidade...
Owen apertou o botão de seu Sensorium,
retrocedendo sua lâmina. Em seguida deu um passo na direção da garota de
cabelos pretos.
— Não sou alguém que cumpre as
ordens da legião cegamente, Bianca... Não sou um demônio sem coração que
cometeria genocídio por um motivo tão estúpido e irracional. A legião pode ter
cometido muitos erros no passado, mas atualmente existem Legiors que lutam pela
ordem e pelo bem de toda essa nação!
Outro passo.
— NÃO SE APROXIME OU MATAREI
VOCÊ!
— ENTÃO EU PEÇO PARA QUE ATIRE
AGORA, POIS EU NÃO VOU PARAR!
Mais um passo.
— A primeira vez que ouvi falar
de Marcos Arthmael foi no momento em que uma carta assinada por ele parou nas
minhas mãos. Não acha estranho ele mandar uma mensagem para as pessoas que
supostamente estão caçando ele? Aquela carta informava sobre a situação de
Jothenville, um obvio pedido de ajuda. Eu e Ellenia viemos sem uma ordem oficial da
legião para investigar e reverter o desastre que prendeu este povo dentro de
sua própria cidade. Estamos aqui para salvar vocês! Então definitivamente, é impossível que alguém da legião seja
responsável pelo que está acontecendo em Jothenville.
Pela primeira vez Bianca
hesitou.
— Olhe nos meus olhos e diga que
estou mentindo... Olhe nos meus olhos e diga que sou alguém que mataria
milhares de pessoas apenas para satisfazer meu ego! Eu aparento ser um demônio
sem sentimentos, incapaz de sentir remorso?!
A voz dele não continha nenhum
traço de mentira, e Bianca estava ciente disso. Aqueles olhos dourados não
piscavam e também não hesitavam. Eram os olhos de alguém que acreditava
firmemente em seus conceitos, e nunca os trairia.
Owen finalmente ficou à um passo
de distância da garota de cabelos pretos.
— Confie em mim...
Ele tocou a espingarda e a
abaixou, voltando sua ponta para o chão.
— ...Foi a pessoa de capuz que
contou toda essas mentiras para você? Você sabe quem é essa pessoa, não sabe?
Aproximou seu rosto do ouvido
direito dela e sussurrou.
— ...A pessoa de capuz está
naquele armazém, não está...?
Nesse
momento o sangue de Owen jorrou sobre o corpo de Bianca.
— UAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHhh!!!
Owen gritou e caiu de joelhos
por causa do animal pesado que cravara as presas nas suas costas. A visão dele
tremulou. A dor insuportável fazia com que ele perdesse os sentidos aos poucos.
Passos sobre o piso de pedras
ecoaram, e uma nova figura parou ao lado do segundo lobo que ainda permanecia
deitado.
— Eu já imaginava que você não conseguiria
cumprir esta tarefa, Bianca. Uma pessoa tão... pura, não teria a força
necessária para puxar o gatilho...
A voz que atravessava a fina
máscara de gesso era fria e calculista.
Bianca teve que tapar a boca com
as mãos para conter a ânsia de vômito que tomava seu corpo. O sangue quente que
escorria pelo seu rosto havia deixado ela em estado de choque.
— O que você fez... ELE DISSE
QUE NÃO FOI A LEGIÃO QUE PLANEJOU ESSA VINGANÇA CONTRA MARCOS! Ele... não
estava mentindo...
A pessoa de capuz acariciou a
cabeça do lobo ao seu lado.
— Não é por esse motivo que irei
matá-lo. Há algo bem mais importante do que o futuro dessa cidade... Se eu
deixar este homem viver, não serei capaz de realizar meu sonho...
A pessoa de capuz ergueu seu
braço direito, ordenando que o segundo lobo levantasse.
— Não, não, não... Se você fizer
isso não terá mais volta... Você se tornará uma assassina!
Bianca gritou desesperada.
— Heh... Você realmente não me
conhece, não é?
— Eu conheço você! Eu cresci ao
seu lado, então sei que você é uma boa pessoa! Minha melhor amiga, não uma
assassina!
— Ah... Isso só prova que você nunca
me olhou de verdade. Mesmo após tanto tempo juntas, você nunca conseguiu
entender meus verdadeiros sentimentos. Não foi capaz de enxergar meu verdadeiro
eu...
O segundo lobo avançou. Owen
estava preso, incapaz de fugir por causa do primeiro lobo que continuava restringindo
seus movimentos. A dor insuportável o impedia de formular qualquer plano de
fuga.
— RWOAAAAAAAA!!!
O animal selvagem saltou. Owen
conseguiu se mover alguns centímetros para o lado, evitando que o lobo arrancasse
sua cabeça. Mas não foi o suficiente para tirar seu braço esquerdo do caminho.
Com uma única mordida, o segundo
lobo levou o braço do garoto de cabelos pretos.
— AAAAAAAAAAAHHHHHhhh!!
O grito de Owen cortou a noite,
ecoando por todas as ruas e becos de Jothenville.
◊
◊ ◊
Dio soltou o
pescoço de Abadia e fitou o rosto de cada um dos seus filhos.
— Não...
Ellen
rapidamente direcionou o jato de luz dos mutantes na porta para o rosto de Dio,
cegando-o por tempo suficiente para que ela alcançasse as crianças.
— Venham comigo,
agora!
Ellen
interrompeu sua habilidade para que pudesse segurar o pulso de Sofia com uma
mão e o braço do garoto mais velho com a outra, puxando-os imediatamente na
direção da escada.
— Irmão!
Vamos!
Sofia gritou
ao notar que seu irmão mais novo não estava seguindo ela. Ellen parou no meio
da escada, preparando-se para ir ao resgate daquele que havia ficado para trás.
Mas Dio foi
mais rápido.
Ele segurou
a perna do pequeno menino e o derrubou. Sofia tentou correr para ajudá-lo, mas
Ellen não permitiu. Se eles voltassem agora acabariam encurralados pelos outros
dois mutantes que se aproximavam rapidamente. Sem encontrar outra alternativa,
Ellen voltou a puxar Sofia e o garoto mais velho escada acima.
Aquela
pequena criança nem ao menos gritou quando Dio ficou por cima de seu corpo e
cravou as garras em seu peito. Ele ainda não compreendia o significado da
morte, por isso não estava com medo. Mesmo banhado em seu próprio sangue, o
garoto mais novo ainda não acreditava que seu pai queria lhe fazer mal.
Por esse
motivo ele continuava sorrindo inocentemente.
Menos de um
minuto depois aquela criança finalmente encontrou a paz.
E
assim o soldado matou o filho mais novo.
Ellen
arrastou as duas crianças escada acima até chegarem ao último andar do prédio,
onde entraram no quarto que foi alugado por Owen.
Após trancar
a porta, Ellen soltou os dois irmãos e correu até a janela de vidro. Eles
estavam muito alto. Fazer com que as crianças pulassem de uma altura tão grande
seria o mesmo que mandá-los para a morte. Ellen pensou em improvisar uma corda
usando as roupas de cama, mas antes dela ter a chance de colocar esse plano em
prática, a porta do quarto e boa parte da estrutura da parede foram jogadas
para baixo com apenas um golpe, gerando uma imensa nuvem de poeira.
Os três
mutantes invadiram o local.
— Como eles
nos acharam tão rápido?!
Ellen notou
que o pano de seu vestido, logo abaixo do pescoço, estava estranhamente húmido.
Ela tocou o local e se assustou ao notar o líquido vermelho que ficara
impregnado nos seus dedos. Suas costas estavam sangrando.
Tentando não
perder o foco, Ellen rapidamente sacou uma navalha e cortou a palma de sua mão
direita. Sua intenção era derreter o piso para impedir o avanço das criaturas,
mas assim que ela encostou a mão no chão algo inesperado aconteceu.
O braço direito dela caiu.
Sangue
rapidamente encharcou suas vestes e se espalhou pelo piso à sua volta. Ellen
estava de olhos arregalados, perplexa. Ela não sentia a dor daquele grave
ferimento, mas podia sentir a poderosa vertigem causada pela grande perda de
sangue.
— Owen...
Owen... Owen... Owen... Owen...
A garota de
cabelos brancos levantou, cambaleante, e tentou estancar o sangramento usando
sua mão esquerda, inutilmente. Ela recuou até as duas crianças que encaravam aquela
cena em pânico absoluto.
Dos três
mutantes Dio tomou a frente, agindo como uma espécie de líder.
— MEUS FILHOS... ELES SÃO MEUS!
As outras
duas criaturas recuaram em resposta, obedecendo as ordens de seu superior. Dio
estava consciente das barbaridades que estava fazendo, e quem eram as pessoas
que ele estava machucando. Mas aquele monstro não parecia se importar. Na
verdade ele estava apreciando todo aquele desespero.
— Eu preciso protegê-los... Eu tenho que protegê-los... É meu dever...
Eu preciso fazer alguma coisa!
Ellen
procurava desesperadamente uma forma de escapar, mas sua mente estava nebulosa.
Ela não conseguia pensar em nenhuma maneira de deter aquele ser imortal.
Como se
zombasse do medo de Ellen, Dio avançou, ergueu suas garras e atacou sem
hesitar.
— NÃO!!
O garoto
mais velho empurrou Ellen e Sofia usando suas duas mãos, tirando-as da frente
daquele golpe mortal. Infelizmente era impossível para ele escapar.
—
Sobreviva... Irmã...
Com um
último sorriso em seu rosto, o garoto voou e se chocou violentamente contra uma
parede, manchando-a de vermelho. Logo após ele caiu sobre a cama do quarto. Mesmo
com os olhos fechados ele continuava a sorrir. Qualquer um que o observasse nesse
momento poderia dizer que ele estava apenas dormindo, tendo o mais belo dos
sonhos.
E
assim o soldado matou o filho mais velho.
— UAAAAAAHHHH!!!
Sofia cobriu
os próprios olhos, incapaz de encarar a realidade, enquanto lágrimas desciam
sem cessar pelo seu pequeno rosto. Já Ellen caiu de joelhos, parte pela grande
perda de sangue, e a outra parte pelo choque de ter presenciado algo tão
brutal.
— Eu... não
posso desistir... Ainda não é o fim... Enquanto restar alguém que precise da
minha proteção... Enquanto eu continuar respirando, devo continuar lutando!
Ellen usou o
que restava de suas forças para se levantar novamente. Ela tinha que continuar
seguindo em frente. Mesmo sem seu braço, mesmo com suas pernas se negando a
avançar.
A garota de
cabelos brancos estava ciente de que seria o fim no momento em que ela se desse
por vencida.
Mas se
dependesse de Ellenia Gweneth esse dia nunca chegaria.
Sem hesitar,
Dio atacou novamente. Ellen empurrou Sofia, jogando-a de costas no chão, consequentemente
tirando-a da rota de ataque. Em seguida usou seu braço esquerdo para proteger
seu corpo do ataque mortal que estava por vir.
Ellen voou
ao ser atingida, batendo primeiramente no criado mudo para depois se chocar
contra uma parede. Mesmo abalada pela dor imensurável causada pelo choque, ela
tentou ficar de pé mais uma vez. Mas ao dar o primeiro passo, Ellen caiu
novamente como uma pedra.
Seu
tornozelo esquerdo estava quebrado.
— Não...
Não... Minhas pernas... Vocês não podem me abandonar agora! Vamos lá, de pé!
Ellen gritou
enquanto tentava desesperadamente se erguer, mas seus membros não obedeciam.
Dio olhou
primeiramente para Ellen, mas em seguida, contrariando todas as pistas de que a
garota de cabelos brancos era o alvo, voltou-se para Sofia.
— Não... Ela
não... VOCÊ ESTÁ ATRÁS DE MIM!!! EU ESTOU AQUI!!!
Ellen continuou
gritando, mas Dio não lhe dava atenção. Sofia se levantou lentamente e ficou
imóvel. A pequena garota ruiva não ameaçou fugir. Ela apenas prendeu a
respiração e esperou pelo fim.
Não havia
rancor em seu coração. Sofia sabia que aquele demônio não era o pai gentil que
conhecia, por isso ela queria deixar essa vida lembrando de Dio como um homem
alegre e corajoso. Aquele que sempre a
incentivou, que sempre a amou.
O mutante
parou há um passo de distância e encarou a pequena criança por alguns segundos.
— Estou pronta...
Papai...
Sofia deu um
último sorriso, idêntico ao de seus outros dois irmãos. Dessa vez sem lágrimas.
Dio segurou
o pescoço dela e a ergueu.
— NÃO!!
LARGUE ELA!! LARGUE-A AGORA!! SE NÃO SOLTÁ-LA EU O MATAREI!! EU JURO QUE O
MATAREI!!
Ellen se arrastava
pelo chão usando seu único braço, deixando um grande rastro de sangue pelo piso
de concreto queimado. Mas ela não era rápida o suficiente para parar aquele
demônio. Não era forte o suficiente
para proteger uma única vida.
— Não... Por
favor... Não...
Todas
as orações foram feitas. O soldado estava pronto para matar sua última filha de
sangue. A filha prodígio, sua favorita.
Dio lançou
Sofia. A pequena pintora girou pelo ar antes de atravessar a janela de vidro do
apartamento, ainda sorrindo, enquanto inspirava pela última vez o ar húmido de
uma noite sem estrelas.
Ela era como
um espirito solitário, com seu coração cheio de medos e incertezas, voando em
busca do paraíso...
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