Eu
estou sozinha. Num mundo escuro. Num mundo pequeno. Ao longe posso ouvir uma
voz. Uma voz que chama desesperadamente o meu nome. Meus braços e pernas estão
presos por correntes, e mesmo que eu olhe ao redor não posso ver ninguém.
Apenas escuridão. Um floco de neve cai do alto deste lugar e se derrete no
calor do meu rosto. Eu já estive do lado de fora. Num mundo cheio de cores,
onde eu era livre. Mas, por causa de uma vontade que não posso controlar, agora
estou aqui.
Sozinha.
Sozinha.
Nesse
mundo escuro. Nesse mundo pequeno.
Onde
a primavera nunca chega.
. . .
— Ei, aquele ali é o garoto transferido, não é?
— Sim. Ouvi dizer que ele
foi muito mal em quase todas as provas que fez.
— Claro, né? Ele vive
cabulando todas as aulas!
. . .
— Eu ouvi dizer que ele
não tem nenhum amigo.
— Eu hein, que cara esquisito!
— Você devia ficar longe,
ou vai acabar pegando a esquisitice dele!
Eu posso ouvir, sabiam? De vários
cantos da sala, várias vezes por dia, vários dias na semana. Eu sempre consigo
escutar quando sou o assunto das conversas. Aquelas duas garotas falando sobre
minhas notas, aquele trio de idiotas me chamando de esquisito. Vocês são o quê,
crianças? Que piada mais idiota! Que raiva... Do que eles sabem? Eles não sabem
de nada... E mesmo assim, de alguma forma, isso está me incomodando... Droga...
Eu acordei do meu transe quando o
sinal invadiu as salas e ecoou por toda a escola. O professor havia deixado
algumas notas no quadro para que anotássemos e lia calmamente um livro enquanto
esperava o fim da aula. Ele marcou a página em que havia parado de ler e se
levantou para se despedir da turma.
— Por hoje é só.
Certifiquem-se de ter anotado tudo e não se esqueçam de ler os capítulos do
livro para a próxima aula.
Eu me apressei para recolher as coisas
e saí apressado da sala. Todos olharam pra mim, como sempre. Eu não me
importei. Tinha coisas mais importantes pra fazer. Todos aqueles olhares me
reprimindo. Mas ninguém entendia. Ninguém sabia.
Ninguém.
Atravessei os corredores e desci as
escadas. Depois da próxima curva era apenas uma linha reta até a saída do
prédio. Eu virei a esquina do corredor, mas fui surpreendido por uma barreira
que nunca antes estivera ali.
— Ugh!
Ai.
A força do choque me derrubou.
Enquanto eu tentava recobrar os sentidos, acabei notando que a barreira na qual
eu tinha me chocado era na verdade uma pessoa. Um garoto da minha idade, de
cabelos brancos. Ele era maior e mais forte, mas tinha um rosto amigável. Eu
comecei a me levantar. Acho que vou tentar me desculpar e...
— Olha por onde anda!
Ou não. O rosto amigável tomou uma
expressão de raiva e frustração. Parando pra pensar, acho que parecia mais de
uma vergonha mal contida por ter caído. Um outro garoto de cabelos vermelhos
apareceu rindo com um sorriso caloroso.
— Vamos, Kai, não seja tão
briguento. Ei, você, você está bem?
— Ah, bom...
Nenhum osso quebrado e
minha cabeça parece estar no lugar. É, acho que sim.
— Estou.
Eu me levantei um segundo depois do
garoto que tinha esbarrado em mim. Ele ainda parecia frustrado com a situação,
então eu resolvi continuar com meu pedido de desculpas.
— Desculpe, eu vou ter
mais cuidado da próxima vez.
Ele pareceu querer abrir a boca pra
falar algo, mas se acalmou e olhou para o lado para desviar do meu olhar.
— Tudo bem, contanto que
não aconteça de novo.
Pronto. Situação resolvida. Agora
posso seguir meu rumo. Continuei andando pelo corredor, mas a voz do garoto de
cabelo vermelho me chamou novamente.
— Ei, você é aquele
estudante transferido, não é?
Droga. Ele me reconheceu. Agora tinha
certeza que falaria algo para zombar de mim por causa... Bom, havia uma série
de motivos.
— Parece que não fomos
muito bem nos testes, não é? É mais difícil do que parece, não sei como os
outros conseguem.
Isso me surpreendeu. A escola era bem
conhecida por manter seus alunos num nível um tanto quanto acima da média. Além
disso, era bem difícil entrar na escola, era necessário ter um desempenho
diferenciado ou um alguém que te indicasse. Geralmente pais influentes ou algo
assim. A maioria dos estudantes tirava boas notas, por isso sempre teriam como
se vangloriar com os piores da escola. Não que eu seja burro ou algo do tipo...
Pelo menos eu não acho que seja, mas eu não tenho muito... tempo. De qualquer
forma, minha linha de pensamento acabou não me deixando pensar numa resposta
adequada para a situação e o garoto foi quem continuou a conversa.
— Seu nome é... Al... Al...
— Alkaev Makoto.
É um nome complicado. Alkaev é um nome
russo que significa "Desejo". É difícil para a maioria dos Japoneses
pronunciá-lo perfeitamente. Eu sorri. É um nome um tanto quanto constrangedor, mas
me orgulho dele. Ainda assim, decidi tornar a vida do garoto mais fácil.
— Pode me chamar de Makoto.
O garoto sorriu. Parecia ser uma
pessoa amigável. Um cordeiro no meio de lobos. Ele se apresentou em seguida.
— Meu nome é Nekogami Akakyo. E o esquentadinho do meu lado é Osakura. Osakura
Kaioshi. Prazer.
Eu sorri.
— Prazer.
Nekogami. Osakura. Certamente
lembrarei.
— Desculpem, mas estou com um pouco de pressa, então... Nos falamos
depois.
— Ah, entendi.
Ele fez uma cara de desapontamento,
mas logo em seguida aceitou a ideia. Talvez ele se perguntasse qual era o
motivo da minha pressa, mas antes que ele pudesse fazer isso eu já estava me
virando e me despedindo
—Até mais!
Eu corri apressado para recuperar os
segundos perdidos. Eu ainda pude escutar os dois conversando enquanto viravam a
esquina do corredor.
— Então, a próxima aula é de que?
— Bom, acho que é de...
. . .
O dia estava ensolarado. Isso fez com
que eu suasse e me cansasse mais do que o esperado. Eu parei pra dar duas boas
e longas respiradas antes de entrar pela porta. Girei a chave e então estava
dentro da casa. Uma casa moderna que quase não lembra os padrões japoneses
tradicionais. Descalcei os sapatos e fui direto pro quarto da minha irmã.
Minha irmã sofre de uma
doença desconhecida. Ela não tem os movimentos na maior parte do corpo. Ela apenas
consegue mover-se o suficiente para me permitir cuidar de suas necessidades
básicas, como mastigar, por exemplo. Ela também consegue mover seus olhos e
seus lábios. No início eu conseguia ler seus lábios para saber o que ela dizia,
mas com o tempo ela acabou se esquecendo como se diziam as palavras, ou
simplesmente perdeu o domínio que tinha da sua boca. É cruel. Às vezes eu sinto
como se ela quisesse desesperadamente dizer algo mas não conseguisse.
— Onee-chan, desculpe por te acordar.
Ela sorriu como se não se importasse.
— Certo...
Eu a carreguei nos braços e a levei
até o banheiro para lavar seu rosto e ajuda-la com tudo o mais que precisasse. Talvez
achassem inapropriado que o irmão acabasse ajudando a irmã com certo tipo de
coisa, mas era algo tão rotineiro que eu já não me importava. Eu a levei de
volta para a cama, fiz uma pilha de travesseiros e deixei ela encostada ali,
sentada. Fui até a cozinha e lhe trouxe um copo d'água, que despejei com
cuidados sobre seus lábios para que bebesse. Coloquei o copo quase vazio sobre
a bancada e ela sorriu agradecida.
— Eu vou preparar o
almoço. Já volto.
Eu liguei a pequena TV que ficava de
frente para a cama. Estava passando o programa preferido de Shizuka: Um anime³
chamado Musical Peach. Era um anime onde garotas ganhavam poderes especiais
dependendo da música que estavam escutando. O traço era um tanto infantil,
assim como a estória, mas ela sempre parecia feliz quando assistia. Eu sorri
enquanto deixava a porta entreaberta.
Fui até a cozinha e comecei a preparar
o almoço. Fiz ovos mexidos, arroz, e tive o maior cuidado em checar três vezes,
procurando por espinhas no peixe desfiado. Já haviam acontecidos acidentes
algumas vezes por causa disso e eu nunca parei de me sentir culpado. Adicionei
um pouco de salada picada com tomates, cenouras e batatas e despejei um pouco
de suco de laranja num copo. Fui até o quarto dela e como sempre ela estava no
mesmo lugar que eu a deixei. Ela sorriu quando me viu entrar. Ver Shizuka sempre
me colocava pra cima. Eu sorri e arrisquei um pouco de inglês para melhorar o
humor.
— Today the menu is rice,
fish, eggs and salad.
Minha pronúncia com certeza foi atropelada e totalmente equivocada,
embora eu não saiba dizer exatamente aonde. Minha frase foi seguida de um gesto
refinado e de uma reverência, e eu pude ver o sorriso de Shizuka aparecendo
quando levantei a cabeça. Eu me sentei ao seu lado na cama e
comecei a dar colheradas da comida para ela. Ela comia devagar. Eu ainda
procurei mais duas vezes por espinhos no peixe, mas não havia nenhum.
Ainda bem.
Quando eu terminei, dei o suco pra ela
devagar. Ela bebeu, satisfeita.
— Você precisa de
mais alguma coisa?
Eu sabia que ela não poderia mover seus
lábios pra dizer sim ou não, mas bastava olhar em seus olhos pra saber a
resposta. Era um não.
— Ok, certo então!
Agora faltava pouco. Eu havia perdido
o último período, mas se corresse chegaria a tempo para o almoço e poderia
acalmar minha barriga que estava protestando violentamente. Eu fui até o
banheiro e passei pasta na escova de Shizuka, escovando seus dentes com
cuidado. Depois fiz com que ela cuspisse no copo vazio de suco e usei o resto
do copo d'água para que ela enxaguasse a boca. Levei tudo para a cozinha, onde
coloquei sobre a pia, que já acumulava uma pilha de louça suja. Eu suspirei.
Isso vai dar um trabalhão...
Eu tive a certeza de deitar Shizuka
numa posição diferente da que ela estava. Eu já estou acostumado com as
posições indicadas para evitar problemas circulatórios e musculares, e venho
fazendo isso sempre que venho correndo da escola, então é algo bem rotineiro. Eu
peguei o que precisava depressa e saí de casa. No meio do caminho, algo inesperado
me atingiu. Chuva.
Droga, droga, droga, droga!
Eu comecei a correr, tentando proteger
a cabeça inutilmente com um pedaço de papelão que encontrei no meio da rua.
Quando cheguei à escola, estava
ensopado. Eu tirei os sapatos e troquei as meias, mudando pros sapatos de
interior. Eu esperei um pouco antes de caminhar pelos corredores, para que a
água pudesse escorrer. O período de almoço estava quase acabando. Considerando
o quão cheio sempre fica o refeitório eu não vou conseguir comer algo a tempo
do próximo período...
Eu fui até o vestiário para terminar
de me secar. Abri meu armário na esperança de ter guardado alguma roupa para
trocar, mas não havia nada lá. Eu suspirei. Talvez eu devesse ser mais
precavido.
— Haha, parece que alguém tomou um banho.
Eu ouvi uma voz familiar. De onde era
mesmo? Eu me virei e então ficou claro.
Eram
os dois garotos que eu havia conhecido mais cedo. Eles estavam vestindo suas
roupas de ginástica. Só posso concluir que ginástica é o próximo período deles.
Quem havia falado era o garoto briguento de cabelos brancos. Osakura Kaioshi.
Nekogami, o de cabelos vermelhos, continuou.
— Não fique zoando ele, Kai. Não se esqueça de que temos corrida agora.
Considerando a personalidade do Tachibana-sensei4 eu duvido que ele
vá nos liberar por causa de uma chuvinha.
— Eu sei! Eu sei muito bem... Droga...
Ele coçou a cabeça, irritado. Então,
como se um estalo mental o tivesse atingido, ele levantou o semblante com uma
ideia.
— Ei, Akakyo, vamos matar aula.
— Ehh? Mas já estamos até trocados!
— Eu sei, mas você realmente quer ir lá fora com essa chuva?
— Você já está com má fama com o conselho estudantil, quer realmente
começar a matar aula agora?
— Ah, vamos! Não temos nenhum problema com ginástica, não acho que uma
única falta vá fazer tanta diferença...
De alguma forma, acho que acabei sendo
esquecido na conversa. Eu fechei discretamente o armário e me preparei para
sair dali, mas fui chamado pela voz de Akakyo.
— Ah, Makoto-kun. Você foi embora no último período não foi?
— Hum? Eu? Ah, bom...
As palavras se atropelaram e eu não
consegui bolar uma resposta decente. Osakura foi o próximo a falar.
— Ah, é, Makoto! Você matou aula no último período e também experimentou
essa chuva! Convença ele que não precisamos ir lá fora!
Eu ponderei um pouco. Realmente o
tempo não estava muito bom e eu mesmo não sei se iria à aula se forçado sob
essas condições... Mas como eu já estava a meio caminho da escola não tive
muita escolha. Enquanto eu pensava, Nekogami, que parecia estar fazendo o mesmo, pareceu aceitar à
ideia.
— Ah... Tudo bem, tudo bem. No entanto o Makoto-kun terá que vir com a
gente.
gente.
— Quem, eu?
Eu não estou em condições
de ficar faltando aulas dessa forma. Minhas notas não param de cair e eu temo
pelo meu futuro se as coisas continuarem assim... No entanto, antes que eu pudesse recusar a
proposta, meu estômago, que pareceu achar o momento muito oportuno, roncou
ferozmente, fazendo com que meu rosto corasse em resposta. Que embaraçoso...
— Haha! Pelo visto você não almoçou também!
Nekogami deixou escapar um riso e
sorriu em seguida.
— Vamos, vamos, o Kai vai te pagar algo pra comer.
Sua velocidade de se trocar me
surpreendeu e ele já estava com o uniforme normal da escola antes que eu
pudesse perceber o que havia acontecido. Osakura se dobrou para frente em
protesto, mas Nekogami já estava caminhando em direção à porta.
— Hã, eu que vou pagar!? Ei, Akakyo, volte aqui!! Eu ainda estou com meu
uniforme de ginástica!
Eu pensei novamente em aguentar a fome
e recusar a proposta, mas meu estômago percebeu meu pensamento e me impeliu com
outro ronco furioso.
É... Acho que no fim das contas, o
presente é mais importante que o futuro.
. . .
Eu e Akakyo chegamos primeiro à máquina
de vendas que ficava no exterior da escola. Felizmente, ela ficava numa área
coberta então o máximo que nos molhamos foi com os pingos trazidos pelo vento.
Kaioshi chegou alguns minutos depois. No fim eu acabei comprando meu próprio
macarrão instantâneo da máquina. Eu abri e assoprei para dissipar o calor. Em
seguida peguei os palitos que acompanhavam e recitei o mantra antes da
refeição.
— Obrigado pela comida...
Eu comecei a comer. O calor do
macarrão serviu para aquecer meu corpo
resfriado. Era uma
sensação boa. Eu abri a boca e um vapor saiu dela, se dissipando no ambiente.
Osakura havia se sentado ao lado da
máquina, enquanto Nekogami estava apoiado na parede, com o joelho esquerdo
dobrado. Por minha vez, eu estava comendo em pé, enquanto olhava a chuva. Os
dois haviam iniciado todas as conversas até agora, então eu achei que era minha
obrigação fazer isso em seguida. Eu terminei de engolir a porção de macarrão
que estava na boca e me virei para os dois.
Nada. Não consegui pensar em nada para
dizer. Aqueles dois poderiam ser meus primeiros - e talvez os únicos - amigos
naquela escola, e eu tenho que admitir que estava um pouco nervoso. Os dois
olharam pra mim e Nekogami perguntou.
— O que foi?
— Então... Vocês são amigos há muito tempo?
Que pergunta mais... Não consigo
encontrar um adjetivo para demonstrar minha decepção.
— Quem disse que somos amigos? Ele é meu escravo.
Osakura falou, convencido, e Nekogami
apenas sorriu.
— Essa doeu.
Parece que minha pergunta ficou sem
resposta definitiva, mas o jeito que eles lidaram com isso serviu para me
deixar mais descontraído.
A pergunta veio do rapaz de cabelos
brancos.
— Alkaev. Isso é o que, italiano?
— Ah, bom... Eu nasci no Japão, mas meu pai é russo... Por isso é um
pouco complicado dizer o que eu sou. Mas de alguma forma meu pai acabou
deixando nos registros a nacionalidade japonesa, por isso acho que posso
considerar que sou japonês.
A resposta longa pareceu não importar
muito para Osakura, que simplesmente se satisfez com as palavras
"russo" e "japonês".
— O que seu sobrenome quer dizer?
Agora foi a vez do garoto de cabelos
vermelhos de se dirigir a mim.
— Ah, bom... Alkaev quer dizer desejo em russo.
Ele pareceu compreender.
— Entendi. Alkaev Makoto. É um bom nome.
Ele disse isso por que Makoto quer
dizer sinceridade. Em outras palavras, meu nome significa "desejo por
sinceridade". Eu não consegui deixar de pensar no nome de Shizuka, que
significa "desejo por quietude." Meu olhar desceu em direção ao chão
enquanto eu concordava.
— É... É um bom nome.
Eles pareceram notar minha mudança de
humor. Eu não poderia ficar com o humor pra baixo perto deles, portanto eu
forcei um sorriso torto e tratei de me animar.
Nós continuamos conversando pelo resto
do período. A chuva parou e agora apenas algumas gotas escorriam e pingavam.
Nos despedimos e fomos para nossas respectivas salas.
Aqueles dois eram incrivelmente
amigáveis. Agora a escola já não parecia mais um ambiente hostil, embora minha
sala de aula ainda fosse indiscutivelmente desconfortável. Apesar disso, eu me
esforcei para continuar prestando atenção nas aulas pelo resto do dia.
. . .
Assim que as aulas terminaram, eu
tentei encontrar aqueles dois, mas acabei não conseguindo. Acho que não tenho
escolha senão desistir e ir pra casa sem me despedir. Eu cruzei o portão da
escola e caminhei até em casa. O sol estava começando a se por, e isso causava
um efeito bonito nas ruas da cidade. Eu continuei caminhando. Lá está. A última
esquina na qual eu tenho que dobrar. Eu suspirei aliviado que o trajeto
cansativo estava quase acabando, mas fui pego de surpresa pela visão que
apareceu na minha frente.
Em frente à porta da minha casa,
estava uma garota de cabelos loiros, trajando um uniforme escolar diferente do
meu. Na minha escola as garotas usavam um casaco preto e saia vermelha,
acompanhado de uma gravata também avermelhada. No entanto o uniforme daquela
garota consistia de um suéter de cor bege sobre uma camisa branca, uma saia
azul e sem gravata. Como se orquestrado, um raio de sol iluminou o rosto dela
levemente por alguns segundos, e em seguida ofuscou minha visão. Quando eu abri
os olhos, nossos olhares se cruzaram. Agora que eu podia ver o rosto dela um
pouco melhor, ela parecia incrivelmente familiar.
Aquela garota...
— Nanami?
Ela abriu um largo sorriso, como se
esperasse que eu a reconhecesse, ou como se estivesse esperando uma confirmação
de que aquele era realmente eu. Ela caminhou depressa na minha direção, e eu
acabei caminhando na direção dela também. Nós nos abraçamos e eu não pude
evitar sorrir também.
Suzuyama Nanami. Quando éramos
menores, costumávamos brincar sempre.
Eu, ela e Shizuka.
A verdade é que não nos vemos há muito
tempo. Eu me mudei pra casa dos meus tios quando tinha 10 anos. Quando Shizuka
começou a adoecer, nossa cidade ainda não era muito grande... Não tínhamos
muitos médicos, então meus pais tiveram que ir até a cidade mais próxima para
trazer um especialista.
No entanto...
Naquele dia, uma tempestade acabou
caindo no meio do caminho. Eu não sei bem como aconteceu, mas provavelmente a
chuva e a pressa fizeram com que meu pai perdesse o controle do carro. Meu pai
e minha mãe acabaram morrendo no acidente. Como eu era muito pequeno para viver
sozinho, acabei me mudando. Foi duro... Na mesma época, perder meus pais, minha
melhor amiga e ter que ver Shizuka ficar pior e pior a cada dia.
Não
que Shibuya fosse um lugar ruim, mas
eu estava com um estado emocional abalado demais para gostar de lá. Eu odiava
aquele lugar com todas as minhas forças. Shizuka ficava cada vez mais
debilitada e depois de alguns meses eu ouvia brigas constantes de meus tios.
Minha tia, que não tinha nenhum parentesco de sangue com minha mãe, não queria
ter que ter que assumir a responsabilidade de cuidar da gente. Meu tio, no
entanto, insistia para que eles ficassem conosco. Depois de um tempo eles
queriam deixar Shizuka num hospital, onde poderiam cuidar melhor dela. Mas eu
nunca concordei com isso. Eu nunca confiaria que pessoas estranhas pudessem
cuidar melhor da minha irmã do que eu. Desde cedo eu ajudava ela com tudo que
podia. Por fim, quando minha tia engravidou, meu tio se viu num beco sem saída,
em questões de responsabilidade e dinheiro. Acabamos indo morar com meus avós.
Meus avós eram pessoas muito gentis e
atenciosas. Eles nos ajudaram muito e foram bem compreensivos. Eu já estava
mais maduro e menos rebelde. De certa forma, eu começava a compreender a
situação de meus tios depois que algum tempo passou. A cidade em que ficamos
era menor que Tóquio, mas ainda assim maior que nossa cidade natal. Todo esse
tempo eu passei tão focado em cuidar de Shizuka que quase não fiz nenhuma
amizade. E mesmo assim, quando meus avós
morreram e eu voltei pra cá, nenhuma foi tão forte a ponto de se manter viva.
Minhas
responsabilidades aumentaram muito. Tanto que eu não consegui acompanhar o
passo. Os pratos vivem sujos e a maior parte da casa está um caos. Além disso,
minhas notas na escola não param de cair e não consegui fazer nenhum amigo.
Bom, até pouco tempo, quando aqueles dois falaram comigo, embora eu não saiba
se posso chamá-los de "amigos" ainda.
Ah, eu viajei um pouco no passado
agora. De qualquer forma, o abraço foi longo o suficiente para que eu pudesse
voltar à realidade a tempo. Quando terminamos, um olhou pra cara do outro sem
saber muito bem o que dizer. Quando notamos nossas expressões pensativas, ela
riu e colocou a mão na frente da boca, enquanto eu fiz o mesmo enquanto coçava
a cabeça.
—Faz bastante tempo...
— É...
Ela olhou pra minha casa como se
lembrasse de algumas coisas, então olhou pra mim emburrada.
— Que história é essa de Nanami?
— Ah, desculpe, Nana.
Eu sorri ao me lembrar do apelido de
infância dela. Ela fez o mesmo, acompanhado de um "Hihi".
— Como está a Shizu-chan?
Eu olhei para a casa também. Como eu
vou dizer isso pra ela? Eu olhei de volta pra seu rosto e seus olhos verdes
estavam me fitando. Eu não consegui dizer enquanto olhava diretamente para
eles.
— A condição dela piorou...
— Essa não...
Ela olhou pra porta com os olhos
cheios de lágrimas. Eu não quero ver um rosto que estava feliz agora a pouco
triste daquele jeito.
—Mas ela está bem!
Que controverso...
— Quero dizer... Vai ficar tudo bem. Ela está estável faz um ano. Além disso,
eu estou cuidando dela, então vai dar tudo certo!
Eu apontei meu polegar pra mim mesmo e
sorri com uma cara convencida. Ela sorriu, mas visivelmente continuou insegura.
A verdade é que eu também estou inseguro. Eu nunca sei se ela vai piorar ou
não. Se ela piorar a ponto de não conseguir nem suprir suas necessidades
básicas sem ajuda de máquinas eu não vou poder mais ficar com ela...
Eu não quero isso.
Eu olhei para Nana, dessa vez
prestando melhor a atenção nela. Ela cresceu bastante, mas ainda assim é menor
do que eu. Eu me lembro que ela se vangloriava de ser maior que eu quando
éramos pequenos, mas agora eu tinha passado dela. Ela também ficou muito
bonita. Suas curvas ficaram bem desenhadas e seus seios...
Aah!
Vai ser um problema se ela me pegar
olhando, então eu desvio o olhar. Mas, sério... Ela se tornou uma garota muito
bonita. Shizuka também. Mesmo sendo magra e tendo pernas e braços finos, seu
rosto deve estar entre os mais bonitos que já vi. Ela se parece muito com nossa
mãe, embora nossa mãe tivesse cabelos castanhos, da cor dos meus.
Meus olhos são como os do meu pai. Ele
tinha olhos cor de mel, bem claros, quase amarelos, e eu herdei isso dele. Em
contrapartida, Shizuka herdou os cabelos brancos dele. É uma cor bastante rara,
mas há mais chances de ocorrer de pai pra filho.
Novamente eu tinha viajado em meus
pensamentos. Nanami estava olhando para mim. Já tínhamos ficado em silêncio por
alguns segundos. Eu resolvi quebrar o silêncio com um convite.
— Você quer vê-la?
Os olhos dela se iluminaram com minhas
palavras.
— O quê? Posso mesmo?
— Claro!
. . .
Eu esqueci desse detalhe...
Estamos dentro de casa. Eu fiquei
totalmente sem graça com a bagunça e a sujeira que estavam os cômodos. Nana fez
uma reação exagerada enquanto passava o dedo num móvel.
— Uaaah! Incrível, Makoto, você deve ter quebrado algum tipo de recorde!
Há quanto tempo você não limpa isso?
— Cale a boca.
Eu olhei para o lado. Não queria ter
que levar broncas dela como quando eu era pequeno. Eu cruzei a distância do
corredor até o quarto de Shizuka e abri a porta devagar.
Como sempre, ela estava exatamente
onde eu a deixei. Ela estava na cama, coberta por seu lençol azul. Eu toquei
sua bochecha com o indicador para chamar sua atenção. Suas pálpebras tremeram e
seus olhos azuis se abriram e se viraram na minha direção.
— Irmã, você tem visita.
Sua boca se abriu um pouco e suas sobrancelhas
fracamente se ergueram num gesto de indagação. "Quem poderia ser?" É
o que provavelmente ela pensou. Eu fiz sinal para Nana, que vacilantemente foi
caminhando até se apoiar na parede da porta do quarto. O sorriso de Shizuka se
abriu instantaneamente. Eu pude ver lágrimas se formando nos olhos dela.
Aconteceu o mesmo com os olhos de Nana, que da porta correu para a cama, se
debruçando num abraço desajeitado sobre minha irmã.
— Shizu-chan!
Eu podia ver o quanto Nana queria
chorar como um bebê. No entanto ela se conteve e se afastou para olhar nos
olhos de Shizuka.
— Eu senti sua falta, Shizu-chan!
Eu fechei os olhos enquanto sorria e fui
fechando a porta do quarto devagar à medida que saía.
Aquela era uma cena que eu nunca iria
esquecer.
. . .
Incrível...
Nanami está conversando até agora com Shizuka... Eu entendo que elas não se
falam há muito tempo, mas uma conversa unilateral devia ter acabado há muito
tempo.
Realmente incrível.
Realmente incrível.
Eu
carreguei a bacia com água morna e um pano até o quarto. Passei pela porta com
dificuldade. Nana não parou de falar até notar que eu carregava a bacia, e
olhou pra mim se perguntando para que era.
— Ah, eu vou dar banho na Shizuka agora.
— Ei...
Ela,
que estava de joelhos, se levantou com uma mão sobre o peito e olhou nos meus
olhos.
— Eu posso ajudar?
— Huh?
Isso
foi inesperado. Eu olhei pra Shizuka como se esperasse uma confirmação. Sua
expressão continuou calma e serena. Era como se ela me dissesse: "Se for a
Nana tudo bem."
— Sim, claro. Eu vou buscar outro pano.
. . .
Quando eu voltei nós tiramos a roupa
de Shizuka e passamos o pano molhado sobre seu corpo. Eu evitava leva-la para o
chuveiro por vários motivos. Primeiro por que seria muito trabalhoso dar banho
nela enquanto a carregava, segundo por que ela poderia acabar se afogando.
Melhor fazer disso algo esporádico.
O procedimento de banhar alguém nessas
condições é mais demorado e cansativo, mas com duas pessoas acabou ficando mais
rápido. Eu aproveitei para massagear os músculos dela. A massagem é importante
para os músculos se manterem saudáveis. Nanami me pediu para que eu a
ensinasse. Ela pega o jeito rápido.
Por fim, aproveitando a ajuda extra,
nós enchemos um balde mais fundo com água e lavamos o cabelo dela. Eles são bem
longos , por isso levou um tempo. A vestimos com um vestido azul claro de seda.
Nana fez algumas tranças no seu cabelo e as amarrou com um laço. Shizuka ficou
tão linda que mal podia acreditar que eu era parente dela.
Eu me estiquei depois de todo o
trabalho, para diminuir a dor dos músculos enrijecidos. Eu convidei Nanami para
jantar. Ela aceitou, mas insistiu em ajudar a preparar a comida. Achamos alguns
aventais velhos e colocamos para cozinhar. Estávamos fatiando alguns legumes na
cozinha quando eu imaginei que deveria puxar algum assunto.
— Hum... Seu uniforme.
— Huh? O que tem ele?
— É bonito. Quero dizer, você fica bem nele.
— Ah... Obrigada.
Acho que, se é que ela ficou vermelha,
eu acabei ficando mais.
Droga, pense em algo pra falar, homem!
— Como está sua escola?
Ai!
Eu coloquei o dedo sangrando na boca.
Ela parou de cortar e percebeu que tinha algo errado. Droga, como ela chegou
nesse assunto? Cabeça dura! Eu tinha que vir com a história do uniforme...
Eu desviei o olhar e respondi.
— Nada demais...
— A verdade.
Ela tinha que ser tão astuta...
— Não muito bem... Um desastre, na verdade.
— Eu sabia.
Eu me ofendi um pouco. Não é como se
eu tivesse cara de retardado ou algo do tipo...
— Você tem que cuidar da Shizuka e tudo o mais, é de se esperar que
esteja indo mal na escola.
Eu concordei em silêncio.
— Você fez amigos?
— Aah! Bom...
Houve uma pequena pausa.
— Acho que... Sim...
Ela sorriu.
— Entendi. Isso é bom.
Nós juntamos todos os legumes e as
verduras num prato. Eu geralmente sou organizado quando preparo a comida pra
Shizuka, mas a decoração de Nanami era muito melhor. Eu deixei que ela cuidasse
do prato e fui cuidar do arroz.
— Acho que não vai fazer mal se eu vier aqui de vez em quando.
— Huh?
Eu olhei pra ela. Não quero trazer
problemas desnecessários pra ninguém... Acho que é uma das razões de eu ter
feito tudo sozinho até agora.
— Não, você não precisa...
— Mas eu quero! Sabe... Eu sempre me senti culpada por não ter feito nada
naquela época... De verdade, eu quero ajudar.
Eu olhei pro arroz para evitar dar uma
resposta.
— Por favor.
Eu olhei pra ela. Que erro. Seus olhos
estavam brilhando intensamente, mergulhados numa feição de imploração, tanto
que me assustou. Era como tentar negar carinho a um filhote.
— Tudo bem, se for só de vez em quando. Duas vezes por semana, no máximo.
— Sim, tudo bem!
Ela se voltou animada para o que
estava fazendo. A verdade é que eu me senti aliviado. Um pouco de ajuda de vez
em quando não ia fazer mal. Eu ia ter um pouco mais de tempo pra estudar, às
vezes, quem sabe, até sair. Embora eu não estivesse totalmente certo em deixar
Shizuka com outra pessoa, ainda que fosse Nanami, era algo que eu tinha que
estar disposto a dar uma chance. Até mesmo pelo nosso futuro.
. . .
Nós levamos o jantar já pronto até a
cama de Shizuka. Nanami pediu para cuidar de dar a comida à Shizuka. Eu não
tive objeções. Eu experimentei uma garfada da carne e...
Incrível!
Minhas bochechas coraram de prazer no
mesmo momento. Faz tempo que eu não como algo tão gostoso!
Eu sempre cuido de dar uma alimentação
saudável à Shizuka, mas não tenho muito tempo pra cuidar da minha. Estou sempre
comendo comidas instantâneas, e raramente como algo preparado, ainda mais com o
cuidado que foi hoje. Demoramos cerca de 40 minutos comendo e conversando. Estávamos
lavando os pratos quando eu me dei conta do horário.
— Nana, não está tarde pra você ir pra casa?
— Uaah! É verdade! Eu tenho que ir correndo!
Ela tirou o avental e deixou de lado o
prato que estava lavando.
— Minha mãe vai me matar!
Ela fez uma cara chorosa.
— Eu vou com você!
Eu corri até o quarto de Shizuka e
apareci apenas com a parte superior do corpo pela fresta da porta.
— Shizuka, eu vou levar a Nana em casa e volto correndo!
Ela apareceu atrás de mim logo em
seguida.
— Sim! Bye-bye, Shizu-chan!
. . .
Fomos correndo até a estação mais
próxima, onde pegamos um trem para a zona norte da cidade. Nana falou o tempo
todo dos tipos de punição que sofreria ao chegar em casa. Eu não lembrava que a
mãe dela era tão assustadora assim. Que medo.
Depois de algumas dezenas de minutos
finalmente chegamos. Eu ainda caminhei com ela até a porta de sua casa, embora
ela insistisse para eu não vir.
— Você não precisa vir. Você tem que voltar logo pra casa por causa da
Shizu-chan.
— Tudo bem, não vai demorar muito.
No fim das contas, depois de tudo que
ela fez, era o mínimo que eu podia fazer.
Finalmente chegamos a casa dela. Ela
havia se mudado de onde ela morava antigamente. Agora, a casa era maior e mais
bonita. O jardim era impecável. Eu lembro que também era assim na antiga casa
dela, e que quando brincávamos nele a mãe dela sempre brigava com a gente.
Ela se virou após subir alguns degraus
e acenou pra mim.
— Até mais, Makoto.
— Sim, até mais, Nana.
Ela entrou e fechou a porta depressa.
Eu ainda fiquei olhando alguns segundos para a porta, lembrando dos momentos
que passamos quando éramos crianças. Eu lembro que sempre brincávamos de
casinha.
Eu comecei a caminhar na direção da
estação.
Shizuka e Nanami sempre brigavam pra
saber quem seria o pai. Eu sempre acabava sendo o filho, mas de vez em quando
eu era a esposa. Droga, como eu queria ser o pai...
Eu lembro que em certa ocasião
combinamos algo...
Cada um tinha que prometer alguma
coisa e cumprir pelo resto da vida.
Eu lembro fui o primeiro e logo no
início falei algo idiota.
— Eu vou salvar o mundo!
Uma vez, quando minha irmã ralou a
perna, Nanami fez a promessa dela.
— Eu vou sempre cuidar de vocês!
E quando íamos nos mudar para a casa
de nosso tios...
— Vamos estar sempre juntos...
...
Trilhos.
. . .
Eu estava bem perto da estação. Foi um
dia cheio.
— Ah, cara, eu tô exausto...
Eu suspirei. Nesse momento, uma
melodia tocou meus ouvidos. De onde está vindo isso? Eu virei em direção ao som
e vi a silhueta de uma garota em cima de um muro alto de uma casa japonesa
tradicional e bem antiga. Ela segurava um violão e dedilhava uma bela melodia.
Eu simplesmente
fiquei paralisado com a beleza da voz da garota... Não, de toda a cena. A luz
da lua cheia refletia claramente em seus olhos vermelhos e o vento batia
levemente em seus cabelos. Ela tomou o ar, provavelmente para entrar no refrão
da bela música, quando simplesmente parou e me fitou.
Nós nos olhamos
nos olhos. Minha boca se abriu involuntariamente.
Estou sem
palavras.
. . .
Chiharu - 01
Palavras.
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