Chiharu - Capítulo 03



 Você não tem pelo que se desculpar.

Ainda era de manhã quando eu liguei pra Nanami. Eu achei que deveria contar a ela sobre o acontecimento da noite passada. Eu não me sentiria bem se ficasse sem falar nada com ela, mas talvez esse tenha sido um pensamento egoísta.

 Como você pode dizer isso? Por minha culpa, a Shizuka... 

A voz dela começou a ficar chorosa. Eu apertei o fio do telefone em face da minha incapacidade de consolá-la.

 Você não tinha como saber que ela teria um espasmo, muito menos que ia ser um tão forte. Não importa o que você tivesse feito, é algo que não poderia ser evitado.

 Mas... 

Embora eu tenha dito isso, talvez eu não acredite nas minhas próprias palavras. Eu me culpo pelo que aconteceu, afinal, eu sou o único responsável por ela. Eu me deixei levar e acabei deixando a responsabilidade em cima da Nana. Esses espasmos sempre me aterrorizam... Droga... Eu cuidei de Shizuka todos esses anos... Talvez se ela a tivesse deixado um pouco menos na ponta... 

 Eu vou faltar a escola e ir aí hoje me desculpar! 

 Não! 

Minha resposta foi instantânea. Ela fez uma pausa.

 Você não confia mais em mim? 

 Não é isso...

Eu não queria que soasse assim.

 Você não pode faltar à escola por causa disso. Se você fizer isso eu vou apenas me sentir culpado.

Eu pude ouvir o som da voz hesitante dela do outro lado da linha. 

 Por favor. 

Eu fiz uma pausa e suspirei. 

 Escute. Amanhã você pode vir aqui e se desculpar. Mas não ouse faltar nenhuma aula pra vir, entendeu?

 ... Entendi.

Eu respirei aliviado.

 Ótimo. Não se pressione demais, ok? Te vejo amanhã.

 Certo. Até... 

A voz dela ainda parecia abatida quando desligou o telefone. Ela realmente se sente culpada pelo que aconteceu. Eu olhei na direção do quarto de Shizuka. Tudo que eu podia ouvir era o som da televisão ligada e uma luz oscilante saindo do quarto. Meus olhos oscilaram pra baixo, com pena da minha própria irmã, e meus lábios se moveram num lamento silencioso por sentir aquilo.


. . .


Eu apenas conseguia olhar pela janela enquanto o professor dissertava sobre números e equações. Eu estava completamente desconfortável por ter que vir à escola hoje. 

Pela manhã eu acordei Shizuka logo cedo e saí pra passear com ela. Eu guardo uma cadeira de rodas num quarto que uso como armazém, então posso usa-la para passear com ela e mostrar o que conheço das redondezas. Na volta pra casa, encontrei com uma pessoa teimosa de cabelos loiros que faltou à escola pra se desculpar. Ela insistiu que eu fosse para a aula enquanto ela ficava com Shizuka para se redimir. Eu planejava faltar hoje novamente, mas o olhar da foi irrecusável.

Isso e por que ela prometeu fazer o jantar.

O sinal tocou, dando início ao período de almoço. Eu olhei pro quadro cheio de escritos que eu não havia acompanhado e lamentei com antecedência pela minha prova de matemática. Eu saí da sala e caminhei calmamente pelo corredor.

Impacto.

Uma onda de força me atingiu pelas costas e quase me derrubou. Eu pude sentir algo pendurado no meu pescoço me inclinando pra trás logo em seguida. Então eu ouvi uma voz.
 Makoto-san! Makoto-san! Finalmente eu te encontrei! 

Essa voz... 

Eu separei os braços em forma de colar ao redor do meu pescoço e fiz os pés dela tocarem o chão antes de me virar, só pra confirmar minha suposição.

 Yuujimura-san?

 Por que você não veio à escola ontem? Hein, hein? 

 Bom, algumas coisas aconteceram e... 

Eu cocei a cabeça e desviei o olhar. Graças a isso eu pude ver Kaioshi e Akakyo acenando e se aproximando. Kaioshi fez a saudação.

 Yo. 

 Yo!

Eu sorri ao vê-los. Estava feliz em não ter que responder a pergunta à Hanabi.

 Por que você não veio ontem? Essa aí ficou grudada na gente o tempo todo perguntando por você. 

Eu desviei o olhar. Fui bombardeado com a mesma pergunta novamente.

— Ah, bom... Eu não estava me sentindo muito bem.

Eu cocei a cabeça enquanto olhava fixamente um ponto no rodapé. Mesmo assim, pude sentir o olhar penetrante de Akakyo como se ele soubesse que eu estava mentindo. Hanabi deu o que quase foi um salto pra frente e segurou minhas mãos, balançando-as freneticamente em seguida.

 Mas hoje você está se sentindo melhor não é! Yay! Vamos pro clube de dança com fantoches de novo! 

Nesse momento eu corei imediatamente. Eu não havia contado a eles que tinha participado desse clube... Na verdade eu não tinha pensado no quanto seria embaraçoso pra mim depois. Eu ousei olhar pra eles. A expressão deles não é a de quem estava surpreso com a notícia, mas de quem já sabia e apenas estava se lembrando. Nekogami pôs as mãos nos bolsos e inclinou o rosto para baixo enquanto dava risos, enquanto Osakura colocou a mão na frente da boca e bufou as bochechas tentando se segurar, sem muito sucesso. Risos altos. O resultado foi um Kaioshi segurando a barriga enquanto ria. Akakyo não conseguiu aguentar e diante da risada do amigo levou a mão à cabeça e a atirou pra trás, se virando de costas enquanto ria. 

Eu olhava pra tudo enquanto cerrava os punhos de raiva. Yuujimura levou o dedo até a boca como quem não entendesse a situação. 

Será que nem por um momento ela pensou que pudessem estar rindo do clube dela?
Alguns segundos depois ela se virou pra mim e me puxou de novo, forçando uma resposta. Eu apenas consegui balbuciar.

 Ah, eu... Hum...

Eu senti algo me abraçando pelo pescoço. Foi quando notei meu rosto se aproximando do de Osakura até ficar lado a lado com o dele. Ele me puxou pra longe enquanto falava.

 Ah, desculpe! Hoje não vai dar! O Makoto já tinha combinado algo com a gente hoje à tarde, então foi mal! 

Ele fez uma saudação com um toque militar na testa. Ela tentou protestar.
 M-mas!

Enquanto ele me puxava pelo corredor a última coisa que pude ver foi o rosto emburrado da pequena garota de cabelos negros.


. . .


Eu ouvi o sinal que dava o fim à ultima aula. Eu me levantei e rumei normalmente em direção à saída da escola. Fui surpreendido, já no exterior, com um toque no meu ombro esquerdo. Era Osakura. Nekogami ergueu a mão em cumprimento.

 Yo! Está pronto? 

 Pronto?

Eu realmente não faço ideia do que ele está falando.

 Você combinou de sair com a gente hoje não foi? 

 Eu combinei?

Eu tentei buscar na minha memória... Nada.

... Ah!

Ele não pode estar falando sério se estiver se referindo ao que disse à Hanabi hoje mais cedo. Não que eu não queira sair...

Não que eu esteja preocupado nem nada, nem confie na Nana, mas...

 Ah, vamos! Você nunca tem tempo pra sair com a gente. 

Eu sorri desconsertado. A verdade é que eu não sei por que esses dois perdem tanto tempo comigo, um cara que eles nem conhecem direito. Sinto como se nossa amizade fosse unilateral a maior parte do tempo. Acho que não posso recusar.

— Bom, já que você insiste...

Eu sorri apenas uma vez, mas recebi dois sorrisos de volta.

Nós saímos pelo portão. Primeiro nós decidimos parar pra comer algo, então paramos numa barraca de Tayaki e pedimos alguns. Eu caminhei um pouco por algumas ruas que nunca tinha visto, ou simplesmente não lembrava. Tomei bastante cuidado pra não me perder. Nós paramos numa loja de games. Eu e Osakura estávamos olhando alguns lançamentos novos. Eu não tenho oportunidade pra jogar nada, então eu me admiro bastante com o quanto a qualidade dos jogos, pelo menos nas aparências deles, que melhorou muito com o passar dos anos. Nós vimos Akakyo ir até o balcão e pedir algo quase que escondido para não vermos. Eu e Kai nos olhamos e nos aproximamos sorrateiramente por trás. O vendedor entregou um pacote vermelho que devia ser de algum jogo para portáteis e pediu para Nekogami verificar. Antes de ele conseguir por numa sacola plástica a mão voadora de Kaioshi agarrou o pacote e trouxe mais pra perto para que pudéssemos ver. Kyo ergueu a mão num gesto inútil de tentar impedi-lo.

... Kerubi?

Eu desviei meu olhar do nome do jogo e me voltei para a figura da capa. Era uma bolinha azul com olhos e bochechas rosadas. Apesar de sua aparência claramente fofa ela tinha uma expressão séria no rosto. Havia também a classificação indicativa do jogo logo abaixo da imagem.
 Indicado para crianças entre 6 e 10 anos. 

Nós dois erguemos os olhos do jogo e fitamos o garoto ruivo fixamente com olhar de total e completa reprovação. Ele corou e tomou rapidamente o jogo das nossas mãos e enfiou dentro do saquinho, dando as costas para nós dois.

Por quase uma hora nós zoamos com ele por causa disso.

Depois que as coisas se acalmaram nós entramos numa loja de revistas e mangás. Eu pude rever mangás de alguns animes que eu gostava muito quando era menor, e alguns novos que já tinha ouvido falar ou visto um episódio ou dois. Descobrimos que nossos gostos eram bem parecidos. Em certo ponto eu derrubei um mangá sem querer, revelando algo que não deveria estar naquele lugar: Uma revista erótica. Como quem tem algum sensor de perversão aqueles dois se aproximaram de mim enquanto eu segurava a revista com as duas mãos.

Não me julgue. Elas se moveram sozinhas.

Não havia nenhum lacre ou algo do tipo. Eu abri a revista numa página nossos olhos brilharam diante da vista. Nossa diversão foi rapidamente cortada, no entanto, quando percebemos uma presença atrás de nós. Uma funcionária, que segurava um objeto - um bastão pra ser mais exato - particularmente assustador. Ela batia com ele na sua outra mão enquanto olhava pra nós, furiosa. Praticamente no segundo seguinte, nós três estávamos correndo em disparada para fora da loja. 

Nós corremos por mais alguns minutos com medo de que ela tivesse nos seguido. Estávamos agora parados com as mãos nos joelhos, rindo de nossa própria idiotice.

Eu olhei o horário no meu velho celular. Ainda tínhamos um pouco de tempo pra fazer alguma coisa. 

 E então, pra onde vamos?

Nekogami falou primeiro.

 Bom, na verdade, eu lembrei que preciso fazer algumas compras que meu avô pediu. Podem ir na frente. Nos vemos amanhã. 

 Ah.. Não quer ajuda?

Ele fez um sinal negativo com a mão.

 Não, não se preocupe. 

Eu e Osakura erguemos as mãos enquanto ele dava as costas e ficamos olhando até ele virar numa esquina.

— Então, acho que devíamos ir pra casa também...

Apesar da minha sugestão Osakura parecia pensativo sobre algo.

 Na verdade... 

Eu olhei curioso.

 Tem um lugar que você ainda não deve conhecer. Você por acaso conhece a lenda do monstro que vive nessa cidade? 

Lenda do monstro? Eu vivi aqui quando era pequeno, e nunca ouvi nada do tipo... Histórias sobre monstros deviam ser mais populares entre crianças do que entre jovens não é? Talvez seja algum tipo de folclore dos últimos anos?

 Não...

Ele sorriu de forma sádica.

 Sei... Então vamos. 

Ele me puxou pelo braço na direção oposta a que Akakyo havia ido.

— Vamos pra onde? Ei, Osakura!

E assim eu acabei sendo arrastado por ele duas vezes no mesmo dia.


. . .


Nós dois paramos de frente para uma casa aparentemente normal. Estamos abaixados atrás de um arbusto espreitando por uma janela, nos movimentando lentamente para ver melhor pelas frestas. Ele parece conseguir a visão antes de mim e aponta

 Ali! O monstro... Que habita essa cidade! 

Eu me movimentei para a posição onde ele estava totalmente incrédulo de que poderia realmente avistar um monstro.

E a visão com a qual eu me deparei, de fato, não se parecia nada com um.

Eu me deparei com uma bela garota ruiva. Ela tinha olhos alaranjados e parecia realmente concentrada em algo. Eu não podia ver as roupas dela daquele ângulo, mas podia supor que ela estava com roupas casuais, talvez até com um pijama. 

Eu olhei para Osakura com repulsa. Desse jeito estávamos simplesmente parecendo dois tarados. Ele apenas sorriu e lançou um desafio.

 Vamos entrar lá. 

 O que!?

 Vamos entrar lá! 

Ele repetiu. Por estarmos sobrepondo o tom de voz um do outro eu fiquei com medo que tivessem nos ouvido, então dei uma espiada na janela novamente, mas a garota ainda estava concentrada no que estava fazendo, agora com a pontinha da língua pra fora da boca.

 Você ficou maluco?

 Ah, vamos, você não está com medo não é? 

 Medo? Claro que não, eu só...

 Bichinha. 

 Como é?

— Frangote. 

— Ei, eu já falei que...

 Você devia mudar seu nome pra Osoroshii Makoto! 

Medroso!?

 Ora seu...

 Então entre. 

Ele está me deixando realmente irritado. Eu não gosto de ser desafiado. Não gosto nem um pouco. O espírito competitivo começou a borbulhar no meu sangue e então nós procuramos por uma janela destrancada para entrarmos na casa.

 O que vamos fazer quando estivermos lá dentro?

 Vamos tirar uma foto de alguma coisa para provarmos que estivemos na casa do monstro e então vamos dar o fora. 

 Entendi.

Nós achamos uma janela que estava destrancada. Ele me deu apoio e eu subi. Tive a decência de tirar os sapatos antes de fazer isso. Ninguém parecia ter ouvido nada. Após me certificar que estava tudo bem eu me virei para dar meu braço para apoiar Kaioshi e acabei me deparando com uma janela fechada.

Aquele rosto cínico estava sorrindo largamente enquanto suas mãos me impediam de abrir a janela, por mais que eu tentasse. Eu não podia nem mesmo bater no vidro e xinga-lo por que alguém podia me ouvir lá dentro. Em outras palavras, eu tinha que encontrar um jeito de sair dali... Acho que pela porta da frente, se não houvesse ninguém na sala, seria o jeito mais silencioso... Eu saltei de parede em parede, como um ninja, observando se não havia movimento na casa. Felizmente, a garota parecia ser a única pessoa na casa naquele momento. Enquanto eu evitasse a porta do quarto dela estaria tudo bem. Eu consegui cobrir a distância até a sala, onde não havia ninguém também. 

Ao abrir a porta havia um garoto com uma sacola numa mão e uma chave na outra, apontada como se estivesse prestes a colocá-la na fechadura. Nós nos olhamos por um segundo.

Gritamos ao mesmo tempo. Foi uma reação de surpresa que veio na hora mais inesperada possível. Ele quase derrubou a sacola no chão e eu quase tombei para trás.

 Makoto!?

                        
— Akakyo??

Meu cérebro travou e não consegui raciocinar direito por alguns segundos. Simplesmente fiquei parado como um pateta, com a boca semi aberta.

 O que você está fazendo na minha casa? 

 Sua casa?

No momento em que disse isso eu pude ouvir um risinho vindo de uma lata de lixo atrás de Akakyo, e logo pude ver a silhueta da cabeça do maldito do Osakura. Meu braço se moveu involuntariamente sobre o ombro de Akakyo pra apontar na direção dele.

 Ei, seu maldito! 

Ele parou de rir e balbuciou algo que me pareceu bastante com um 'droga!'. Eu ia abrir caminho por Nekogami pra extasiar a minha raiva quando uma voz feminina atrás de mim me chamou a atenção.

E ela não parecia nada feliz.

 Ei, que gritaria é essa!? Quem é esse aí? 

 Eu me virei pra trás. Lá estava a garota que vi há alguns minutos. Ela estava parada com as mãos na cintura. Agora podia ver melhor as roupas dela, ela estava usando um mini-short de tecido e uma regata vermelha. A expressão no seu rosto não era muito convidativa. Kyo fez uma cara de tédio.

 É meu amigo, Yuragi, deixe-o em paz. 

Aquele maldito... Me fez passar por esse sufoco... 

 Ho... 

Ela cruzou os braços, me encarando. Pela primeira vez notei que ela tinha um palito de dente que deixava ela com uma expressão séria. Ela não poderia...

Ter colocado ele ali só pra fazer essa expressão, não é?

Ela me avaliou de cima a baixo com um olhar julgador que me deixou mais do que desconfortável. Por algum motivo seus olhos me davam medo. 

 Entra aí. 

Akakyo suspirou e disse. Tirou os sapatos e passou por mim, adentrando a casa e indo até o cômodo que eu já havia averiguado ser a cozinha. Eu fui entrando logo atrás dele, sendo acompanhado pelo olhar assustador da garota. Ela desviou sua atenção de mim após algum tempo e se voltou para o lado de fora.

 Ei, verme, vai ficar aí fora? 

Kai se levantou imediatamente enquanto suas pernas estremeciam. Ele fez uma continência com uma cara assustada.

 N-não s-senhora! 

Ele correu em direção à porta enquanto ela suspirou entediada e deu as costas, sentando-se no sofá. Osakura fechou a porta e tirou os sapatos, parando do meu lado, sorrindo. Grande erro. Ele recebeu uma cotovelada no rim como sinal pra nunca mais fazer algo do tipo. Eu dei um olhar gélido pra ver se ele tinha entendido o recado. Seu sorriso cínico mostrou que não.

                       Mais alguns segundos e eu...

Enquanto Akakyo não voltava, ficamos ali parados sem fazer contato. Eu aproveitei para dar uma olhada no ambiente. Era uma casa simples com um design claramente japonês. O piso era feito de madeira assim como a maior parte dos móveis. Havia alguns quadros históricos, principalmente enfatizando a presença de samurais. Em cima dos móveis havia algumas fotos. Nelas estavam sempre presentes Akakyo, essa garota, Yuragi, um velhinho e uma velhinha que eu imaginei serem os avós deles. Eu não conseguia imaginar outro tipo de relação entre aqueles dois se não a de irmãos, mas não podia deixar de pensar que eles poderiam talvez ser primos ou algo assim.

Yuragi ligou a TV, depois se levantou e começou a mexer em alguns cabos. Akakyo colocou as mãos nos bolsos e olhou para Kaioshi.

 Você precisa ser mais original. 

Ele desviou o olhar e corou um pouco. Eu tive que perguntar.

 Do que você está falando?

 Ele te fez entrar aqui não foi? 

Agora foi minha vez de corar. Eu tinha esquecido da situação constrangedora em que fui pego.

 ... Sim... Mas como assim original?

 Bom, isso foi por que eu fiz isso com ele há algum tempo. Ele entrou aqui e então eu o tranquei pelo lado de fora. Lembra? 

Ele olhou pra Kaioshi, que simplesmente se fingiu de quem não estava escutando.

 Bom, de qualquer forma, você deu sorte. Da última vez a Yuragi pegou ele e o confundiu com um assaltante ou algo do tipo... Bom... Você ainda tem os hematomas? 

 Não, mas eu ainda sinto a dor quando lembro! 

Eu pude ver que os olhos dele ficaram aquosos com a lembrança do que aconteceu. Eu achei ela realmente assustadora, mas com isso finalmente comecei a compreender o conceito de 'monstro'.

Yuragi pareceu ter terminado o que ela havia começado a fazer e então se sentou no sofá, satisfeita. Para a minha surpresa, ela olhou pra mim e disse:

 Sente-se aqui, novato. Vamos ver do que você é capaz. 

Eu não sabia direito do que se tratava até olhar a tela da televisão. Havia um jogo de combate chamado "Road Combat". O jogo já existia quando eu era pequeno, mas essa era uma versão em 3D e totalmente diferente daquela época. Eu me sentei no sofá e peguei no controle sem saber direito o que os botões faziam... Falando nisso pra que tantos botões? Eu fiquei olhando enquanto ela colocava na tela de seleção de personagens. Eu não sabia direito quem escolher então peguei qualquer um. Um cara grande e musculoso, como todos os outros. A personagem dela era uma garota loira com uma roupa colada vermelha.

Na minha cabeça ela me daria alguns segundos para aprender como se joga aquilo, mas...

Assim que a contagem regressiva acabou fui bombardeado com o som de uma combinação de botões sendo apertada tão rapidamente que eu mal conseguia ver os dedos dela. Eu apertava os botões aleatoriamente enquanto tentava salvar a vida do meu personagem, mas tudo o que eu podia fazer era vê-lo ser mandado pelos ares numa combinação de golpes infinita. Meu HP chegou ao 0 e uma animação exageradamente realista da garota atacando as partes íntimas do meu brutamontes serviu como a cereja no topo do bolo.

Eu olhei para a televisão, incrédulo do que acabara de acontecer. Eu desviei meu olhar para a jogadora ao meu lado, que simplesmente manteve a expressão convencida. Tsc. Eu não gosto de perder. Eu larguei o controle e me levantei do sofá, só para ser provocado por ela.

 O que foi? O neném já vai chorar em casa? 

Eu parei enquanto minha expressão tomava uma forma de ódio expressivo.

— Tsc. Esse tipo de jogo é ridículo. Eu poderia vencer você em qualquer outro.

 Ho... 

Ela ergueu uma sobrancelha em resposta.

 Então por que você não escolhe um jogo? Ali, naquela gaveta. 

Ela apontou preguiçosamente com o pé direito e eu fui verificar. Tenho certeza que uma veia está saltando na minha testa agora. Akakyo e Kaioshi estavam olhando pra mim com uma expressão de compaixão, ou talvez de pena. Malditos. Eu vou mostrar pra eles! Eu escolhi dois jogos ao acaso da gaveta e coloquei o primeiro. Era um jogo de corrida chamado "Flames". Nós começamos o jogo. Meu carro era um preto com detalhes brancos enquanto o dela era um rosa-choque com pinturas azuis. O jogo começou numa corrida um contra um. Pelo senso comum eu descobri o botão de acelerar e nós começamos. O carro dela começou a sair na minha frente. Não importa o que eu tentasse, era impossível passar dela e estava difícil tentar não sair da pista. Ela me provocava de tempos em tempos parando no meio da pista para que eu pudesse alcança-la. Em certo momento eu ativei todos os meus boosts de velocidade. Eu sorri. É agora...

Eu vou passa-la!

Ela manobrou para a esquerda e meu carro deu de cara com uma rampa. Eu voei pelos ares e por cima de várias casas até dar de frente com um prédio. Os detalhes novamente me surpreenderam quando eu pude ver os funcionários do prédio correndo enquanto meu carro atravessava o vidro até sair do outro lado e cair de cabeça pra baixo no rio. A explosão, dessa vez, foi a cereja no topo do bolo.

Agora meus dois "amigos" estão rindo da minha cara, enquanto a meretriz apenas mantém seu sorriso confiante. Eu me abstive de comentários e coloquei o terceiro jogo dentro do console. "Heartstopper Tennis".

Eu escolhi um jogador de cabelo preto com uma faixa branca na cabeça, e ela uma jogadora ruiva com um rabo de cavalo. Os dois usavam roupas totalmente brancas. O jogo começou sem que eu soubesse muito bem o que fazer. Era apenas um Set então eu teria que aprender rápido. Eu sabia que ela não ia me perdoar. O primeiro game acabou sem que eu soubesse o que apertar para rebater a maldita bola. Eu tentei prestar atenção no que ela estava apertando, mas ela parecia estar movendo os dedos entre os botões justamente para me desnortear. Tsc... Depois do terceiro game eu já sabia o que os botões faziam e comecei a rebater a maioria das bolas. No fim do quarto game consegui meus primeiros 15 pontos. Eu terei que fazer uma recuperação milagrosa agora, se quiser vencer... Consegui 30 pontos no quinto game. Mais um e está acabado. Eu olhei para o canto superior esquerdo da tela. Há algum tempo havia um ícone de ataque especial brilhando abaixo do nome da personagem dela, mas ela não parecia ter usado ainda. O meu havia acabado de aparecer no meio do sexto game. Eu apertei o botão indicado e meu personagem golpeou a bola para cima, fazendo a câmera mostrar ela passando das nuvens. Eu pude ver um sorriso de canto de boca se formando no rosto da garota quando ela usou sua tacada especial. Para minha surpresa a tenista saltou até alcançar minha bola e raqueteou ela pra baixo. A bola fez uma curva e atingiu meu personagem no peito, fazendo-o voar para trás. Eu larguei o controle e simplesmente fiquei olhando sem acreditar. Alguns paramédicos começaram a bombardear o peito do meu personagem com eletricidade enquanto eu ficava lá, pasmo com aquela droga de jogo. Uma mensagem comemorativa de "Heartstopped!" apareceu.

Mas que...

Eu me levantei do sofá, sem conseguir olhar no rosto de ninguém.

 E então, já teve o suficiente? 

Eu abri a boca pra responder, mas acho que as palavras não sairiam mesmo que eu soubesse o que dizer. De qualquer forma nós ouvimos a maçaneta da porta girar e eu vi a figura de um velho entrar pela casa. Era o mesmo das fotos que eu tinha visto mais cedo. Ele olhou para o grupo de jovens ali reunido e proferiu palavras com uma voz claramente idosa.

 Ora, ora, temos visita? 

Eu me senti um pouco intruso e desconfortável estando ali sem o consentimento dele, que, ao que tudo indicava, era o dono da casa. Eu não tinha entrado lá formalmente, de qualquer forma, e a presença dele ali só serviu para aumentar minha angústia, fora o fato de que não queria ter que ficar ouvindo o monstro - sim, monstro, por que não tem como aquela ruiva demoníaca ser humana - falando coisas irritantes. 

 Você chegou, Jii-chan. Eu fiz as compras que você me pediu. 

 Ah, obrigado. 

Akakyo pareceu tratar a pergunta dele como retórica. Eu recobrei a compostura. 

— Boa noite...

Eu disse, sem graça. Ele simplesmente riu e depois sorriu por detrás do bigode branco.
 Não precisamos ser tão formais, garoto. Seu nome? 

 Alkaev Makoto.

 Alkaev, é... 

Para minha surpresa ele pronunciou o nome perfeitamente. Talvez ele já tenha morado no exterior algum tempo?

 Yo, vovô, quanto tempo! 

Osakura se aproximou do velho e lhe deu tapinhas nos ombros. Eles já pareciam se conhecer. 

 Ora... Quem é você mesmo!? 

 Mas o que... Você se esqueceu de mim!? 

Todos rimos. Eu olhei para a janela e percebi o quanto era tarde. Eu não percebi que tinha passado tanto tempo! Não posso deixar a Nanami assim até tão tarde lá em casa. 

— Acho que é melhor se eu for agora, não posso chegar muito tarde.

 É, eu também vou. 

Kaioshi falou logo depois de mim. Akakyo abriu a porta pra nós e nos despedimos com batidas nas mãos. Eu senti algum tipo de projétil, um elástico, me atingir na parte de trás da cabeça. Eu olhei pra trás e vi a garota com uma expressão provocativa no rosto.

— Volte aqui qualquer dia, quando quiser apanhar de novo. Pode escolher o jogo que quiser.

Eu cerrei o punho e meu rosto assumiu uma expressão determinada.

 Da próxima vez jogaremos pelas minhas regras, e você não vai me derrotar em nada!

 Certo, certo. 

Ela fez pouco caso do que eu tinha acabado de falar, mas eu mantive minha expressão e me virei na direção de casa. Kai fez um sinal apressado com a mão e se despediu.

 Até! Ei, Makoto, me espere! 

Primeiro, fui buscar meus sapatos no fundo da casa. Depois, nós dois seguimos juntos e comentamos sobre o que tinha acontecido. Pouco tempo depois, nos despedimos e seguimos caminhos diferentes.


. . .


Quando eu cheguei em casa imaginei que Nanami já poderia ter ido sozinha por causa do horário, mas ela estava me esperando na sala. Ela tinha colocado Shizuka sentada no sofá e estava terminando de amarrar um laço azul numa segunda trança no cabelo dela. As duas olharam na minha direção quando me viram entrar.

 Bem-vindo, Makoto. 

Eu corei um pouco. Ser recebido por duas garotas lindas e uma voz agradável quando chego em casa... Acho que posso me acostumar com isso.

 Cheguei...

Eu tirei os sapatos e olhei na direção da qual um cheiro chamativo vinha. 

 Isso é Curry?

 Sim. Está um pouco frio, então é melhor se você esquentar um pouco antes de comer. 

 Isso pode ficar pra depois. Acho melhor te levar logo, está bem tarde. Desculpe, foi minha culpa.

— Não tem problema. Nós nos divertimos tanto que eu nem vi o tempo passar. Não é, Shizu-chan? 

As duas sorriram uma pra outra, e eu não pude evitar sorrir também.

Eu e Nana levamos Shizuka até a cama dela e a deitamos com cuidado. Ela se certificou quatro vezes de que não tinha deixado nenhuma parte dela próxima da beirada da cama e, embora eu tenha dito que aquilo não era necessário, ela insistiu que só se acalmaria se tivesse feito isso. Nós nos despedimos começamos o caminho para a casa dela.

No caminho conversamos sobre o que fizemos no nosso dia. Contei sobre a casa do monstro como quem conta uma história de terror, mas depois de tudo revelado tomei uma bronca pela invasão domiciliar. Ela me contou sobre as coisas que conversou e fez com Shizuka, embora ela não quisesse me contar um segredo ou dois. Quando eu perguntei ela simplesmente riu e não quis falar nada, correndo de mim logo depois. Eu tive que persegui-la até a estação do metrô.

Poder estar com amigos é muito bom. Eu quase não me lembrava de como era. Alguns mais velhos, outros mais novos, alguns esquisitos e outros com quem você briga... Por esse motivo, recentemente eu tenho me sentido muito mais feliz. Espero chegar o dia em que vou poder falar abertamente com todos sobre mim, mas ainda tenho muito medo... Medo de que fiquem com pena de mim. É o que eu menos quero. Ainda bem que eu tenho ela. Felizmente, Nanami torna tudo mais fácil. Sinto que posso me apoiar nela se tudo der errado. Fico impressionado em perceber o quanto somos amigos mesmo depois de tanto tempo. Ela deve ter outras amizades na escola, afinal, é uma garota gentil, inteligente e bonita. Mesmo assim ela sacrifica o tempo dela pra ficar comigo e com a Onee-chan. Acho que é algo que não aconteceria se nossos laços não tivessem se mantido fortes desde aquela época. E também aquela promessa...

Nós chegamos antes que eu percebesse. A mãe dela estava esperando preocupada na frente da casa. Ela sorriu ao nos ver.

 Ah, Makoto-kun! Como você cresceu! E está muito bonito também! 

 Haha, não é bem assim...

Eu corei mediante ao elogio.

 Me desculpe. A culpa de termos chegado tão tarde hoje foi minha. Não vai acontecer de novo.

Eu me curvei diante dela num pedido de desculpas por algo pelo qual me sentia responsável. A mãe dela sorriu compreensiva e me afagou na cabeça, me fazendo corar novamente.

 Não se preocupe com isso. Tenha certeza de vir mais cedo da próxima vez para passar um tempo aqui. 

— Ah, certo!

Eu me levantei depressa e fiz as duas rirem um pouco da minha postura tensa. Eu e Nana nos despedimos com um aceno e eu esperei que elas duas entrassem para poder rumar até minha casa. 

Eu continuei o caminho de volta como sempre. Meus passos me fazem aproximar-me cada vez mais do muro em que eu vi a garota de cabelos negros e olhos vermelhos naquele dia. Mais uma vez, ela não está ali. Eu suspirei. Talvez eu devesse desistir de encontrá-la. Mas algo me intrigou. Eu olhei para o ponto onde eu pensei ter visto uma silhueta na noite passada. Eu continuei olhando fixamente para lá, como se esperasse que algo fosse surgir. Um movimento. Minhas pernas se enrijeceram e adrenalina subiu pelo meu corpo. O que eu vi sair dali foi uma figura felina de pelo negro que me olhou e grunhiu, arisca, só para correr depois. Eu me acalmei enquanto fazia uma cara de repressão quanto a minha idiotice.

 Um gato...

Eu me virei para olhar novamente em direção à casa quando me deparei com uma alta figura masculina a cerca de um metro de mim. Meu corpo ficou estático. Ele segurava, em sua mão direita, um objeto longo, de quase um metro. Uma espada. Meu coração quis saltar pela boca. Nem um único som saiu dela para expressar minha surpresa e pânico. Tudo que pude ver foi algo rápido vindo na direção da minha cabeça.

E então tudo o que sobrou foi a escuridão total.


. . .


Chiharu - 03
Escuridão.

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