A fome, o labirinto e um demônio na escuridão...
04
15:05 P.M – Praça Central de Jothenville
— 11... Não.
12 pessoas desaparecidas... Todos sem ligação de cor, sexo ou idade...
Owen
observava atentamente um grande mural de imagens desorganizadas numa parede
irregular. Um grande mural com fotos de pessoas desaparecidas.
— ...E a
maioria parece ter desaparecido nessa semana. Será que isso é apenas uma
coincidência ou há algo mais acontecendo nessa cidade...? Ellen, onde foi que
você se meteu num momento importante como esse?
Owen já
havia passado por todos os locais onde Ellen poderia estar, pousadas,
restaurantes, bares, mas não haviam pistas de seu paradeiro.
Sem
conseguir achar uma resposta para esse enigma ele voltou a caminhar, desviando
de todas as pessoas que trabalhavam numa tentativa de reconstruir a cidade
depredada. Não importava por onde passasse, Owen era sempre perseguido por
olhares desconfiados, mas ele não os culpava por isso, afinal se a situação
estivesse invertida Owen também não confiaria sua liberdade nas mãos de um
estranho como ele por dois motivos: Primeiro por causa da má fama que a Legião
de Mahyra possuía. Segundo (e talvez o principal motivo) era por causa de sua
aparência e idade, que estavam longe de serem parecidas com as de um poderoso soldado.
Após pouco
tempo de caminhada Owen chegou há um local bastante amplo e arejado no centro
de Jothenville. As pequenas lojas e pousadas formavam um círculo ao redor
daquela ampla praça. Lá haviam pequenos postes com lampiões a gás por todos os
lados, e no seu centro uma grande fonte seca dava um toque europeu àquele
lugar. Se não estivesse tão vandalizada, aquela praça poderia até ser
considerada bonita.
Mas era algo
completamente diferente que tomava a atenção de Owen. Próximo a fonte, seis
pessoas distribuíam pedaços de pães para outras centenas que estavam
aglomeradas naquele lugar. Não havia
organização na distribuição, então aqueles que desejavam receber algo tinham
que atravessar toda aquela multidão a força. Só que tudo ficou ainda pior
quando aquelas pessoas se deram conta de que os alimentos estavam acabando
rapidamente, e não seria o suficiente para todos.
Owen
encarava tudo aquilo sem nenhuma expressão em seu rosto, enquanto pessoas eram
agredidas e pisoteadas como ratos no meio de uma manada de elefantes. Em
questão de segundos as cestas de alimentos foram roubadas e saqueadas, e quando
não restava mais nada os alvos tornaram-se aqueles que possuíam algo nas mãos.
O que veio a
seguir era o inevitável. Brigas generalizadas, gritaria e destruição. Não havia
mais distinção de sexo ou cor. Todos eram bárbaros, no meio de uma tragédia
anunciada.
Uma mulher
com longos cabelos dourados e olhos azuis corria desesperadamente, numa
tentativa de fugir do grupo de pessoas que a perseguia com intenção de roubar
os dois pedaços de pães que ela segurava com força.
A feição
calma de Owen era apenas uma fachada, uma mentira. A verdade era que uma fúria
desagradável crescia gradualmente em seu peito, fazendo suas mãos tremerem
levemente e sua respiração acelerar. Ele queria fazer algo para ajudar todas
aquelas pessoas, mas nada vinha a sua cabeça. Como ele poderia diminuir essa
raiva que o corroía por dentro?
‘Você acredita que os sentimentos de uma única pessoa consegue mover o
mundo?’
‘Você acredita que algo vago como vingança ou amor tenha poder suficiente
para mudar este planeta?’
Uma voz
ecoou dentro da cabeça de Owen. Uma voz calma e fria. A voz de alguém que ele
amou há muito tempo atrás.
‘...Eu acredito que você é o único capaz de mudar este mundo trágico,
Owen...’
‘Apenas você é capaz de mudar a mente desses humanos ingratos. Você só
precisa se dar conta disso. Você devia acreditar mais em si mesmo.’
Owen
respirou profundamente e fechou os olhos, numa tentativa de calar aquela voz
que sempre aparecia nos momentos mais inoportunos. Sua mão esquerda foi em
direção a parte de dentro do seu sobretudo e encontrou quase que
inconscientemente uma espécie de faca negra que tinha por volta de 30
centímetros de cumprimento. Aquele era um equipamento exclusivo dos integrantes
da Legião de Mahyra, batizado de Sensorium.
— Eu não sou
um herói. Meu poder só pode ser usado para o mal, para amedrontar, para
machucar...
Owen sorriu,
tentando de todas as formas negar seu passado, e tudo que ele significava. Na
verdade ele estava se forçando a esquecer de todos os seus pecados.
— Por que
estou resmungando? Ser odiado por todos não é nenhuma novidade. Se eu não me
mover agora... tudo estará acabado, não?
Assim que
Owen balançou seu Sensorium, uma lâmina deslizou de dentro dele, como se fosse
uma espécie de estilete, ficando três vezes maior. Aquele equipamento num
piscar de olhos havia se tornado uma espada de lâmina negra, agora com 90
centímetros de cumprimento.
Antes que se
desse conta Owen já estava correndo para ficar entre aquela garota e as pessoas
que a perseguia. Se ele conseguisse ajudar ao menos aquela mulher. Se ele
pudesse ser apenas um pouco útil, essa dor na sua alma eventualmente
adormeceria.
A garota de
cabelos dourados tropeçou e caiu de costas contra o chão de pedra, protegendo
os alimentos contra seu corpo.
— Agh!
Ela virou
seu rosto e encarou com perplexidade a multidão que aproximava-se feito animais
selvagens. No momento em que ela pensou que seria morta, um vulto atravessou
sua frente. Por um bom tempo a garota só conseguia encarar o sobretudo negro
que balançava suavemente ao ritmo do vento. Apenas um minuto depois ela foi
capaz de olhar para cima.
Owen apontou
sua espada na direção do grupo de oito pessoas fazendo-os parar imediatamente.
Essa simples atitude foi o suficiente para calar toda aquela população. Todos
que brigavam, todos que se matavam por um pedaço de pão, pararam. A sombra
projetada pelo chapéu encobria seus olhos, e consequentemente sua expressão. A
boca dele era apenas uma linha fina.
— JÁ
BASTA!!!
Sua voz
firme ecoou.
— Vocês tem
ideia do que estão fazendo?! Já perceberam o que vocês se TORNARAM?!
As pessoas entreolharam-se,
incapazes de encarar Owen.
— Como vocês
ainda podem se julgar humanos após essa crueldade sem sentido?! Quando foi que
vocês começaram a encontrar prazer na violência?! Ahn?! RESPONDAM!
As
expressões no rosto de cada uma daquelas pessoas transmitiam hesitação, culpa e
pesar. Eles não queriam brigar, eles não queriam ficar uns contra os outros,
mas a necessidade, a fome e o desespero, acabaram transformando-os em monstros.
Owen deu um sorriso frio e apertou ainda mais o punho de sua espada.
— Então?
Vocês ainda acham que esse é o melhor modo de resolver as coisas? Vocês não
acham que já está na hora de pararem de destruir para juntos encontrarem uma
solução para dar um fim a este pesadelo?!
Até esse
momento a voz de Owen soava como a de uma pessoa prestes a chorar, mas no segundo
seguinte seu tom tornou-se frio, desprovido de qualquer compaixão. Owen queria
mostrar para aquelas pessoas que ele não ligava se seria necessário sujar suas
próprias mãos para acabar com tais atitudes. Ele precisava demonstrar que
estava preparado para tomar o pecado de toda aquela população para si.
Owen
respirou fundo uma última vez, deixando um sorriso que só poderia ser descrito
como perverso, tomar seu rosto.
— Nesse
momento vocês estão presos, como pássaros numa gaiola, e o modo como estão
agindo só deixa isso mais claro. Vocês são apenas animais assustados, nada mais
que isso. Mas adivinhem só! O DOMADOR CHEGOU! Eu estou aqui exatamente para
adestrá-los, como os animais que são! E logo após domá-los, irei libertá-los...
EU SEREI AQUELE QUE SALVARÁ TODOS VOCÊS!
Faltava
apenas uma frase para Owen mudar a atitude de todas aquelas pessoas, ou piorar
tudo de vez.
— Esse será
meu único aviso... Eu mandarei para o inferno a próxima pessoa que levantar a
mão para agredir ou roubar alguém... E o sangue dessa pessoa assombrará a vida
de cada um dos aqui presentes, para sempre.
Owen deu uma
risada seca e balançou sua espada.
— Então, quem
quer ser o primeiro?
Um silêncio
pesado tomou conta daquela praça, e após alguns segundos a multidão começou a
recuar. Em poucos minutos a grande maioria havia se dispersado. Apenas nesse momento
Owen abaixou sua espada enquanto suspirava aliviado.
— Ahhhh.... Que bom que
funcionou...
Ele olhou
para a garota que permanecia de joelhos perplexa. Os pães tremiam em seu colo.
Owen apertou um botão no punho de sua espada, fazendo a lâmina regredir
imediatamente, deixando-a em seu formato compacto. Ele guardou o Sensorium
dentro de seu sobretudo com medo de estar assustando a garota, em seguida
estendeu sua mão, com um sorriso torto no rosto.
— Você não
está machucada, está?
A garota de
cabelos dourados segurou a mão dele e levantou. Suas pernas estavam bambas, por
isso ela precisou de alguns segundos para ficar de pé sozinha.
— Estou
bem... Eh... Obrigado... por me ajudar...
Essa garota
não aparentava ser uma plebeia. Seu vestido de seda aparentava ser caro, seu
cabelo era liso e bem cuidado.
— Meu nome é
Owen. Eu vim da República do Rio. Prazer em conhecê-la.
— Aria
Arthmael... Muito prazer...
— Arthmael?
Você por um acaso é parente do Sr. Marcos?
A garota
desviou o olhar, claramente constrangida por ter sido reconhecida.
— Sim... Ele
é meu pai...
Owen ficou
boquiaberto de tanto espanto. Ele não conseguia pensar em um motivo para uma
nobre como ela estar num lugar como esse, brigando por um pedaço de pão. Até
onde Owen podia imaginar, Marcos devia possuir um enorme estoque de comida em
sua mansão.
Aria
percebendo a pergunta implícita, falou.
— Pelo jeito
o senhor deve estar curioso para saber o que estou fazendo aqui, não é?
Ela deu um
sorriso gentil.
— Venha
comigo, eu mostrarei para o senhor.
05
15:42 P.M – ???
Dezenas de corredores estreitos que pareciam
não ter fim entrelaçavam-se formando um labirinto. Os vaga-lumes nas paredes
pareciam olhos brilhantes que desapareciam à medida que Ellen passava por eles.
Já fazia mais de uma hora que ela andava por esses corredores subterrâneos,
onde a cada poucos metros um caminho se cruzava com outro.
— Parece que estou andando em círculos... Estes
túneis devem percorrer toda a cidade de Jothenville por baixo. Hum... Pensando
bem isto parece mais com algum tipo de rota de fuga. Qualquer um que conheça
bem este lugar pode sair em qualquer parte da cidade, ou até mesmo na floresta.
Ellen puxou o colarinho de seu vestido,
sentindo-se incomodada com o calor e o suor que escorria pelo seu corpo.
— Eu não devia ter vindo com esta roupa...
Droga... É aterrorizante quando Owen tem razão... Ahn...? O que é aquilo?
Uma luz amarelada chamou sua atenção para um
dos corredores. Até esse momento Ellen não havia encontrado uma prova de que
alguém utilizava esses túneis. Ela caminhou com cautela pela lateral do corredor
até a origem da luz.
Fora duas velas, não havia mais nada
iluminando o local, então boa parte da sala estava completamente enterrada nas
trevas. Ali encontrava-se uma enorme mesa de madeira maciça que cruzava o local
de uma ponta à outra. Nas paredes haviam prateleiras enormes, carregadas de
livros e manuscritos que erguiam-se até o teto de terra batida. Espalhado pelo
chão estavam dezenas de objetos de diversos tamanhos e formatos que Ellen nunca
havia visto antes.
De certa forma essa sala lembrava uma antiga
e bagunçada biblioteca.
Ellen aproximou-se da mesa. Em cima dela
haviam vários cilindros de vidro cheio de líquidos com cores diferentes. Ali
também tinha vários tipos de ervas e plantas desconhecidas, tanto secas quanto
verdes e floridas, ao lado de tubos com pontas de metal. O odor no ar era
insuportável. Ellen comparava aquele cheiro com o de animais mortos.
Em um outro ponto da mesa haviam dezenas de
gaiolas com pequenos animais trancafiados. Ellen olhou dentro de uma delas. Lá
estavam dois ratos brancos, mas havia algo de errado. O primeiro aparentava ser
um rato normal, olhos vermelhos, correndo sem parar por toda a gaiola. Já o
segundo possuía olhos amarelados, e estava parado. Ellen por um momento pensou
que ele estivesse morto, mas as pequenas pulsações nas suas orelhas e sua fraca
respiração mostrava o contrário. Aquele rato parecia estar hipnotizado. Ellen
nunca havia visto algo assim antes, mas ela já tinha ouvido sobre algo
semelhante. Pessoas contratadas pela igreja e pelo governo a fim de trabalhar
em experimentos que pudessem beneficiar a humanidade. A fama e importância
dessas pessoas era inquestionável em todo o planeta. Os chamados cientistas.
— ...Isso é um laboratório? Estão fazendo
experimentos em seres vivos...
O estômago de Ellen revirou-se apenas com o
pensamento desses pequenos animais sendo torturados por um motivo desconhecido
e provavelmente terrível, afinal, se algo desse tipo estava sendo feito em um
local escondido da própria igreja, não poderia ser por uma boa causa.
Olhando novamente para os objetos sobre a
mesa, um frasco carmesim chamou sua atenção. O líquido dentro dele possuía o
cheiro de sangue envelhecido. Em um papel colado no vidro havia uma frase
escrita com letras de forma, onde dizia: ‘sangue
da progenitora’.
‘Ajude-me...’
O coração de Ellen pulou violentamente em seu
peito. Escondendo-se atrás de uma pilha de livros ela buscou pela origem do
som, mas não encontrou nada. Alguns segundos depois o barulho de correntes batendo
quebrou o silêncio novamente, seguido por gemidos de agonia.
‘Ajude-me. Por favor...’
06
15:20 P.M – Área de Criação de Animais
A estrada
próxima às fazendas possuía o odor peculiar de sal e estrume. Esse lugar
situava-se próximo à divisa de Jothenville com a floresta de Caaporã, que formava
uma espécie de muralha natural em volta da cidade. Ali ficavam grandes fazendas
de criação de cavalos, que eram vendidos para todas as forças armadas do
Sudeste. Essas fazendas eram responsáveis por boa parte da renda total de
Jothenville.
Owen e Aria
caminhavam lado a lado pela estrada lamacenta. Eles não haviam conversado muito
durante todo o trajeto pois Aria tinha medo de começar algum tipo de
aproximação, e Owen ciente disso estava dando o espaço necessário para a garota
se sentir mais confortável.
Em um certo
momento uma densa fumaça chamou a atenção dos dois. Dezenas de fazendeiros
formavam um círculo ao redor de uma enorme fogueira no terreno de uma das
fazendas. Lá dezenas de animais eram cremados, originando aquela nuvem negra no
céu. Os cavalos também estavam sofrendo com a falta de comida, causando não só
uma enorme perda financeira, como também sentimental. A tristeza explicita no rosto de cada uma
daquelas pessoas deixava isso claro como o dia.
Owen
encarava tudo aquilo como uma coisa natural, já Aria não conseguia olhar. Ela
manteve sua cabeça abaixada até o momento em que eles se distanciaram daquela
cena. Seu estresse emocional visível em seus poucos gestos.
Determinado
a dar um fim nesse clima ruim Owen resolveu quebrar o silêncio, que parecia não
estar ajudando em nada.
— Por um
acaso você chegou a encontrar uma garota? Cabelos brancos, roupa esquisita,
intrometida, rabugenta e impertinente?
Aria deu uma
risada breve.
— Não, mas
já ouvi falar sobre ela. As notícias correm rápido por aqui.
Owen
suspirou, temendo que ela pudesse estar metida em alguma encrenca.
— Sr.
Owen... É verdade o que todos estão comentando...? Vocês dois estão aqui para
dar um fim aos ataques dos lobos?
Owen
escolheu bem suas palavras antes de falar. Ele não queria fazer uma promessa,
ou dizer que faria de tudo para acabar com os ataques. Owen não queria dar esperanças
para Aria pois na opinião dele a esperança era a maior fraqueza do ser humano.
— ...Irei
fazer o possível para ajudar a todos.
— Se... você
encontrasse a pessoa que está provocando tudo isso... O que você faria?
Owen não
sabia como responder essa pergunta. Para falar a verdade ele ainda não tinha
pensado nessa parte, ou simplesmente estava se negando a pensar.
— Eu não
sei. A lei absoluta da Aliança Sul-americana propõe prisão e julgamento, onde
um júri decidirá se tal pessoa é culpada ou inocente. Dependendo do grau de sua
pena, tal pessoa pode acabar presa para sempre, ou condenado a morte. É isso
que os humanos chamam de senso comum afinal.
— De fato,
mas sempre há uma escolha, não? Por mais que essa lei tenha que ser obedecida,
todos os humanos possuem pensamentos diferentes. Nem todos concordam ou apoiam
essa lei. O que quero saber é: você seguiria essa lei, Owen?
— Eu não sou
capaz de controlar meu futuro, Aria. Mas... eu nunca me permitiria entregar uma
pessoa como oferenda para a morte. Isso seria apenas um capricho mundano,
seguindo os desejos de uma sociedade criada por pessoas controversas,
aleatórias. Repleta de indivíduos que olham e interagem com o mundo a sua volta
sem nenhuma emoção, agindo como uma espécie de máquina. Ainda assim... nessa
mesma sociedade existem aqueles que sofrem, choram e tem pesadelos com as
tragédias que ocorrem diariamente nesse mundo.
— ...Qual
desses dois tipos de pessoa o senhor é?
— Minha
opinião não é relevante. Quem eu aparento ser, Aria? Seja sincera.
— O
senhor... parece ser o tipo de pessoa que não se importa com aqueles ao seu
redor. Seus... olhos são frios, como os de um morto. Mesmo naquele momento, na
praça, o senhor não parecia se importar realmente com o que estava acontecendo.
Parecia mais que você estava cumprindo com seu ‘dever’ como soldado do que agindo por vontade própria.
Owen encarou
aquela fumaça negra mais uma vez.
— A terra é
um lugar repleto de tragédias, Aria. Da mesma forma que pessoas sofrem aqui,
milhares de outras sofrem ainda mais em outros lugares do planeta, e esse é um
fato que nunca mudará. É dessa forma que penso. Eu não posso sentir compaixão,
tristeza ou pesar pelo que acontece com vocês, afinal isso seria um desrespeito
com todos os outros que choram por motivos ainda mais trágicos que esse.
— ...Esse
modo de pensar não acaba fazendo você ser rejeitado por todos à sua volta?
Essa... não é uma vida solitária demais?
— Sim, é.
Mas eu escolhi viver assim. Por mais que o mundo há minha volta esteja caindo
em desespero, eu sempre tentarei agir como se não fosse o fim do mundo. Salvar
as pessoas é apenas um dos meus desejos egoístas. Ao salvar alguém eu sinto que
também estou me salvando.
Aria abaixou
o rosto em resposta. Ela nunca imaginou que algum dia encontraria alguém com
pensamentos tão conflitantes e perturbadores como os dele. Owen aparentava ser
tão calmo, mas ao mesmo tempo tão denso, tão triste. Seus desejos pareciam tão
verdadeiros, mas ao mesmo tempo tão vazios. Sua voz soava de uma forma fria e
antinatural como se ele fosse desprovido das emoções de um ser humano, e isso
era o que assustava Aria. Ela não era capaz de compreender os pensamentos dele,
mas incontestavelmente era capaz de entender o sofrimento que ele tentava a
todo custo esconder. Isso só era possível por que de certa forma os dois eram
parecidos.
Se Aria era
como uma nuvem de chuva, Owen era como aquela nuvem negra que espalhava-se pelo
céu.
— Como você
consegue ser tão sincero?
— Hum... Eu
não tenho motivos para esconder quem sou. E de certa forma sinto que posso
confiar em você.
Owen sorriu,
fazendo Aria corar levemente.
Eles andaram
por mais dez minutos antes de pararem na frente de uma casa humilde, feita de
barro e madeira. Aria bateu duas vezes contra a porta frágil antes de ser
atendida. Um homem com roupas simples abriu a porta. Assim que encontrou Aria
um grande sorriso tomou seu rosto, mas essa mesma expressão foi logo
substituída por um olhar desconfiado ao encontrar o garoto ao lado dela. Owen
lembrou das palavras ditas por Aria pouco tempo antes. ‘As notícias correm rápido por aqui.’
A Legião de
Mahyra era uma ramificação do exército formada há dez anos com o objetivo de
criar a força armada mais poderosa da Aliança Sul-americana. De fato eles
conseguiram isso, mas ao mesmo tempo a Legião acabou tornando-se famosa por ser
um grupo corrupto, que abusava constantemente de sua autoridade, quase sempre
pisando em cima dos mais fracos para concluir seus objetivos, que nem sempre
eram benéficos a sociedade. Owen não discordava dessa parte, afinal em sua
grande maioria os Legior’s agiam de
tal maneira. Owen só não apoiava a parte em que todos eram julgados da mesma
forma, afinal, ainda existiam aqueles que lutavam para ajudar e proteger
aqueles que mais precisavam.
— ...Por
favor entrem.
Era clara a
falta de vontade daquele homem ao convidar Owen, mas seu medo de decepcionar
Aria era ainda mais forte.
A casa era
pequena. Provavelmente tinha apenas três cômodos. A sala de estar possuía
poucos móveis, apenas uma mesa com três cadeiras surradas, uma prateleira com
alguns livros e muitas teias de aranha pendendo do telhado. Dentro da sala
estavam mais três pessoas. Uma mulher sentada no chão, brincado com seus dois
filhos pequenos.
— Olhem o
que eu trouxe para vocês!
Aria abriu
os braços e deu um grande sorriso vitorioso, mostrando os dois pães que
protegera com tanto esforço. Tanto o casal quanto as crianças sorriram como se
aquilo fosse a coisa mais preciosa do mundo.
— Oh, Aria!
Muito obrigado! Não há nada que eu possa dar em troca... Desculpe-me!
O homem
curvou-se desajeitadamente. Já a mulher levantou sorridente e correu para a
cozinha, em busca de algo para acompanhar os pães.
— Eu não
preciso que você me dê nada. Ser capaz de ajudar vocês é a melhor recompensa
que eu poderia receber.
E numa
tentativa de diminuir a tensão no ar, Aria acrescentou.
— Eu ainda
não o apresentei. Este é Owen da República do Rio. Sem ele eu não teria
conseguido estes pães.
— ...Oh...
Muito obrigado Sr. Owen, e prazer em conhecê-lo. Me chamo Guilherme Oliveira.
Mesmo
agradecendo com um sorriso simpático, a desconfiança era clara em seu tom de
voz. Owen resolveu responder por educação.
— Eu só
estava fazendo meu trabalho senhor.
◊
◊ ◊
Owen era
apenas uma criança quando pôs os olhos em um integrante da Legião de Mahyra pela
primeira vez, onde imediatamente nasceu o desejo de se tornar um deles. Ele
estava consciente de todas as coisas horríveis que eles deviam enfrentar,
afinal ainda era um exército, e como em qualquer exército aquelas pessoas
encaravam o perigo quase que diariamente, e inevitavelmente morriam, muitas
vezes insignificantemente. Ainda assim Owen sonhava em ser um deles, sonhava em
ser um herói. Alguns anos depois, no momento em que ele ficou sozinho no mundo,
não existia mais nada que o impedisse de ingressar na legião, e de certa forma
Ellen acabou tendo uma parcela de culpa nessa decisão no momento em que ela
decidiu enfrentar essa jornada com ele.
Os testes
foram duros, muitas vezes cruéis, ainda assim Owen se formou em primeiro do seu
grupo. Todos o consideravam um prodígio, um gênio capaz de derrotar até os mais
experientes num piscar de olhos. Mas ele só era capaz de tudo aquilo por causa
da sua sede de poder, e seu desejo de vingança. Ellen teve um pouco mais de
dificuldades, mas graças ao apoio de Owen também conseguiu se formar.
Tudo estava
ótimo. Owen realizou seu sonho de infância, e isso o deixou feliz. Mas então
veio sua primeira missão, que mais tarde seria conhecida como ‘A Queda do Paraíso’. Naquele momento,
onde pedaços dos corpos de seus companheiros voavam em frente aos seus olhos.
Onde a desconfiança, o medo, a dor e o sofrimento apunhalava seu coração sem
sessar. Uma lenta e covarde tortura psicológica. Naquele dia Owen se convenceu
de que o mundo onde ele seria um herói nunca existiria.
Mais uma vez
aquela voz incomoda ecoou em seu subconsciente.
‘Owen, você é capaz
de espalhar esperança para todos à sua volta.’
— Mas isso é
apenas uma mentira, não é? Mais uma dentre todas as outras mentiras que você
falou para mim.
Owen encarou
o horizonte, admirando o modo como as folhas das árvores pareciam cintilar ao
toque dos raios do sol, e o modo como dançavam ao ritmo do vento. Ele respirou
profundamente, tentando clarear sua mente e assim melhorar seu humor, já
bastante abalado.
— Eles são
incríveis, não? Os cavalos de guerra?
Guilherme
caminhava em direção à Owen com um sorriso torto no rosto. Ele aparentava estar
verdadeiramente feliz por saber que sua família não passaria outra noite com
fome. Owen voltou seu olhar para os cavalos, mas sem enxergá-los. Sua mente
parecia estar muito longe daquele lugar.
— Sim, eles
são. É realmente uma pena vê-los sofrendo desta maneira.
Guilherme
respirou profundamente. Não haviam motivos para evitar um confronto direto.
Aria ainda estava dentro de casa, então ele não precisava mais hesitar.
— O que a
Legião realmente quer aqui? Vocês
vieram apenas pelo dinheiro que Marcos ofereceu, não é verdade?
Owen
permaneceu em silêncio.
— Então... é
verdade. Aquele velho desgraçado nunca teve a intenção de nos ajudar. Vocês foram contratados apenas para intimidar
e reprimir qualquer ataque contra aquele... bastardo!
— Senhor...
Você pode não acreditar, mas estou realmente triste com tudo que está
acontecendo em Jothenville. Desde o início eu estava pronto para ajudar, mas
após ver a situação com meus próprios olhos... comecei a pensar que não vale a
pena.
Owen
voltou-se para Guilherme e sorriu. Um sorriso pretencioso e sádico acima de
tudo.
— Todas essas
pessoas só pensam em si mesmas. Não se importam uns com os outros, chegando ao
ponto de quase se matarem por um mísero pedaço de pão. Agora responda a minha
pergunta. O que torna vocês diferentes de Marcos?
Guilherme
mordeu o lábio inferior e num ataque súbito segurou o terno de Owen, puxando-o
para cima.
— VOCÊ NÃO
FAZ PARTE DO MELHOR EXÉRCITO DO MUNDO?! ESSA NÃO É SUA OBRIGAÇÃO?! AJUDAR AS
PESSOAS!
— Não há
nada que eu possa fazer para ajudá-los. Vocês não são capazes de caminhar com
os próprios pés e lutar por uma única causa. Essa desunião trará apenas mais
desespero, mais raiva, mais ganância, mais fome. Todos frutos que vocês mesmo
plantaram. Só existe um futuro para uma sociedade assim, e ela encontra-se sete
passos abaixo da terra.
— ENTÃO VOCÊ
IRÁ EMBORA?! ABANDONARÁ TODAS ESSAS PESSOAS?! TODOS VÃO MORRER, E VOCÊ SABE
DISSO!
O simples
pensamento de ver sua esposa e seus filhos morrendo, fez Guilherme engasgar. Em
resposta Owen deu uma risada fraca e fechou os olhos.
— Eu não
irei embora... Eu não conseguiria continuar vivendo após fazer isso.
Owen tocou o
ombro esquerdo de Guilherme e deu um sorriso sereno e educado, deixando-o
paralisado.
— Eu
continuarei aqui até vocês aprenderem a construir uma sociedade de verdade. Se
vocês precisam de um professor, então serei a pessoa que os ensinará. Não há
uma chance de eu ignorar tudo que vem acontecendo aqui.
Guilherme
estava com os olhos arregalados, incapaz de falar qualquer coisa.
— Por que
essa cara? Nem todos os Legiors são desumanos. Alguns... poucos, ainda vivem
parar proteger, salvar pessoas. Não estou atrás de dinheiro ou fama. Minha
única intenção é ajudá-los... Eu... daria minha vida de bom grado para isso.
Por mais que
Owen não quisesse fazer promessas, essas últimas palavras escaparam
involuntariamente pela sua boca. Ainda assim aquelas eram palavras verdadeiras,
que residiam no fundo de seu coração. Guilherme não era capaz de esconder seu
espanto, suas mãos afrouxavam o aperto aos poucos.
—Fazia um
tempo que eu não encontrava alguém com uma determinação tão forte quanto a sua,
garoto.
— Minha
companheira diz que eu sou um retardado quando eu ajo desta maneira, senhor.
Owen deu uma
risada, e Guilherme não pode fazer mais nada além de soltá-lo e suspirar
aliviado.
— Bem... Só
resta depositar minha vida e a da minha família nas suas mãos. Prove que este
velho está errado. Salve esse povo. Seja um herói.
Owen sorriu
e voltou a encarar o horizonte, que mudava de cor extremamente rápido. Uma
impiedosa tempestade estava a caminho.
‘Você apenas precisa aceitar o medo preso na sua alma, para conseguir pintar
a escuridão na mente das pessoas’
— ...Talvez
eu estivesse mentindo para mim mesmo durante todo esse tempo, não...?
07
15:48 P.M – ???
‘Ajude-me...’
A voz não parecia estar vindo do corredor, e
sim de dentro daquela mesma sala. Ellen prendeu a respiração e com o mínimo de
barulho voltou a caminhar, esgueirando-se pelas paredes de barro. Como os sons
estavam abafados, Ellen especulou que essa pessoa só poderia estar atrás de uma
daquelas paredes.
‘Ajude-me..’
— Hum... Está vindo daqui... Será que isso é
algum tipo de sala secreta...?
Ellen procurou algum tipo de alavanca ou
abertura na rocha, mas não encontrou nada.
— Vamos lá Ellenia. É preciso apenas um pouco
de concentração. Você consegue fazer ao menos isso... Para que serve todo esse
poder se você não consegue usá-lo?
As batidas de seu coração eram audíveis, suor
frio descia pela sua nuca.
— O que é isso? Medo? Não... Ansiedade?
Talvez seja isso.
Com um sorriso torto Ellen fechou os olhos.
Nesse momento uma luz branca surgiu, partindo da palma de sua mão direita,
iluminando toda aquela sala. Uma luz forte o suficiente para cegar qualquer um
que estivesse perto.
— Vamos lá poder estúpido! Seja útil pelo
menos uma vez!
Ellen apoiou sua mão direita sobre a parede.
Nesse momento um buraco começou a se formar lentamente no centro daquela rocha,
sem deixar registros de poeira ou destroços. Aquela parede na verdade estava
derretendo, como se algum ácido a estivesse corroendo.
Cerrando os dentes, Ellen apoiou sua mão
esquerda sobre a direita, expandindo ainda mais aquela poderosa luz branca. Assim
que havia uma abertura grande o suficiente para passar, Ellen direcionou sua
mão, ainda reluzente, para dentro daquela sala escondida. Primeiramente ela não
viu nada que diferenciasse aquele lugar de todas as outras salas por onde ela
havia passado, mas assim que estreitou os olhos uma cena cruel fez seu corpo
congelar. Cerca de 12 pessoas estavam suspensas, penduradas por correntes
presas ao teto. Sangue banhando seus corpos. O cheiro de putrefação tomava
completamente o ar. Ellen foi obrigada a colocar uma mão em frente ao nariz
para impedir que uma ânsia de vômito tomasse seu corpo.
Contrariando seus instintos ela entrou dentro
daquele lugar e observou os corpos de cada um deles. Haviam homens, mulheres e
crianças. A única coisa que tinham em comum eram pequenos hematomas espalhados
por seus braços e pernas. Hematomas provocado por agulhas. Aqueles experimentos
não estavam acontecendo apenas em animais, mas também em seres humanos.
Ellen por um momento imaginou que todas
aquelas pessoas estavam mortas, mas o barulho de correntes voltou a ecoar,
ainda mais alto. Ellen pulou de susto e voltou sua atenção para um homem no fim
da fileira. Seu corpo estava extremamente desnutrido e pálido. Com muito
sacrifício ele levantava seu rosto na direção da recém chegada. Suas íris
estavam amareladas, sua esclera completamente negra. Aquele homem deformado não
poderia mais ser considerado humano, e Ellen estava ciente disso.
— Por
favor... Ajude-me...
— Me diga quem fez isso com você.
— Por
favor... Por favor... Salve-me...
— Eu preciso de um nome! Se você falar quem o
prendeu aqui muitas vidas poderão ser salvas!
— Ele...
— Ele?! Quem é ele?!
— Ele
vai trazer a evolução para toda esta cidade!
Um sorriso tomou o rosto daquele homem. Um
sorriso sarcástico, macabro, monstruoso. Ele abriu a boca, fazendo sua
mandíbula quebrar violentamente, com um ‘creck’
que ecoou por toda aquela sala. Uma gota de suor frio escorreu pela nuca de
Ellen.
— Aah... Hoje não é mesmo o meu dia de
sorte...
Aquele homem puxou as correntes que prendiam
seus braços de uma forma tão violenta que deslocou seus pulsos. Seus membros
esguios aparentavam estar crescendo lentamente, fazendo suas roupa rasgarem.
Seu rosto tomava uma forma sobre-humana, que mais parecia a mistura de um
cachorro com um porco. Saliva escorria sem controle pela sua boca quebrada.
Seus olhos sem vida reviravam como os de uma pessoa possuída.
— GWUAAAAAAAA!!!
As algemas que prendiam seus pulsos quebraram
facilmente dessa vez, e ele caiu no chão grunhindo como um cachorro, ou melhor,
como um lobo, sedento por carne e sangue. Ellen recuou dois passos, buscando à
fissura por onde havia entrado.
— Isso foi realmente... muito nojento.
◊
◊ ◊
— Pare de me seguir coisa pervertida, coisa
asquerosa, coisa nojenta!
Ellen corria em disparada pelo labirinto,
usando a forte luz que vinha de sua mão esquerda como um farol. Ainda assim, a cada poucos passos ela tropeçava por
culpa das pedras e do terreno irregular.
— Uma saída, uma saída... Onde tem uma
maldita saída?! Aaaahh! Não consigo correr direito com este vestido!
Ela entrou na primeira sala com porta que
encontrou. A trancou com uma trava de madeira, reduziu a luz da palma de sua
mão e prendeu a respiração. Ellen esperava que o silêncio pudesse esconder sua
presença, mas o pulsar de seu coração foi o suficiente para atrair a atenção da
criatura que possuía sentidos mais apurados que os de um lobo.
Um grito gutural ecoou, seguido por um ataque
furioso contra aquela porta, que fez toda a estrutura da sala tremer.
— Esta porta não vai aguentar muito tempo.
Pense Ellenia, pense! Se eu estiver mesmo abaixo de Jothenville só preciso
abrir um buraco no teto e escalar até a superfície. Mas... Isso pode ser
perigoso considerando que alguma construção ou algo semelhante esteja acima de
mim. Qualquer descuido resultará em um grande desmoronamento, e a última coisa
que quero é ter meu enterro neste fim de mundo...
Aquela pequena sala possuía apenas um colchão
de solteiro surrado e alguns sacos de pano que aparentavam estar cheios de
alimentos perecíveis. Esse lugar era sem sombras de dúvidas uma espécie de
refúgio. Sem encontrar nem ao menos uma entrada de ar, Ellen começou a caminhar
sem rumo, aproximando seu ouvido de todas as paredes em busca de uma que
pudesse ser atravessada.
No segundo ataque da criatura, grandes
pedaços da porta voaram para cima de Ellen, que agachou para não ser atingida.
Um braço esguio, marcado por veias pulsantes havia atravessado a madeira.
Poucos segundos depois um segundo braço, claramente diferente do primeiro,
também varou a porta. Ellen estava ciente de que mesmo sendo diferentes,
aqueles membros pertenciam a mesma pessoa.
— ...Se é que posso considerar algo tão
asqueroso como uma pessoa...
Ellen correu para a parede oposta a porta e
rapidamente apoiou suas duas mãos no centro dela. Diferente da primeira vez,
seu toque corroeu aquela estrutura instantaneamente. Ellen pode imaginar apenas
duas possibilidades para algo assim ter sido possível. O primeiro era por causa
da adrenalina que ela estava sentindo. Seu coração bombeava sangue mais
rapidamente, fazendo com que seu cérebro funcionasse de forma mais veloz, e
assim propagasse sua magia mais facilmente. E o segundo motivo...
— Owen está por perto?
Ela passou pela fissura e deu de cara com
mais uma sala. Diferente da anterior essa era mais parecida com um estoque
velho de armazém, duas vezes maior, onde dezenas de caixas com tamanhos e
materiais variados estavam espalhados por todos os lados. Não havia uma porta
aparente e o teto não era tão alto, então o primeiro pensamento de Ellen foi
empilhar algumas caixas para assim alcançar o topo da sala. Mas antes que
pudesse dar um passo, a porta da sala anterior voou das dobradiças.
O mutante era incrivelmente veloz. Mesmo com
seus membros desproporcionais, correndo de quatro como um animal selvagem,
cruzou metade da primeira sala em apenas três segundos.
Ellen correu de volta para a entrada da
passagem que havia criado e numa tentativa de impedir o avanço da criatura,
tocou a parede pouco acima da fissura e deslizou sua mão sobre ela. Seu toque
fazia as rochas e o barro derreterem, derrubando boa parte daquela estrutura e
consequentemente bloqueando a entrada.
Por um momento ela pensou que havia escapado,
mas tremores e sons de pedras se chocando contra o chão começaram a ecoar sem
sessar. O mutante estava escavando a parede com suas próprias mãos. Ellen sabia
que era apenas questão de tempo até aquela criatura abrir outra entrada graças
a sua força sobre-humana.
— Vamos lá! Caixas, caixas!
Ellen ajoelhou na frente de uma caixa de
porte médio e abriu sua tampa de madeira. Dentro dela havia dezenas de pequenos
objetos metálicos e ovais do tamanho de um punho cerrado. Ela pegou um deles e
apertou um botão em seu centro. No mesmo instante o objeto abriu, revelando
todo o seu interior.
— O que é isso...? Hum... Dois compartimentos
selados que abrem quando o botão central é pressionado. O que é possível
colocar em compartimentos tão pequenos? Pó ou talvez algum líquido?
Teoricamente, dependendo dos produtos usados dentro desta esfera, a mistura
pode causar alguma reação química, uma combustão... Resumindo... Isso é uma
espécie de granada...? Bem, não importa. Aaah, que dor de cabeça... Aposto que
essas caixas são muito pesadas...
Ellen suspirava à medida que recolhia e
empilhava caixas no centro da sala. Assim que havia uma torre de cinco caixas,
ela empilhou mais três ao lado da primeira torre, formando assim uma espécie de
escada.
— Certo, próximo passo. Considerando que eu
esteja muitos metros abaixo da superfície é bem possível que eu não consiga
abrir uma passagem por culpa do meu poder limitado. Minha única alternativa é
tentar algo mais complexo, e rezar para Owen estar mesmo por perto...
Ela deu uma risada.
— Então no fim preciso depender da minha
incrível sorte para escapar?
Ellen pegou novamente aquele pequeno saco que
guardava em seu decote, retirou de lá um giz de gesso branco e subiu em sua
escada improvisada. No teto ela desenhou um círculo e vários símbolos que
formavam um caracol dentro dele. Qualquer mínimo erro significaria a falha
total daquele feitiço, e consequentemente um perigo eminente à segurança de
Ellen, que não era especialista em luta corpo a corpo.
Nesse momento uma série de novos ataques
trouxeram consigo um grande desmoronamento de terra, que por pouco não derrubou
Ellen. O mutante estava prestes a atravessar a parede. Ellen se recompôs,
finalizou os desenhos e finalmente notou que estava suspirando muito
ultimamente.
— Preciso fazer um sacrifício... Hoje,
definitivamente, não é meu dia...
Ela pegou uma pequena navalha e começou a
fazer cortes finos na palma de sua mão esquerda enquanto mordia o lábio
inferior numa tentativa falha de conter a dor. Usando seu sangue, cruzou o
círculo no teto de um lado para o outro, mas nada aconteceu. Nem mesmo um
trinco ou um fragmento de luz.
— Como suspeitava. Para completar algo tão
complexo é necessário um tributo maior. É preciso mais sangue...
Grandes pedaços de destroços voaram. Para não
ser atingida, Ellen pulou de cima das caixas e rolou pelo chão. Com mais quatro
golpes seguidos, o mutante abriu uma nova entrada ligando as duas salas.
Ellen levantou, retirou um pouco da poeira
acumulada em seu vestido e observou a palma de sua mão. Os cortes que ela havia
feito há poucos segundos atrás estavam se curando gradualmente, como mágica,
restando apenas o sangue fresco em suas mangas.
— É bom você se apressar, Owen.
Ela levantou sua saia e retirou um pequeno
objeto branco e azul com formato retangular da bainha presa em sua perna. Seu
Sensorium. Ellen apertou um dos botões do equipamento, e no mesmo instante uma
longa corda dourada foi lançada para fora. Aquele instrumento havia se tornado
um chicote.
— Vamos começar o baile?
Assim que deu o primeiro passo dentro da nova
sala a criatura rugiu e imediatamente correu em disparada. Em resposta Ellen
bateu a ponta de seu chicote contra o chão e abriu os braços, como se o
desafiasse para um duelo, deixando um sorriso confiante tomar seu rosto.
***
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