A Rosa Fantasma - Planeta dos Humanos Ingratos II

A fome, o labirinto e um demônio na escuridão...



Capítulo 1

Planeta Dos Humanos Ingratos Pt.2

04
15:05 P.M – Praça Central de Jothenville
   — 11... Não. 12 pessoas desaparecidas... Todos sem ligação de cor, sexo ou idade...
Owen observava atentamente um grande mural de imagens desorganizadas numa parede irregular. Um grande mural com fotos de pessoas desaparecidas.
— ...E a maioria parece ter desaparecido nessa semana. Será que isso é apenas uma coincidência ou há algo mais acontecendo nessa cidade...? Ellen, onde foi que você se meteu num momento importante como esse?
Owen já havia passado por todos os locais onde Ellen poderia estar, pousadas, restaurantes, bares, mas não haviam pistas de seu paradeiro.
Sem conseguir achar uma resposta para esse enigma ele voltou a caminhar, desviando de todas as pessoas que trabalhavam numa tentativa de reconstruir a cidade depredada. Não importava por onde passasse, Owen era sempre perseguido por olhares desconfiados, mas ele não os culpava por isso, afinal se a situação estivesse invertida Owen também não confiaria sua liberdade nas mãos de um estranho como ele por dois motivos: Primeiro por causa da má fama que a Legião de Mahyra possuía. Segundo (e talvez o principal motivo) era por causa de sua aparência e idade, que estavam longe de serem parecidas com as de um poderoso soldado.
Após pouco tempo de caminhada Owen chegou há um local bastante amplo e arejado no centro de Jothenville. As pequenas lojas e pousadas formavam um círculo ao redor daquela ampla praça. Lá haviam pequenos postes com lampiões a gás por todos os lados, e no seu centro uma grande fonte seca dava um toque europeu àquele lugar. Se não estivesse tão vandalizada, aquela praça poderia até ser considerada bonita.
Mas era algo completamente diferente que tomava a atenção de Owen. Próximo a fonte, seis pessoas distribuíam pedaços de pães para outras centenas que estavam aglomeradas naquele lugar.  Não havia organização na distribuição, então aqueles que desejavam receber algo tinham que atravessar toda aquela multidão a força. Só que tudo ficou ainda pior quando aquelas pessoas se deram conta de que os alimentos estavam acabando rapidamente, e não seria o suficiente para todos.
Owen encarava tudo aquilo sem nenhuma expressão em seu rosto, enquanto pessoas eram agredidas e pisoteadas como ratos no meio de uma manada de elefantes. Em questão de segundos as cestas de alimentos foram roubadas e saqueadas, e quando não restava mais nada os alvos tornaram-se aqueles que possuíam algo nas mãos.
O que veio a seguir era o inevitável. Brigas generalizadas, gritaria e destruição. Não havia mais distinção de sexo ou cor. Todos eram bárbaros, no meio de uma tragédia anunciada.
Uma mulher com longos cabelos dourados e olhos azuis corria desesperadamente, numa tentativa de fugir do grupo de pessoas que a perseguia com intenção de roubar os dois pedaços de pães que ela segurava com força.
A feição calma de Owen era apenas uma fachada, uma mentira. A verdade era que uma fúria desagradável crescia gradualmente em seu peito, fazendo suas mãos tremerem levemente e sua respiração acelerar. Ele queria fazer algo para ajudar todas aquelas pessoas, mas nada vinha a sua cabeça. Como ele poderia diminuir essa raiva que o corroía por dentro?

‘Você acredita que os sentimentos de uma única pessoa consegue mover o mundo?’

‘Você acredita que algo vago como vingança ou amor tenha poder suficiente para mudar este planeta?’

Uma voz ecoou dentro da cabeça de Owen. Uma voz calma e fria. A voz de alguém que ele amou há muito tempo atrás. 

‘...Eu acredito que você é o único capaz de mudar este mundo trágico, Owen...’

‘Apenas você é capaz de mudar a mente desses humanos ingratos. Você só precisa se dar conta disso. Você devia acreditar mais em si mesmo.’

Owen respirou profundamente e fechou os olhos, numa tentativa de calar aquela voz que sempre aparecia nos momentos mais inoportunos. Sua mão esquerda foi em direção a parte de dentro do seu sobretudo e encontrou quase que inconscientemente uma espécie de faca negra que tinha por volta de 30 centímetros de cumprimento. Aquele era um equipamento exclusivo dos integrantes da Legião de Mahyra, batizado de Sensorium.
— Eu não sou um herói. Meu poder só pode ser usado para o mal, para amedrontar, para machucar...
Owen sorriu, tentando de todas as formas negar seu passado, e tudo que ele significava. Na verdade ele estava se forçando a esquecer de todos os seus pecados.
— Por que estou resmungando? Ser odiado por todos não é nenhuma novidade. Se eu não me mover agora... tudo estará acabado, não?
Assim que Owen balançou seu Sensorium, uma lâmina deslizou de dentro dele, como se fosse uma espécie de estilete, ficando três vezes maior. Aquele equipamento num piscar de olhos havia se tornado uma espada de lâmina negra, agora com 90 centímetros de cumprimento.
Antes que se desse conta Owen já estava correndo para ficar entre aquela garota e as pessoas que a perseguia. Se ele conseguisse ajudar ao menos aquela mulher. Se ele pudesse ser apenas um pouco útil, essa dor na sua alma eventualmente adormeceria.
A garota de cabelos dourados tropeçou e caiu de costas contra o chão de pedra, protegendo os alimentos contra seu corpo.
— Agh!
Ela virou seu rosto e encarou com perplexidade a multidão que aproximava-se feito animais selvagens. No momento em que ela pensou que seria morta, um vulto atravessou sua frente. Por um bom tempo a garota só conseguia encarar o sobretudo negro que balançava suavemente ao ritmo do vento. Apenas um minuto depois ela foi capaz de olhar para cima.
Owen apontou sua espada na direção do grupo de oito pessoas fazendo-os parar imediatamente. Essa simples atitude foi o suficiente para calar toda aquela população. Todos que brigavam, todos que se matavam por um pedaço de pão, pararam. A sombra projetada pelo chapéu encobria seus olhos, e consequentemente sua expressão. A boca dele era apenas uma linha fina.
— JÁ BASTA!!!
Sua voz firme ecoou.
— Vocês tem ideia do que estão fazendo?! Já perceberam o que vocês se TORNARAM?!
As pessoas entreolharam-se, incapazes de encarar Owen.
— Como vocês ainda podem se julgar humanos após essa crueldade sem sentido?! Quando foi que vocês começaram a encontrar prazer na violência?! Ahn?! RESPONDAM!
As expressões no rosto de cada uma daquelas pessoas transmitiam hesitação, culpa e pesar. Eles não queriam brigar, eles não queriam ficar uns contra os outros, mas a necessidade, a fome e o desespero, acabaram transformando-os em monstros. Owen deu um sorriso frio e apertou ainda mais o punho de sua espada.
— Então? Vocês ainda acham que esse é o melhor modo de resolver as coisas? Vocês não acham que já está na hora de pararem de destruir para juntos encontrarem uma solução para dar um fim a este pesadelo?!
Até esse momento a voz de Owen soava como a de uma pessoa prestes a chorar, mas no segundo seguinte seu tom tornou-se frio, desprovido de qualquer compaixão. Owen queria mostrar para aquelas pessoas que ele não ligava se seria necessário sujar suas próprias mãos para acabar com tais atitudes. Ele precisava demonstrar que estava preparado para tomar o pecado de toda aquela população para si.
Owen respirou fundo uma última vez, deixando um sorriso que só poderia ser descrito como perverso, tomar seu rosto.
— Nesse momento vocês estão presos, como pássaros numa gaiola, e o modo como estão agindo só deixa isso mais claro. Vocês são apenas animais assustados, nada mais que isso. Mas adivinhem só! O DOMADOR CHEGOU! Eu estou aqui exatamente para adestrá-los, como os animais que são! E logo após domá-los, irei libertá-los... EU SEREI AQUELE QUE SALVARÁ TODOS VOCÊS!
Faltava apenas uma frase para Owen mudar a atitude de todas aquelas pessoas, ou piorar tudo de vez.
— Esse será meu único aviso... Eu mandarei para o inferno a próxima pessoa que levantar a mão para agredir ou roubar alguém... E o sangue dessa pessoa assombrará a vida de cada um dos aqui presentes, para sempre.
Owen deu uma risada seca e balançou sua espada.
— Então, quem quer ser o primeiro?
Um silêncio pesado tomou conta daquela praça, e após alguns segundos a multidão começou a recuar. Em poucos minutos a grande maioria havia se dispersado. Apenas nesse momento Owen abaixou sua espada enquanto suspirava aliviado.
— Ahhhh.... Que bom que funcionou...
Ele olhou para a garota que permanecia de joelhos perplexa. Os pães tremiam em seu colo. Owen apertou um botão no punho de sua espada, fazendo a lâmina regredir imediatamente, deixando-a em seu formato compacto. Ele guardou o Sensorium dentro de seu sobretudo com medo de estar assustando a garota, em seguida estendeu sua mão, com um sorriso torto no rosto.
— Você não está machucada, está?
A garota de cabelos dourados segurou a mão dele e levantou. Suas pernas estavam bambas, por isso ela precisou de alguns segundos para ficar de pé sozinha.
— Estou bem... Eh... Obrigado... por me ajudar...
Essa garota não aparentava ser uma plebeia. Seu vestido de seda aparentava ser caro, seu cabelo era liso e bem cuidado.
— Meu nome é Owen. Eu vim da República do Rio. Prazer em conhecê-la.
— Aria Arthmael... Muito prazer... 
— Arthmael? Você por um acaso é parente do Sr. Marcos?
A garota desviou o olhar, claramente constrangida por ter sido reconhecida.
— Sim... Ele é meu pai...         
Owen ficou boquiaberto de tanto espanto. Ele não conseguia pensar em um motivo para uma nobre como ela estar num lugar como esse, brigando por um pedaço de pão. Até onde Owen podia imaginar, Marcos devia possuir um enorme estoque de comida em sua mansão.
Aria percebendo a pergunta implícita, falou.
— Pelo jeito o senhor deve estar curioso para saber o que estou fazendo aqui, não é?
Ela deu um sorriso gentil.
— Venha comigo, eu mostrarei para o senhor. 
05
15:42 P.M – ???
Dezenas de corredores estreitos que pareciam não ter fim entrelaçavam-se formando um labirinto. Os vaga-lumes nas paredes pareciam olhos brilhantes que desapareciam à medida que Ellen passava por eles. Já fazia mais de uma hora que ela andava por esses corredores subterrâneos, onde a cada poucos metros um caminho se cruzava com outro.
— Parece que estou andando em círculos... Estes túneis devem percorrer toda a cidade de Jothenville por baixo. Hum... Pensando bem isto parece mais com algum tipo de rota de fuga. Qualquer um que conheça bem este lugar pode sair em qualquer parte da cidade, ou até mesmo na floresta.
Ellen puxou o colarinho de seu vestido, sentindo-se incomodada com o calor e o suor que escorria pelo seu corpo.
— Eu não devia ter vindo com esta roupa... Droga... É aterrorizante quando Owen tem razão... Ahn...? O que é aquilo?
Uma luz amarelada chamou sua atenção para um dos corredores. Até esse momento Ellen não havia encontrado uma prova de que alguém utilizava esses túneis. Ela caminhou com cautela pela lateral do corredor até a origem da luz.
Fora duas velas, não havia mais nada iluminando o local, então boa parte da sala estava completamente enterrada nas trevas. Ali encontrava-se uma enorme mesa de madeira maciça que cruzava o local de uma ponta à outra. Nas paredes haviam prateleiras enormes, carregadas de livros e manuscritos que erguiam-se até o teto de terra batida. Espalhado pelo chão estavam dezenas de objetos de diversos tamanhos e formatos que Ellen nunca havia visto antes.
De certa forma essa sala lembrava uma antiga e bagunçada biblioteca.
Ellen aproximou-se da mesa. Em cima dela haviam vários cilindros de vidro cheio de líquidos com cores diferentes. Ali também tinha vários tipos de ervas e plantas desconhecidas, tanto secas quanto verdes e floridas, ao lado de tubos com pontas de metal. O odor no ar era insuportável. Ellen comparava aquele cheiro com o de animais mortos.
Em um outro ponto da mesa haviam dezenas de gaiolas com pequenos animais trancafiados. Ellen olhou dentro de uma delas. Lá estavam dois ratos brancos, mas havia algo de errado. O primeiro aparentava ser um rato normal, olhos vermelhos, correndo sem parar por toda a gaiola. Já o segundo possuía olhos amarelados, e estava parado. Ellen por um momento pensou que ele estivesse morto, mas as pequenas pulsações nas suas orelhas e sua fraca respiração mostrava o contrário. Aquele rato parecia estar hipnotizado. Ellen nunca havia visto algo assim antes, mas ela já tinha ouvido sobre algo semelhante. Pessoas contratadas pela igreja e pelo governo a fim de trabalhar em experimentos que pudessem beneficiar a humanidade. A fama e importância dessas pessoas era inquestionável em todo o planeta. Os chamados cientistas.
— ...Isso é um laboratório? Estão fazendo experimentos em seres vivos...
O estômago de Ellen revirou-se apenas com o pensamento desses pequenos animais sendo torturados por um motivo desconhecido e provavelmente terrível, afinal, se algo desse tipo estava sendo feito em um local escondido da própria igreja, não poderia ser por uma boa causa.
Olhando novamente para os objetos sobre a mesa, um frasco carmesim chamou sua atenção. O líquido dentro dele possuía o cheiro de sangue envelhecido. Em um papel colado no vidro havia uma frase escrita com letras de forma, onde dizia: ‘sangue da progenitora’.
‘Ajude-me...’
O coração de Ellen pulou violentamente em seu peito. Escondendo-se atrás de uma pilha de livros ela buscou pela origem do som, mas não encontrou nada. Alguns segundos depois o barulho de correntes batendo quebrou o silêncio novamente, seguido por gemidos de agonia.
‘Ajude-me. Por favor...’
06
15:20 P.M – Área de Criação de Animais
A estrada próxima às fazendas possuía o odor peculiar de sal e estrume. Esse lugar situava-se próximo à divisa de Jothenville com a floresta de Caaporã, que formava uma espécie de muralha natural em volta da cidade. Ali ficavam grandes fazendas de criação de cavalos, que eram vendidos para todas as forças armadas do Sudeste. Essas fazendas eram responsáveis por boa parte da renda total de Jothenville.
Owen e Aria caminhavam lado a lado pela estrada lamacenta. Eles não haviam conversado muito durante todo o trajeto pois Aria tinha medo de começar algum tipo de aproximação, e Owen ciente disso estava dando o espaço necessário para a garota se sentir mais confortável.
Em um certo momento uma densa fumaça chamou a atenção dos dois. Dezenas de fazendeiros formavam um círculo ao redor de uma enorme fogueira no terreno de uma das fazendas. Lá dezenas de animais eram cremados, originando aquela nuvem negra no céu. Os cavalos também estavam sofrendo com a falta de comida, causando não só uma enorme perda financeira, como também sentimental.  A tristeza explicita no rosto de cada uma daquelas pessoas deixava isso claro como o dia.
Owen encarava tudo aquilo como uma coisa natural, já Aria não conseguia olhar. Ela manteve sua cabeça abaixada até o momento em que eles se distanciaram daquela cena. Seu estresse emocional visível em seus poucos gestos.
Determinado a dar um fim nesse clima ruim Owen resolveu quebrar o silêncio, que parecia não estar ajudando em nada.
— Por um acaso você chegou a encontrar uma garota? Cabelos brancos, roupa esquisita, intrometida, rabugenta e impertinente?
Aria deu uma risada breve.
— Não, mas já ouvi falar sobre ela. As notícias correm rápido por aqui.
Owen suspirou, temendo que ela pudesse estar metida em alguma encrenca.
— Sr. Owen... É verdade o que todos estão comentando...? Vocês dois estão aqui para dar um fim aos ataques dos lobos?
Owen escolheu bem suas palavras antes de falar. Ele não queria fazer uma promessa, ou dizer que faria de tudo para acabar com os ataques. Owen não queria dar esperanças para Aria pois na opinião dele a esperança era a maior fraqueza do ser humano.
— ...Irei fazer o possível para ajudar a todos.
— Se... você encontrasse a pessoa que está provocando tudo isso... O que você faria?
Owen não sabia como responder essa pergunta. Para falar a verdade ele ainda não tinha pensado nessa parte, ou simplesmente estava se negando a pensar.
— Eu não sei. A lei absoluta da Aliança Sul-americana propõe prisão e julgamento, onde um júri decidirá se tal pessoa é culpada ou inocente. Dependendo do grau de sua pena, tal pessoa pode acabar presa para sempre, ou condenado a morte. É isso que os humanos chamam de senso comum afinal.
— De fato, mas sempre há uma escolha, não? Por mais que essa lei tenha que ser obedecida, todos os humanos possuem pensamentos diferentes. Nem todos concordam ou apoiam essa lei. O que quero saber é: você seguiria essa lei, Owen?
— Eu não sou capaz de controlar meu futuro, Aria. Mas... eu nunca me permitiria entregar uma pessoa como oferenda para a morte. Isso seria apenas um capricho mundano, seguindo os desejos de uma sociedade criada por pessoas controversas, aleatórias. Repleta de indivíduos que olham e interagem com o mundo a sua volta sem nenhuma emoção, agindo como uma espécie de máquina. Ainda assim... nessa mesma sociedade existem aqueles que sofrem, choram e tem pesadelos com as tragédias que ocorrem diariamente nesse mundo.
— ...Qual desses dois tipos de pessoa o senhor é?
— Minha opinião não é relevante. Quem eu aparento ser, Aria? Seja sincera.
— O senhor... parece ser o tipo de pessoa que não se importa com aqueles ao seu redor. Seus... olhos são frios, como os de um morto. Mesmo naquele momento, na praça, o senhor não parecia se importar realmente com o que estava acontecendo. Parecia mais que você estava cumprindo com seu ‘dever’ como soldado do que agindo por vontade própria.
Owen encarou aquela fumaça negra mais uma vez.
— A terra é um lugar repleto de tragédias, Aria. Da mesma forma que pessoas sofrem aqui, milhares de outras sofrem ainda mais em outros lugares do planeta, e esse é um fato que nunca mudará. É dessa forma que penso. Eu não posso sentir compaixão, tristeza ou pesar pelo que acontece com vocês, afinal isso seria um desrespeito com todos os outros que choram por motivos ainda mais trágicos que esse.
— ...Esse modo de pensar não acaba fazendo você ser rejeitado por todos à sua volta? Essa... não é uma vida solitária demais?
— Sim, é. Mas eu escolhi viver assim. Por mais que o mundo há minha volta esteja caindo em desespero, eu sempre tentarei agir como se não fosse o fim do mundo. Salvar as pessoas é apenas um dos meus desejos egoístas. Ao salvar alguém eu sinto que também estou me salvando.
Aria abaixou o rosto em resposta. Ela nunca imaginou que algum dia encontraria alguém com pensamentos tão conflitantes e perturbadores como os dele. Owen aparentava ser tão calmo, mas ao mesmo tempo tão denso, tão triste. Seus desejos pareciam tão verdadeiros, mas ao mesmo tempo tão vazios. Sua voz soava de uma forma fria e antinatural como se ele fosse desprovido das emoções de um ser humano, e isso era o que assustava Aria. Ela não era capaz de compreender os pensamentos dele, mas incontestavelmente era capaz de entender o sofrimento que ele tentava a todo custo esconder. Isso só era possível por que de certa forma os dois eram parecidos.
Se Aria era como uma nuvem de chuva, Owen era como aquela nuvem negra que espalhava-se pelo céu.
— Como você consegue ser tão sincero?
— Hum... Eu não tenho motivos para esconder quem sou. E de certa forma sinto que posso confiar em você.
Owen sorriu, fazendo Aria corar levemente.
Eles andaram por mais dez minutos antes de pararem na frente de uma casa humilde, feita de barro e madeira. Aria bateu duas vezes contra a porta frágil antes de ser atendida. Um homem com roupas simples abriu a porta. Assim que encontrou Aria um grande sorriso tomou seu rosto, mas essa mesma expressão foi logo substituída por um olhar desconfiado ao encontrar o garoto ao lado dela. Owen lembrou das palavras ditas por Aria pouco tempo antes. ‘As notícias correm rápido por aqui.’
A Legião de Mahyra era uma ramificação do exército formada há dez anos com o objetivo de criar a força armada mais poderosa da Aliança Sul-americana. De fato eles conseguiram isso, mas ao mesmo tempo a Legião acabou tornando-se famosa por ser um grupo corrupto, que abusava constantemente de sua autoridade, quase sempre pisando em cima dos mais fracos para concluir seus objetivos, que nem sempre eram benéficos a sociedade. Owen não discordava dessa parte, afinal em sua grande maioria os Legior’s agiam de tal maneira. Owen só não apoiava a parte em que todos eram julgados da mesma forma, afinal, ainda existiam aqueles que lutavam para ajudar e proteger aqueles que mais precisavam.
— ...Por favor entrem.
Era clara a falta de vontade daquele homem ao convidar Owen, mas seu medo de decepcionar Aria era ainda mais forte.
A casa era pequena. Provavelmente tinha apenas três cômodos. A sala de estar possuía poucos móveis, apenas uma mesa com três cadeiras surradas, uma prateleira com alguns livros e muitas teias de aranha pendendo do telhado. Dentro da sala estavam mais três pessoas. Uma mulher sentada no chão, brincado com seus dois filhos pequenos.
— Olhem o que eu trouxe para vocês!
Aria abriu os braços e deu um grande sorriso vitorioso, mostrando os dois pães que protegera com tanto esforço. Tanto o casal quanto as crianças sorriram como se aquilo fosse a coisa mais preciosa do mundo.
— Oh, Aria! Muito obrigado! Não há nada que eu possa dar em troca... Desculpe-me!
O homem curvou-se desajeitadamente. Já a mulher levantou sorridente e correu para a cozinha, em busca de algo para acompanhar os pães.
— Eu não preciso que você me dê nada. Ser capaz de ajudar vocês é a melhor recompensa que eu poderia receber.
E numa tentativa de diminuir a tensão no ar, Aria acrescentou.
— Eu ainda não o apresentei. Este é Owen da República do Rio. Sem ele eu não teria conseguido estes pães.
— ...Oh... Muito obrigado Sr. Owen, e prazer em conhecê-lo. Me chamo Guilherme Oliveira.
Mesmo agradecendo com um sorriso simpático, a desconfiança era clara em seu tom de voz. Owen resolveu responder por educação.
— Eu só estava fazendo meu trabalho senhor. 

◊ ◊ ◊

Owen era apenas uma criança quando pôs os olhos em um integrante da Legião de Mahyra pela primeira vez, onde imediatamente nasceu o desejo de se tornar um deles. Ele estava consciente de todas as coisas horríveis que eles deviam enfrentar, afinal ainda era um exército, e como em qualquer exército aquelas pessoas encaravam o perigo quase que diariamente, e inevitavelmente morriam, muitas vezes insignificantemente. Ainda assim Owen sonhava em ser um deles, sonhava em ser um herói. Alguns anos depois, no momento em que ele ficou sozinho no mundo, não existia mais nada que o impedisse de ingressar na legião, e de certa forma Ellen acabou tendo uma parcela de culpa nessa decisão no momento em que ela decidiu enfrentar essa jornada com ele.
Os testes foram duros, muitas vezes cruéis, ainda assim Owen se formou em primeiro do seu grupo. Todos o consideravam um prodígio, um gênio capaz de derrotar até os mais experientes num piscar de olhos. Mas ele só era capaz de tudo aquilo por causa da sua sede de poder, e seu desejo de vingança. Ellen teve um pouco mais de dificuldades, mas graças ao apoio de Owen também conseguiu se formar.
Tudo estava ótimo. Owen realizou seu sonho de infância, e isso o deixou feliz. Mas então veio sua primeira missão, que mais tarde seria conhecida como ‘A Queda do Paraíso’. Naquele momento, onde pedaços dos corpos de seus companheiros voavam em frente aos seus olhos. Onde a desconfiança, o medo, a dor e o sofrimento apunhalava seu coração sem sessar. Uma lenta e covarde tortura psicológica. Naquele dia Owen se convenceu de que o mundo onde ele seria um herói nunca existiria.
Mais uma vez aquela voz incomoda ecoou em seu subconsciente.
‘Owen, você é capaz de espalhar esperança para todos à sua volta.’
— Mas isso é apenas uma mentira, não é? Mais uma dentre todas as outras mentiras que você falou para mim.
Owen encarou o horizonte, admirando o modo como as folhas das árvores pareciam cintilar ao toque dos raios do sol, e o modo como dançavam ao ritmo do vento. Ele respirou profundamente, tentando clarear sua mente e assim melhorar seu humor, já bastante abalado.
— Eles são incríveis, não? Os cavalos de guerra?
Guilherme caminhava em direção à Owen com um sorriso torto no rosto. Ele aparentava estar verdadeiramente feliz por saber que sua família não passaria outra noite com fome. Owen voltou seu olhar para os cavalos, mas sem enxergá-los. Sua mente parecia estar muito longe daquele lugar.
— Sim, eles são. É realmente uma pena vê-los sofrendo desta maneira.
Guilherme respirou profundamente. Não haviam motivos para evitar um confronto direto. Aria ainda estava dentro de casa, então ele não precisava mais hesitar.
— O que a Legião realmente quer aqui? Vocês vieram apenas pelo dinheiro que Marcos ofereceu, não é verdade?
Owen permaneceu em silêncio.
— Então... é verdade. Aquele velho desgraçado nunca teve a intenção de nos ajudar.  Vocês foram contratados apenas para intimidar e reprimir qualquer ataque contra aquele... bastardo!
— Senhor... Você pode não acreditar, mas estou realmente triste com tudo que está acontecendo em Jothenville. Desde o início eu estava pronto para ajudar, mas após ver a situação com meus próprios olhos... comecei a pensar que não vale a pena.
Owen voltou-se para Guilherme e sorriu. Um sorriso pretencioso e sádico acima de tudo.
— Todas essas pessoas só pensam em si mesmas. Não se importam uns com os outros, chegando ao ponto de quase se matarem por um mísero pedaço de pão. Agora responda a minha pergunta. O que torna vocês diferentes de Marcos?
Guilherme mordeu o lábio inferior e num ataque súbito segurou o terno de Owen, puxando-o para cima.
— VOCÊ NÃO FAZ PARTE DO MELHOR EXÉRCITO DO MUNDO?! ESSA NÃO É SUA OBRIGAÇÃO?! AJUDAR AS PESSOAS!
— Não há nada que eu possa fazer para ajudá-los. Vocês não são capazes de caminhar com os próprios pés e lutar por uma única causa. Essa desunião trará apenas mais desespero, mais raiva, mais ganância, mais fome. Todos frutos que vocês mesmo plantaram. Só existe um futuro para uma sociedade assim, e ela encontra-se sete passos abaixo da terra.
— ENTÃO VOCÊ IRÁ EMBORA?! ABANDONARÁ TODAS ESSAS PESSOAS?! TODOS VÃO MORRER, E VOCÊ SABE DISSO!
O simples pensamento de ver sua esposa e seus filhos morrendo, fez Guilherme engasgar. Em resposta Owen deu uma risada fraca e fechou os olhos.
— Eu não irei embora... Eu não conseguiria continuar vivendo após fazer isso.
Owen tocou o ombro esquerdo de Guilherme e deu um sorriso sereno e educado, deixando-o paralisado.
— Eu continuarei aqui até vocês aprenderem a construir uma sociedade de verdade. Se vocês precisam de um professor, então serei a pessoa que os ensinará. Não há uma chance de eu ignorar tudo que vem acontecendo aqui.
Guilherme estava com os olhos arregalados, incapaz de falar qualquer coisa.
— Por que essa cara? Nem todos os Legiors são desumanos. Alguns... poucos, ainda vivem parar proteger, salvar pessoas. Não estou atrás de dinheiro ou fama. Minha única intenção é ajudá-los... Eu... daria minha vida de bom grado para isso.
Por mais que Owen não quisesse fazer promessas, essas últimas palavras escaparam involuntariamente pela sua boca. Ainda assim aquelas eram palavras verdadeiras, que residiam no fundo de seu coração. Guilherme não era capaz de esconder seu espanto, suas mãos afrouxavam o aperto aos poucos.
—Fazia um tempo que eu não encontrava alguém com uma determinação tão forte quanto a sua, garoto.
— Minha companheira diz que eu sou um retardado quando eu ajo desta maneira, senhor.
Owen deu uma risada, e Guilherme não pode fazer mais nada além de soltá-lo e suspirar aliviado.
— Bem... Só resta depositar minha vida e a da minha família nas suas mãos. Prove que este velho está errado. Salve esse povo. Seja um herói.
Owen sorriu e voltou a encarar o horizonte, que mudava de cor extremamente rápido. Uma impiedosa tempestade estava a caminho.
Você apenas precisa aceitar o medo preso na sua alma, para conseguir pintar a escuridão na mente das pessoas’
— ...Talvez eu estivesse mentindo para mim mesmo durante todo esse tempo, não...?
07
15:48 P.M – ???
‘Ajude-me...’
A voz não parecia estar vindo do corredor, e sim de dentro daquela mesma sala. Ellen prendeu a respiração e com o mínimo de barulho voltou a caminhar, esgueirando-se pelas paredes de barro. Como os sons estavam abafados, Ellen especulou que essa pessoa só poderia estar atrás de uma daquelas paredes.
‘Ajude-me..’
— Hum... Está vindo daqui... Será que isso é algum tipo de sala secreta...?
Ellen procurou algum tipo de alavanca ou abertura na rocha, mas não encontrou nada.
— Vamos lá Ellenia. É preciso apenas um pouco de concentração. Você consegue fazer ao menos isso... Para que serve todo esse poder se você não consegue usá-lo?
As batidas de seu coração eram audíveis, suor frio descia pela sua nuca.
— O que é isso? Medo? Não... Ansiedade? Talvez seja isso.
Com um sorriso torto Ellen fechou os olhos. Nesse momento uma luz branca surgiu, partindo da palma de sua mão direita, iluminando toda aquela sala. Uma luz forte o suficiente para cegar qualquer um que estivesse perto.
— Vamos lá poder estúpido! Seja útil pelo menos uma vez!
Ellen apoiou sua mão direita sobre a parede. Nesse momento um buraco começou a se formar lentamente no centro daquela rocha, sem deixar registros de poeira ou destroços. Aquela parede na verdade estava derretendo, como se algum ácido a estivesse corroendo.
Cerrando os dentes, Ellen apoiou sua mão esquerda sobre a direita, expandindo ainda mais aquela poderosa luz branca. Assim que havia uma abertura grande o suficiente para passar, Ellen direcionou sua mão, ainda reluzente, para dentro daquela sala escondida. Primeiramente ela não viu nada que diferenciasse aquele lugar de todas as outras salas por onde ela havia passado, mas assim que estreitou os olhos uma cena cruel fez seu corpo congelar. Cerca de 12 pessoas estavam suspensas, penduradas por correntes presas ao teto. Sangue banhando seus corpos. O cheiro de putrefação tomava completamente o ar. Ellen foi obrigada a colocar uma mão em frente ao nariz para impedir que uma ânsia de vômito tomasse seu corpo.
Contrariando seus instintos ela entrou dentro daquele lugar e observou os corpos de cada um deles. Haviam homens, mulheres e crianças. A única coisa que tinham em comum eram pequenos hematomas espalhados por seus braços e pernas. Hematomas provocado por agulhas. Aqueles experimentos não estavam acontecendo apenas em animais, mas também em seres humanos.
Ellen por um momento imaginou que todas aquelas pessoas estavam mortas, mas o barulho de correntes voltou a ecoar, ainda mais alto. Ellen pulou de susto e voltou sua atenção para um homem no fim da fileira. Seu corpo estava extremamente desnutrido e pálido. Com muito sacrifício ele levantava seu rosto na direção da recém chegada. Suas íris estavam amareladas, sua esclera completamente negra. Aquele homem deformado não poderia mais ser considerado humano, e Ellen estava ciente disso.
Por favor... Ajude-me...
— Me diga quem fez isso com você.
Por favor... Por favor... Salve-me...
— Eu preciso de um nome! Se você falar quem o prendeu aqui muitas vidas poderão ser salvas!
Ele...
— Ele?! Quem é ele?!
Ele vai trazer a evolução para toda esta cidade!          
Um sorriso tomou o rosto daquele homem. Um sorriso sarcástico, macabro, monstruoso. Ele abriu a boca, fazendo sua mandíbula quebrar violentamente, com um ‘creck’ que ecoou por toda aquela sala. Uma gota de suor frio escorreu pela nuca de Ellen.        
— Aah... Hoje não é mesmo o meu dia de sorte... 
Aquele homem puxou as correntes que prendiam seus braços de uma forma tão violenta que deslocou seus pulsos. Seus membros esguios aparentavam estar crescendo lentamente, fazendo suas roupa rasgarem. Seu rosto tomava uma forma sobre-humana, que mais parecia a mistura de um cachorro com um porco. Saliva escorria sem controle pela sua boca quebrada. Seus olhos sem vida reviravam como os de uma pessoa possuída.
GWUAAAAAAAA!!! 
As algemas que prendiam seus pulsos quebraram facilmente dessa vez, e ele caiu no chão grunhindo como um cachorro, ou melhor, como um lobo, sedento por carne e sangue. Ellen recuou dois passos, buscando à fissura por onde havia entrado.
— Isso foi realmente... muito nojento. 

◊ ◊ ◊

— Pare de me seguir coisa pervertida, coisa asquerosa, coisa nojenta!
Ellen corria em disparada pelo labirinto, usando a forte luz que vinha de sua mão esquerda como um farol. Ainda assim, a cada poucos passos ela tropeçava por culpa das pedras e do terreno irregular.
— Uma saída, uma saída... Onde tem uma maldita saída?! Aaaahh! Não consigo correr direito com este vestido!
Ela entrou na primeira sala com porta que encontrou. A trancou com uma trava de madeira, reduziu a luz da palma de sua mão e prendeu a respiração. Ellen esperava que o silêncio pudesse esconder sua presença, mas o pulsar de seu coração foi o suficiente para atrair a atenção da criatura que possuía sentidos mais apurados que os de um lobo.
Um grito gutural ecoou, seguido por um ataque furioso contra aquela porta, que fez toda a estrutura da sala tremer.
— Esta porta não vai aguentar muito tempo. Pense Ellenia, pense! Se eu estiver mesmo abaixo de Jothenville só preciso abrir um buraco no teto e escalar até a superfície. Mas... Isso pode ser perigoso considerando que alguma construção ou algo semelhante esteja acima de mim. Qualquer descuido resultará em um grande desmoronamento, e a última coisa que quero é ter meu enterro neste fim de mundo...
Aquela pequena sala possuía apenas um colchão de solteiro surrado e alguns sacos de pano que aparentavam estar cheios de alimentos perecíveis. Esse lugar era sem sombras de dúvidas uma espécie de refúgio. Sem encontrar nem ao menos uma entrada de ar, Ellen começou a caminhar sem rumo, aproximando seu ouvido de todas as paredes em busca de uma que pudesse ser atravessada.
No segundo ataque da criatura, grandes pedaços da porta voaram para cima de Ellen, que agachou para não ser atingida. Um braço esguio, marcado por veias pulsantes havia atravessado a madeira. Poucos segundos depois um segundo braço, claramente diferente do primeiro, também varou a porta. Ellen estava ciente de que mesmo sendo diferentes, aqueles membros pertenciam a mesma pessoa.
— ...Se é que posso considerar algo tão asqueroso como uma pessoa...
Ellen correu para a parede oposta a porta e rapidamente apoiou suas duas mãos no centro dela. Diferente da primeira vez, seu toque corroeu aquela estrutura instantaneamente. Ellen pode imaginar apenas duas possibilidades para algo assim ter sido possível. O primeiro era por causa da adrenalina que ela estava sentindo. Seu coração bombeava sangue mais rapidamente, fazendo com que seu cérebro funcionasse de forma mais veloz, e assim propagasse sua magia mais facilmente. E o segundo motivo...
— Owen está por perto?
Ela passou pela fissura e deu de cara com mais uma sala. Diferente da anterior essa era mais parecida com um estoque velho de armazém, duas vezes maior, onde dezenas de caixas com tamanhos e materiais variados estavam espalhados por todos os lados. Não havia uma porta aparente e o teto não era tão alto, então o primeiro pensamento de Ellen foi empilhar algumas caixas para assim alcançar o topo da sala. Mas antes que pudesse dar um passo, a porta da sala anterior voou das dobradiças.
O mutante era incrivelmente veloz. Mesmo com seus membros desproporcionais, correndo de quatro como um animal selvagem, cruzou metade da primeira sala em apenas três segundos.
Ellen correu de volta para a entrada da passagem que havia criado e numa tentativa de impedir o avanço da criatura, tocou a parede pouco acima da fissura e deslizou sua mão sobre ela. Seu toque fazia as rochas e o barro derreterem, derrubando boa parte daquela estrutura e consequentemente bloqueando a entrada.
Por um momento ela pensou que havia escapado, mas tremores e sons de pedras se chocando contra o chão começaram a ecoar sem sessar. O mutante estava escavando a parede com suas próprias mãos. Ellen sabia que era apenas questão de tempo até aquela criatura abrir outra entrada graças a sua força sobre-humana.
— Vamos lá! Caixas, caixas!
Ellen ajoelhou na frente de uma caixa de porte médio e abriu sua tampa de madeira. Dentro dela havia dezenas de pequenos objetos metálicos e ovais do tamanho de um punho cerrado. Ela pegou um deles e apertou um botão em seu centro. No mesmo instante o objeto abriu, revelando todo o seu interior.
— O que é isso...? Hum... Dois compartimentos selados que abrem quando o botão central é pressionado. O que é possível colocar em compartimentos tão pequenos? Pó ou talvez algum líquido? Teoricamente, dependendo dos produtos usados dentro desta esfera, a mistura pode causar alguma reação química, uma combustão... Resumindo... Isso é uma espécie de granada...? Bem, não importa. Aaah, que dor de cabeça... Aposto que essas caixas são muito pesadas...
Ellen suspirava à medida que recolhia e empilhava caixas no centro da sala. Assim que havia uma torre de cinco caixas, ela empilhou mais três ao lado da primeira torre, formando assim uma espécie de escada.
— Certo, próximo passo. Considerando que eu esteja muitos metros abaixo da superfície é bem possível que eu não consiga abrir uma passagem por culpa do meu poder limitado. Minha única alternativa é tentar algo mais complexo, e rezar para Owen estar mesmo por perto...
Ela deu uma risada.
— Então no fim preciso depender da minha incrível sorte para escapar? 
Ellen pegou novamente aquele pequeno saco que guardava em seu decote, retirou de lá um giz de gesso branco e subiu em sua escada improvisada. No teto ela desenhou um círculo e vários símbolos que formavam um caracol dentro dele. Qualquer mínimo erro significaria a falha total daquele feitiço, e consequentemente um perigo eminente à segurança de Ellen, que não era especialista em luta corpo a corpo.
Nesse momento uma série de novos ataques trouxeram consigo um grande desmoronamento de terra, que por pouco não derrubou Ellen. O mutante estava prestes a atravessar a parede. Ellen se recompôs, finalizou os desenhos e finalmente notou que estava suspirando muito ultimamente.
— Preciso fazer um sacrifício... Hoje, definitivamente, não é meu dia...
Ela pegou uma pequena navalha e começou a fazer cortes finos na palma de sua mão esquerda enquanto mordia o lábio inferior numa tentativa falha de conter a dor. Usando seu sangue, cruzou o círculo no teto de um lado para o outro, mas nada aconteceu. Nem mesmo um trinco ou um fragmento de luz.
— Como suspeitava. Para completar algo tão complexo é necessário um tributo maior. É preciso mais sangue...
Grandes pedaços de destroços voaram. Para não ser atingida, Ellen pulou de cima das caixas e rolou pelo chão. Com mais quatro golpes seguidos, o mutante abriu uma nova entrada ligando as duas salas.
Ellen levantou, retirou um pouco da poeira acumulada em seu vestido e observou a palma de sua mão. Os cortes que ela havia feito há poucos segundos atrás estavam se curando gradualmente, como mágica, restando apenas o sangue fresco em suas mangas.
— É bom você se apressar, Owen.
Ela levantou sua saia e retirou um pequeno objeto branco e azul com formato retangular da bainha presa em sua perna. Seu Sensorium. Ellen apertou um dos botões do equipamento, e no mesmo instante uma longa corda dourada foi lançada para fora. Aquele instrumento havia se tornado um chicote.
— Vamos começar o baile?
Assim que deu o primeiro passo dentro da nova sala a criatura rugiu e imediatamente correu em disparada. Em resposta Ellen bateu a ponta de seu chicote contra o chão e abriu os braços, como se o desafiasse para um duelo, deixando um sorriso confiante tomar seu rosto.

***



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