Chiharu - Capítulo 01




Eu estou sozinha. Num mundo escuro. Num mundo pequeno. Ao longe posso ouvir uma voz. Uma voz que chama desesperadamente o meu nome. Meus braços e pernas estão presos por correntes, e mesmo que eu olhe ao redor não posso ver ninguém. Apenas escuridão. Um floco de neve cai do alto deste lugar e se derrete no calor do meu rosto. Eu já estive do lado de fora. Num mundo cheio de cores, onde eu era livre. Mas, por causa de uma vontade que não posso controlar, agora estou aqui. 

Sozinha.

Nesse mundo escuro. Nesse mundo pequeno.

Onde a primavera nunca chega.


. . .
               
­­­                                Ei, aquele ali é o garoto transferido, não é?

                                 Sim. Ouvi dizer que ele foi muito mal em quase todas as provas que fez.

                                 Claro, né? Ele vive cabulando todas as aulas!

. . .

                               Eu ouvi dizer que ele não tem nenhum amigo.

                               Eu hein, que cara esquisito!

                               Você devia ficar longe, ou vai acabar pegando a esquisitice dele!

                               Eu posso ouvir, sabiam? De vários cantos da sala, várias vezes por dia, vários dias na semana. Eu sempre consigo escutar quando sou o assunto das conversas. Aquelas duas garotas falando sobre minhas notas, aquele trio de idiotas me chamando de esquisito. Vocês são o quê, crianças? Que piada mais idiota! Que raiva... Do que eles sabem? Eles não sabem de nada... E mesmo assim, de alguma forma, isso está me incomodando... Droga...

                               Eu acordei do meu transe quando o sinal invadiu as salas e ecoou por toda a escola. O professor havia deixado algumas notas no quadro para que anotássemos e lia calmamente um livro enquanto esperava o fim da aula. Ele marcou a página em que havia parado de ler e se levantou para se despedir da turma.

                               Por hoje é só. Certifiquem-se de ter anotado tudo e não se esqueçam de ler os capítulos do livro para a próxima aula.

                               Eu me apressei para recolher as coisas e saí apressado da sala. Todos olharam pra mim, como sempre. Eu não me importei. Tinha coisas mais importantes pra fazer. Todos aqueles olhares me reprimindo. Mas ninguém entendia. Ninguém sabia.

                               Ninguém.

                               Atravessei os corredores e desci as escadas. Depois da próxima curva era apenas uma linha reta até a saída do prédio. Eu virei a esquina do corredor, mas fui surpreendido por uma barreira que nunca antes estivera ali.

                               Ugh!

                               Ai.

                               A força do choque me derrubou. Enquanto eu tentava recobrar os sentidos, acabei notando que a barreira na qual eu tinha me chocado era na verdade uma pessoa. Um garoto da minha idade, de cabelos brancos. Ele era maior e mais forte, mas tinha um rosto amigável. Eu comecei a me levantar. Acho que vou tentar me desculpar e...

                               Olha por onde anda!

                               Ou não. O rosto amigável tomou uma expressão de raiva e frustração. Parando pra pensar, acho que parecia mais de uma vergonha mal contida por ter caído. Um outro garoto de cabelos vermelhos apareceu rindo com um sorriso caloroso.

                               Vamos, Kai, não seja tão briguento. Ei, você, você está bem?

                               Ah, bom...

                              Nenhum osso quebrado e minha cabeça parece estar no lugar. É, acho que sim.



                               Estou.

                               Eu me levantei um segundo depois do garoto que tinha esbarrado em mim. Ele ainda parecia frustrado com a situação, então eu resolvi continuar com meu pedido de desculpas.
                               Desculpe, eu vou ter mais cuidado da próxima vez.

                               Ele pareceu querer abrir a boca pra falar algo, mas se acalmou e olhou para o lado para desviar do meu olhar.

                               Tudo bem, contanto que não aconteça de novo.

                               Pronto. Situação resolvida. Agora posso seguir meu rumo. Continuei andando pelo corredor, mas a voz do garoto de cabelo vermelho me chamou novamente.

                               Ei, você é aquele estudante transferido, não é?

                               Droga. Ele me reconheceu. Agora tinha certeza que falaria algo para zombar de mim por causa... Bom, havia uma série de motivos.

                               Parece que não fomos muito bem nos testes, não é? É mais difícil do que parece, não sei como os outros conseguem.

                               Isso me surpreendeu. A escola era bem conhecida por manter seus alunos num nível um tanto quanto acima da média. Além disso, era bem difícil entrar na escola, era necessário ter um desempenho diferenciado ou um alguém que te indicasse. Geralmente pais influentes ou algo assim. A maioria dos estudantes tirava boas notas, por isso sempre teriam como se vangloriar com os piores da escola. Não que eu seja burro ou algo do tipo... Pelo menos eu não acho que seja, mas eu não tenho muito... tempo. De qualquer forma, minha linha de pensamento acabou não me deixando pensar numa resposta adequada para a situação e o garoto foi quem continuou a conversa.

                               Seu nome é... Al... Al...

                               Alkaev Makoto.

                               É um nome complicado. Alkaev é um nome russo que significa "Desejo". É difícil para a maioria dos Japoneses pronunciá-lo perfeitamente. Eu sorri. É um nome um tanto quanto constrangedor, mas me orgulho dele. Ainda assim, decidi tornar a vida do garoto mais fácil.

                               Pode me chamar de Makoto.

                               O garoto sorriu. Parecia ser uma pessoa amigável. Um cordeiro no meio de lobos. Ele se apresentou em seguida.      


                               Meu nome é Nekogami Akakyo. E o esquentadinho do meu lado é Osakura. Osakura Kaioshi. Prazer.

                               Eu sorri.

                               Prazer.

                               Nekogami. Osakura. Certamente lembrarei.

                               Desculpem, mas estou com um pouco de pressa, então... Nos falamos depois.

                               Ah, entendi.

                               Ele fez uma cara de desapontamento, mas logo em seguida aceitou a ideia. Talvez ele se perguntasse qual era o motivo da minha pressa, mas antes que ele pudesse fazer isso eu já estava me virando e me despedindo

                               Até mais!

                               Eu corri apressado para recuperar os segundos perdidos. Eu ainda pude escutar os dois conversando enquanto viravam a esquina do corredor.

                               Então, a próxima aula é de que?

                               Bom, acho que é de...

. . .


                               O dia estava ensolarado. Isso fez com que eu suasse e me cansasse mais do que o esperado. Eu parei pra dar duas boas e longas respiradas antes de entrar pela porta. Girei a chave e então estava dentro da casa. Uma casa moderna que quase não lembra os padrões japoneses tradicionais. Descalcei os sapatos e fui direto pro quarto da minha irmã.

                               Eu abri a porta do quarto e lá estava ela, exatamente onde havia ficado quando eu saí. Deitada na cama, coberta por um fino lençol e recostada sobre um travesseiro que disputava a brancura com seus cabelos. Eu a descobri e passei a mão pelo seu rosto para acordá-la. Sua pele é como a neve, sensível ao ponto que parece que vai desmanchar ao simples toque. Ela abriu os olhos e me olhou com aqueles grandes e expressivos olhos azuis. Seu olhar cortou meu coração. Sempre cortava. Shizuka. Um nome que significa "Quietude". Uma maldição que ela foi obrigada a carregar consigo.                        


                               Minha irmã sofre de uma doença desconhecida. Ela não tem os movimentos na maior parte do corpo. Ela apenas consegue mover-se o suficiente para me permitir cuidar de suas necessidades básicas, como mastigar, por exemplo. Ela também consegue mover seus olhos e seus lábios. No início eu conseguia ler seus lábios para saber o que ela dizia, mas com o tempo ela acabou se esquecendo como se diziam as palavras, ou simplesmente perdeu o domínio que tinha da sua boca. É cruel. Às vezes eu sinto como se ela quisesse desesperadamente dizer algo mas não conseguisse.

                               Onee-chan, desculpe por te acordar.

                               Ela sorriu como se não se importasse.
                               Certo...

                               Eu a carreguei nos braços e a levei até o banheiro para lavar seu rosto e ajuda-la com tudo o mais que precisasse. Talvez achassem inapropriado que o irmão acabasse ajudando a irmã com certo tipo de coisa, mas era algo tão rotineiro que eu já não me importava. Eu a levei de volta para a cama, fiz uma pilha de travesseiros e deixei ela encostada ali, sentada. Fui até a cozinha e lhe trouxe um copo d'água, que despejei com cuidados sobre seus lábios para que bebesse. Coloquei o copo quase vazio sobre a bancada e ela sorriu agradecida.

                               Eu vou preparar o almoço. Já volto.

                               Eu liguei a pequena TV que ficava de frente para a cama. Estava passando o programa preferido de Shizuka: Um anime³ chamado Musical Peach. Era um anime onde garotas ganhavam poderes especiais dependendo da música que estavam escutando. O traço era um tanto infantil, assim como a estória, mas ela sempre parecia feliz quando assistia. Eu sorri enquanto deixava a porta entreaberta.

                               Fui até a cozinha e comecei a preparar o almoço. Fiz ovos mexidos, arroz, e tive o maior cuidado em checar três vezes, procurando por espinhas no peixe desfiado. Já haviam acontecidos acidentes algumas vezes por causa disso e eu nunca parei de me sentir culpado. Adicionei um pouco de salada picada com tomates, cenouras e batatas e despejei um pouco de suco de laranja num copo. Fui até o quarto dela e como sempre ela estava no mesmo lugar que eu a deixei. Ela sorriu quando me viu entrar. Ver Shizuka sempre me colocava pra cima. Eu sorri e arrisquei um pouco de inglês para melhorar o humor.

                               Today the menu is rice, fish, eggs and salad.

                               Minha pronúncia com certeza foi atropelada e totalmente equivocada, embora eu não saiba dizer exatamente aonde. Minha frase foi seguida de um gesto refinado e de uma reverência, e eu pude ver o sorriso de Shizuka aparecendo quando levantei a cabeça. Eu me sentei ao seu lado na cama e comecei a dar colheradas da comida para ela. Ela comia devagar. Eu ainda procurei mais duas vezes por espinhos no peixe, mas não havia nenhum.

                               Ainda bem.

                               Quando eu terminei, dei o suco pra ela devagar. Ela bebeu, satisfeita.

                               Você precisa de mais alguma coisa?

                               Eu sabia que ela não poderia mover seus lábios pra dizer sim ou não, mas bastava olhar em seus olhos pra saber a resposta. Era um não.

                               Ok, certo então!

                               Agora faltava pouco. Eu havia perdido o último período, mas se corresse chegaria a tempo para o almoço e poderia acalmar minha barriga que estava protestando violentamente. Eu fui até o banheiro e passei pasta na escova de Shizuka, escovando seus dentes com cuidado. Depois fiz com que ela cuspisse no copo vazio de suco e usei o resto do copo d'água para que ela enxaguasse a boca. Levei tudo para a cozinha, onde coloquei sobre a pia, que já acumulava uma pilha de louça suja. Eu suspirei.

                               Isso vai dar um trabalhão...

                               Eu tive a certeza de deitar Shizuka numa posição diferente da que ela estava. Eu já estou acostumado com as posições indicadas para evitar problemas circulatórios e musculares, e venho fazendo isso sempre que venho correndo da escola, então é algo bem rotineiro. Eu peguei o que precisava depressa e saí de casa. No meio do caminho, algo inesperado me atingiu. Chuva.

                               Droga, droga, droga, droga!

                               Eu comecei a correr, tentando proteger a cabeça inutilmente com um pedaço de papelão que encontrei no meio da rua.

                               Quando cheguei à escola, estava ensopado. Eu tirei os sapatos e troquei as meias, mudando pros sapatos de interior. Eu esperei um pouco antes de caminhar pelos corredores, para que a água pudesse escorrer. O período de almoço estava quase acabando. Considerando o quão cheio sempre fica o refeitório eu não vou conseguir comer algo a tempo do próximo período...

                               Eu fui até o vestiário para terminar de me secar. Abri meu armário na esperança de ter guardado alguma roupa para trocar, mas não havia nada lá. Eu suspirei. Talvez eu devesse ser mais precavido.

                               Haha, parece que alguém tomou um banho.


                               Eu ouvi uma voz familiar. De onde era mesmo? Eu me virei e então ficou claro.              

                              Eram os dois garotos que eu havia conhecido mais cedo. Eles estavam vestindo suas roupas de ginástica. Só posso concluir que ginástica é o próximo período deles. Quem havia falado era o garoto briguento de cabelos brancos. Osakura Kaioshi. Nekogami, o de cabelos vermelhos, continuou.

                               Não fique zoando ele, Kai. Não se esqueça de que temos corrida agora. Considerando a personalidade do Tachibana-sensei4 eu duvido que ele vá nos liberar por causa de uma chuvinha.

                               Eu sei! Eu sei muito bem... Droga...

                               Ele coçou a cabeça, irritado. Então, como se um estalo mental o tivesse atingido, ele levantou o semblante com uma ideia.

                               Ei, Akakyo, vamos matar aula.

                               Ehh? Mas já estamos até trocados!

                               Eu sei, mas você realmente quer ir lá fora com essa chuva?

                               Você já está com má fama com o conselho estudantil, quer realmente começar a matar aula agora?

                               Ah, vamos! Não temos nenhum problema com ginástica, não acho que uma única falta vá fazer tanta diferença...

                               De alguma forma, acho que acabei sendo esquecido na conversa. Eu fechei discretamente o armário e me preparei para sair dali, mas fui chamado pela voz de Akakyo.

                               Ah, Makoto-kun. Você foi embora no último período não foi?

                               Hum? Eu? Ah, bom...

                               As palavras se atropelaram e eu não consegui bolar uma resposta decente. Osakura foi o próximo a falar.

                               Ah, é, Makoto! Você matou aula no último período e também experimentou essa chuva! Convença ele que não precisamos ir lá fora!

                               Eu ponderei um pouco. Realmente o tempo não estava muito bom e eu mesmo não sei se iria à aula se forçado sob essas condições... Mas como eu já estava a meio caminho da escola não tive muita escolha. Enquanto eu pensava, Nekogami, que parecia estar fazendo o mesmo, pareceu aceitar à ideia.

                               Ah... Tudo bem, tudo bem. No entanto o Makoto-kun terá que vir com a 
gente.
                               Quem, eu?                  

                               Eu não estou em condições de ficar faltando aulas dessa forma. Minhas notas não param de cair e eu temo pelo meu futuro se as coisas continuarem assim...  No entanto, antes que eu pudesse recusar a proposta, meu estômago, que pareceu achar o momento muito oportuno, roncou ferozmente, fazendo com que meu rosto corasse em resposta. Que embaraçoso...

                               Haha! Pelo visto você não almoçou também!

                               Nekogami deixou escapar um riso e sorriu em seguida.

                               Vamos, vamos, o Kai vai te pagar algo pra comer.

                               Sua velocidade de se trocar me surpreendeu e ele já estava com o uniforme normal da escola antes que eu pudesse perceber o que havia acontecido. Osakura se dobrou para frente em protesto, mas Nekogami já estava caminhando em direção à porta. 

                               Hã, eu que vou pagar!? Ei, Akakyo, volte aqui!! Eu ainda estou com meu uniforme de ginástica!

                               Eu pensei novamente em aguentar a fome e recusar a proposta, mas meu estômago percebeu meu pensamento e me impeliu com outro ronco furioso.

                               É... Acho que no fim das contas, o presente é mais importante que o futuro.


. . .


                               Eu e Akakyo chegamos primeiro à máquina de vendas que ficava no exterior da escola. Felizmente, ela ficava numa área coberta então o máximo que nos molhamos foi com os pingos trazidos pelo vento. Kaioshi chegou alguns minutos depois. No fim eu acabei comprando meu próprio macarrão instantâneo da máquina. Eu abri e assoprei para dissipar o calor. Em seguida peguei os palitos que acompanhavam e recitei o mantra antes da refeição.

                               Obrigado pela comida...

                               Eu comecei a comer. O calor do macarrão serviu para aquecer meu corpo

resfriado. Era uma sensação boa. Eu abri a boca e um vapor saiu dela, se dissipando no ambiente.

                               Osakura havia se sentado ao lado da máquina, enquanto Nekogami estava apoiado na parede, com o joelho esquerdo dobrado. Por minha vez, eu estava comendo em pé, enquanto olhava a chuva. Os dois haviam iniciado todas as conversas até agora, então eu achei que era minha obrigação fazer isso em seguida. Eu terminei de engolir a porção de macarrão que estava na boca e me virei para os dois.

                               Nada. Não consegui pensar em nada para dizer. Aqueles dois poderiam ser meus primeiros - e talvez os únicos - amigos naquela escola, e eu tenho que admitir que estava um pouco nervoso. Os dois olharam pra mim e Nekogami perguntou.

                               O que foi?

                               Então... Vocês são amigos há muito tempo?

                               Que pergunta mais... Não consigo encontrar um adjetivo para demonstrar minha decepção.

                               Quem disse que somos amigos? Ele é meu escravo.

                               Osakura falou, convencido, e Nekogami apenas sorriu.

                               Essa doeu.

                               Parece que minha pergunta ficou sem resposta definitiva, mas o jeito que eles lidaram com isso serviu para me deixar mais descontraído.

                               A pergunta veio do rapaz de cabelos brancos.

                               Alkaev. Isso é o que, italiano?

                               Ah, bom... Eu nasci no Japão, mas meu pai é russo... Por isso é um pouco complicado dizer o que eu sou. Mas de alguma forma meu pai acabou deixando nos registros a nacionalidade japonesa, por isso acho que posso considerar que sou japonês.

                               A resposta longa pareceu não importar muito para Osakura, que simplesmente se satisfez com as palavras "russo" e "japonês".

                               O que seu sobrenome quer dizer?

                               Agora foi a vez do garoto de cabelos vermelhos de se dirigir a mim.


                               Ah, bom... Alkaev quer dizer desejo em russo.

                               Ele pareceu compreender.

                               Entendi. Alkaev Makoto. É um bom nome.

                               Ele disse isso por que Makoto quer dizer sinceridade. Em outras palavras, meu nome significa "desejo por sinceridade". Eu não consegui deixar de pensar no nome de Shizuka, que significa "desejo por quietude." Meu olhar desceu em direção ao chão enquanto eu concordava.

                               É... É um bom nome.

                               Eles pareceram notar minha mudança de humor. Eu não poderia ficar com o humor pra baixo perto deles, portanto eu forcei um sorriso torto e tratei de me animar.

                               Nós continuamos conversando pelo resto do período. A chuva parou e agora apenas algumas gotas escorriam e pingavam. Nos despedimos e fomos para nossas respectivas salas.

                               Aqueles dois eram incrivelmente amigáveis. Agora a escola já não parecia mais um ambiente hostil, embora minha sala de aula ainda fosse indiscutivelmente desconfortável. Apesar disso, eu me esforcei para continuar prestando atenção nas aulas pelo resto do dia.


. . .


                               Assim que as aulas terminaram, eu tentei encontrar aqueles dois, mas acabei não conseguindo. Acho que não tenho escolha senão desistir e ir pra casa sem me despedir. Eu cruzei o portão da escola e caminhei até em casa. O sol estava começando a se por, e isso causava um efeito bonito nas ruas da cidade. Eu continuei caminhando. Lá está. A última esquina na qual eu tenho que dobrar. Eu suspirei aliviado que o trajeto cansativo estava quase acabando, mas fui pego de surpresa pela visão que apareceu na minha frente.

                               Em frente à porta da minha casa, estava uma garota de cabelos loiros, trajando um uniforme escolar diferente do meu. Na minha escola as garotas usavam um casaco preto e saia vermelha, acompanhado de uma gravata também avermelhada. No entanto o uniforme daquela garota consistia de um suéter de cor bege sobre uma camisa branca, uma saia azul e sem gravata. Como se orquestrado, um raio de sol iluminou o rosto dela levemente por alguns segundos, e em seguida ofuscou minha visão. Quando eu abri os olhos, nossos olhares se cruzaram. Agora que eu podia ver o rosto dela um pouco melhor, ela parecia incrivelmente familiar.

                               Aquela garota...

                               Nanami?

                               Ela abriu um largo sorriso, como se esperasse que eu a reconhecesse, ou como se estivesse esperando uma confirmação de que aquele era realmente eu. Ela caminhou depressa na minha direção, e eu acabei caminhando na direção dela também. Nós nos abraçamos e eu não pude evitar sorrir também.

                               Suzuyama Nanami. Quando éramos menores, costumávamos brincar sempre.

                               Eu, ela e Shizuka.

                               A verdade é que não nos vemos há muito tempo. Eu me mudei pra casa dos meus tios quando tinha 10 anos. Quando Shizuka começou a adoecer, nossa cidade ainda não era muito grande... Não tínhamos muitos médicos, então meus pais tiveram que ir até a cidade mais próxima para trazer um especialista.

                               No entanto...

                               Naquele dia, uma tempestade acabou caindo no meio do caminho. Eu não sei bem como aconteceu, mas provavelmente a chuva e a pressa fizeram com que meu pai perdesse o controle do carro. Meu pai e minha mãe acabaram morrendo no acidente. Como eu era muito pequeno para viver sozinho, acabei me mudando. Foi duro... Na mesma época, perder meus pais, minha melhor amiga e ter que ver Shizuka ficar pior e pior a cada dia.

                               Não que Shibuya fosse um lugar ruim, mas eu estava com um estado emocional abalado demais para gostar de lá. Eu odiava aquele lugar com todas as minhas forças. Shizuka ficava cada vez mais debilitada e depois de alguns meses eu ouvia brigas constantes de meus tios. Minha tia, que não tinha nenhum parentesco de sangue com minha mãe, não queria ter que ter que assumir a responsabilidade de cuidar da gente. Meu tio, no entanto, insistia para que eles ficassem conosco. Depois de um tempo eles queriam deixar Shizuka num hospital, onde poderiam cuidar melhor dela. Mas eu nunca concordei com isso. Eu nunca confiaria que pessoas estranhas pudessem cuidar melhor da minha irmã do que eu. Desde cedo eu ajudava ela com tudo que podia. Por fim, quando minha tia engravidou, meu tio se viu num beco sem saída, em questões de responsabilidade e dinheiro. Acabamos indo morar com meus avós.

                               Meus avós eram pessoas muito gentis e atenciosas. Eles nos ajudaram muito e foram bem compreensivos. Eu já estava mais maduro e menos rebelde. De certa forma, eu começava a compreender a situação de meus tios depois que algum tempo passou. A cidade em que ficamos era menor que Tóquio, mas ainda assim maior que nossa cidade natal. Todo esse tempo eu passei tão focado em cuidar de Shizuka que quase não fiz nenhuma amizade. E mesmo assim, quando meus avós morreram e eu voltei pra cá, nenhuma foi tão forte a ponto de se manter viva.

                                Minhas responsabilidades aumentaram muito. Tanto que eu não consegui acompanhar o passo. Os pratos vivem sujos e a maior parte da casa está um caos. Além disso, minhas notas na escola não param de cair e não consegui fazer nenhum amigo. Bom, até pouco tempo, quando aqueles dois falaram comigo, embora eu não saiba se posso chamá-los de "amigos" ainda.

                               Ah, eu viajei um pouco no passado agora. De qualquer forma, o abraço foi longo o suficiente para que eu pudesse voltar à realidade a tempo. Quando terminamos, um olhou pra cara do outro sem saber muito bem o que dizer. Quando notamos nossas expressões pensativas, ela riu e colocou a mão na frente da boca, enquanto eu fiz o mesmo enquanto coçava a cabeça.

                               Faz bastante tempo...

                               É...

                               Ela olhou pra minha casa como se lembrasse de algumas coisas, então olhou pra mim emburrada.

                               Que história é essa de Nanami?

                               Ah, desculpe, Nana.

                               Eu sorri ao me lembrar do apelido de infância dela. Ela fez o mesmo, acompanhado de um "Hihi".

                               Como está a Shizu-chan?

                               Eu olhei para a casa também. Como eu vou dizer isso pra ela? Eu olhei de volta pra seu rosto e seus olhos verdes estavam me fitando. Eu não consegui dizer enquanto olhava diretamente para eles.

                               A condição dela piorou...

                               Essa não...

                               Ela olhou pra porta com os olhos cheios de lágrimas. Eu não quero ver um rosto que estava feliz agora a pouco triste daquele jeito.

                               Mas ela está bem!

                               Que controverso...

                               Quero dizer... Vai ficar tudo bem. Ela está estável faz um ano. Além disso, eu estou cuidando dela, então vai dar tudo certo!

                               Eu apontei meu polegar pra mim mesmo e sorri com uma cara convencida. Ela sorriu, mas visivelmente continuou insegura. A verdade é que eu também estou inseguro. Eu nunca sei se ela vai piorar ou não. Se ela piorar a ponto de não conseguir nem suprir suas necessidades básicas sem ajuda de máquinas eu não vou poder mais ficar com ela...

                               Eu não quero isso.

                               Eu olhei para Nana, dessa vez prestando melhor a atenção nela. Ela cresceu bastante, mas ainda assim é menor do que eu. Eu me lembro que ela se vangloriava de ser maior que eu quando éramos pequenos, mas agora eu tinha passado dela. Ela também ficou muito bonita. Suas curvas ficaram bem desenhadas e seus seios...

                               Aah!

                               Vai ser um problema se ela me pegar olhando, então eu desvio o olhar. Mas, sério... Ela se tornou uma garota muito bonita. Shizuka também. Mesmo sendo magra e tendo pernas e braços finos, seu rosto deve estar entre os mais bonitos que já vi. Ela se parece muito com nossa mãe, embora nossa mãe tivesse cabelos castanhos, da cor dos meus.

                               Meus olhos são como os do meu pai. Ele tinha olhos cor de mel, bem claros, quase amarelos, e eu herdei isso dele. Em contrapartida, Shizuka herdou os cabelos brancos dele. É uma cor bastante rara, mas há mais chances de ocorrer de pai pra filho.

                               Novamente eu tinha viajado em meus pensamentos. Nanami estava olhando para mim. Já tínhamos ficado em silêncio por alguns segundos. Eu resolvi quebrar o silêncio com um convite.

                               Você quer vê-la?

                               Os olhos dela se iluminaram com minhas palavras.

                               O quê? Posso mesmo?

                               Claro!

. . .


                               Eu esqueci desse detalhe...

                               Estamos dentro de casa. Eu fiquei totalmente sem graça com a bagunça e a sujeira que estavam os cômodos. Nana fez uma reação exagerada enquanto passava o dedo num móvel.

                               Uaaah! Incrível, Makoto, você deve ter quebrado algum tipo de recorde! Há quanto tempo você não limpa isso?

                               Cale a boca.

                               Eu olhei para o lado. Não queria ter que levar broncas dela como quando eu era pequeno. Eu cruzei a distância do corredor até o quarto de Shizuka e abri a porta devagar.
                               Como sempre, ela estava exatamente onde eu a deixei. Ela estava na cama, coberta por seu lençol azul. Eu toquei sua bochecha com o indicador para chamar sua atenção. Suas pálpebras tremeram e seus olhos azuis se abriram e se viraram na minha direção.

                               Irmã, você tem visita.

                               Sua boca se abriu um pouco e suas sobrancelhas fracamente se ergueram num gesto de indagação. "Quem poderia ser?" É o que provavelmente ela pensou. Eu fiz sinal para Nana, que vacilantemente foi caminhando até se apoiar na parede da porta do quarto. O sorriso de Shizuka se abriu instantaneamente. Eu pude ver lágrimas se formando nos olhos dela. Aconteceu o mesmo com os olhos de Nana, que da porta correu para a cama, se debruçando num abraço desajeitado sobre minha irmã.

                               Shizu-chan!

                               Eu podia ver o quanto Nana queria chorar como um bebê. No entanto ela se conteve e se afastou para olhar nos olhos de Shizuka.

                               Eu senti sua falta, Shizu-chan!

                               Eu fechei os olhos enquanto sorria e fui fechando a porta do quarto devagar à medida que saía.

                               Aquela era uma cena que eu nunca iria esquecer.


. . .


                               Incrível... Nanami está conversando até agora com Shizuka... Eu entendo que elas não se falam há muito tempo, mas uma conversa unilateral devia ter acabado há muito tempo. 

                                            Realmente incrível.

                               Eu carreguei a bacia com água morna e um pano até o quarto. Passei pela porta com dificuldade. Nana não parou de falar até notar que eu carregava a bacia, e olhou pra mim se perguntando para que era.

                               Ah, eu vou dar banho na Shizuka agora.

                               Ei...

                               Ela, que estava de joelhos, se levantou com uma mão sobre o peito e olhou nos meus olhos.

                               Eu posso ajudar?

                               Huh?

                               Isso foi inesperado. Eu olhei pra Shizuka como se esperasse uma confirmação. Sua expressão continuou calma e serena. Era como se ela me dissesse: "Se for a Nana tudo bem."

                               Sim, claro. Eu vou buscar outro pano.

. . .


                               Quando eu voltei nós tiramos a roupa de Shizuka e passamos o pano molhado sobre seu corpo. Eu evitava leva-la para o chuveiro por vários motivos. Primeiro por que seria muito trabalhoso dar banho nela enquanto a carregava, segundo por que ela poderia acabar se afogando. Melhor fazer disso algo esporádico.

                                O procedimento de banhar alguém nessas condições é mais demorado e cansativo, mas com duas pessoas acabou ficando mais rápido. Eu aproveitei para massagear os músculos dela. A massagem é importante para os músculos se manterem saudáveis. Nanami me pediu para que eu a ensinasse. Ela pega o jeito rápido.

                               Por fim, aproveitando a ajuda extra, nós enchemos um balde mais fundo com água e lavamos o cabelo dela. Eles são bem longos , por isso levou um tempo. A vestimos com um vestido azul claro de seda. Nana fez algumas tranças no seu cabelo e as amarrou com um laço. Shizuka ficou tão linda que mal podia acreditar que eu era parente dela.

                               Eu me estiquei depois de todo o trabalho, para diminuir a dor dos músculos enrijecidos. Eu convidei Nanami para jantar. Ela aceitou, mas insistiu em ajudar a preparar a comida. Achamos alguns aventais velhos e colocamos para cozinhar. Estávamos fatiando alguns legumes na cozinha quando eu imaginei que deveria puxar algum assunto.

                               Hum... Seu uniforme.

                               Huh? O que tem ele?

                               É bonito. Quero dizer, você fica bem nele.

                               Ah... Obrigada.

                               Acho que, se é que ela ficou vermelha, eu acabei ficando mais.

                               Droga, pense em algo pra falar, homem!

                               Como está sua escola?

                               Ai!

                               Eu coloquei o dedo sangrando na boca. Ela parou de cortar e percebeu que tinha algo errado. Droga, como ela chegou nesse assunto? Cabeça dura! Eu tinha que vir com a história do uniforme...

                               Eu desviei o olhar e respondi.

                               Nada demais...

                               A verdade.

                               Ela tinha que ser tão astuta...

                               Não muito bem... Um desastre, na verdade.

                               Eu sabia.

                               Eu me ofendi um pouco. Não é como se eu tivesse cara de retardado ou algo do tipo...

                               Você tem que cuidar da Shizuka e tudo o mais, é de se esperar que esteja indo mal na escola.

                               Eu concordei em silêncio.

                               Você fez amigos?

                               Aah! Bom...

                               Houve uma pequena pausa.

                               Acho que... Sim...

                               Ela sorriu.

                               Entendi. Isso é bom.

                               Nós juntamos todos os legumes e as verduras num prato. Eu geralmente sou organizado quando preparo a comida pra Shizuka, mas a decoração de Nanami era muito melhor. Eu deixei que ela cuidasse do prato e fui cuidar do arroz.

                               Acho que não vai fazer mal se eu vier aqui de vez em quando.

                               Huh?

                               Eu olhei pra ela. Não quero trazer problemas desnecessários pra ninguém... Acho que é uma das razões de eu ter feito tudo sozinho até agora.

                               Não, você não precisa...

                               Mas eu quero! Sabe... Eu sempre me senti culpada por não ter feito nada naquela época... De verdade, eu quero ajudar.

                               Eu olhei pro arroz para evitar dar uma resposta.

                               Por favor.

                               Eu olhei pra ela. Que erro. Seus olhos estavam brilhando intensamente, mergulhados numa feição de imploração, tanto que me assustou. Era como tentar negar carinho a um filhote.

                               Tudo bem, se for só de vez em quando. Duas vezes por semana, no máximo.

                               Sim, tudo bem!

                               Ela se voltou animada para o que estava fazendo. A verdade é que eu me senti aliviado. Um pouco de ajuda de vez em quando não ia fazer mal. Eu ia ter um pouco mais de tempo pra estudar, às vezes, quem sabe, até sair. Embora eu não estivesse totalmente certo em deixar Shizuka com outra pessoa, ainda que fosse Nanami, era algo que eu tinha que estar disposto a dar uma chance. Até mesmo pelo nosso futuro.


. . .


                               Nós levamos o jantar já pronto até a cama de Shizuka. Nanami pediu para cuidar de dar a comida à Shizuka. Eu não tive objeções. Eu experimentei uma garfada da carne e...

                               Incrível!

                               Minhas bochechas coraram de prazer no mesmo momento. Faz tempo que eu não como algo tão gostoso!

                               Eu sempre cuido de dar uma alimentação saudável à Shizuka, mas não tenho muito tempo pra cuidar da minha. Estou sempre comendo comidas instantâneas, e raramente como algo preparado, ainda mais com o cuidado que foi hoje. Demoramos cerca de 40 minutos comendo e conversando. Estávamos lavando os pratos quando eu me dei conta do horário.

                               Nana, não está tarde pra você ir pra casa?

                                Uaah! É verdade! Eu tenho que ir correndo!

                               Ela tirou o avental e deixou de lado o prato que estava lavando.

                               Minha mãe vai me matar!

                               Ela fez uma cara chorosa.

                               Eu vou com você!

                               Eu corri até o quarto de Shizuka e apareci apenas com a parte superior do corpo pela fresta da porta.

                               Shizuka, eu vou levar a Nana em casa e volto correndo!

                               Ela apareceu atrás de mim logo em seguida.

                               Sim! Bye-bye, Shizu-chan!


. . .


                               Fomos correndo até a estação mais próxima, onde pegamos um trem para a zona norte da cidade. Nana falou o tempo todo dos tipos de punição que sofreria ao chegar em casa. Eu não lembrava que a mãe dela era tão assustadora assim. Que medo.

                               Depois de algumas dezenas de minutos finalmente chegamos. Eu ainda caminhei com ela até a porta de sua casa, embora ela insistisse para eu não vir.

                               Você não precisa vir. Você tem que voltar logo pra casa por causa da Shizu-chan.

                               Tudo bem, não vai demorar muito.


                               No fim das contas, depois de tudo que ela fez, era o mínimo que eu podia fazer.
                               Finalmente chegamos a casa dela. Ela havia se mudado de onde ela morava antigamente. Agora, a casa era maior e mais bonita. O jardim era impecável. Eu lembro que também era assim na antiga casa dela, e que quando brincávamos nele a mãe dela sempre brigava com a gente.

                               Ela se virou após subir alguns degraus e acenou pra mim.

                               Até mais, Makoto.

                               Sim, até mais, Nana.

                               Ela entrou e fechou a porta depressa. Eu ainda fiquei olhando alguns segundos para a porta, lembrando dos momentos que passamos quando éramos crianças. Eu lembro que sempre brincávamos de casinha.

                               Eu comecei a caminhar na direção da estação.

                               Shizuka e Nanami sempre brigavam pra saber quem seria o pai. Eu sempre acabava sendo o filho, mas de vez em quando eu era a esposa. Droga, como eu queria ser o pai...

                               Eu lembro que em certa ocasião combinamos algo...

                               Cada um tinha que prometer alguma coisa e cumprir pelo resto da vida.

                               Eu lembro fui o primeiro e logo no início falei algo idiota.

                               Eu vou salvar o mundo!

                               Uma vez, quando minha irmã ralou a perna, Nanami fez a promessa dela.

                               Eu vou sempre cuidar de vocês!

                               E quando íamos nos mudar para a casa de nosso tios...


                               Vamos estar sempre juntos...            
               
                               ...

                               Trilhos.


. . .


                               Eu estava bem perto da estação. Foi um dia cheio.
                               Ah, cara, eu tô exausto...

                               Eu suspirei. Nesse momento, uma melodia tocou meus ouvidos. De onde está vindo isso? Eu virei em direção ao som e vi a silhueta de uma garota em cima de um muro alto de uma casa japonesa tradicional e bem antiga. Ela segurava um violão e dedilhava uma bela melodia.

                               Eu simplesmente fiquei paralisado com a beleza da voz da garota... Não, de toda a cena. A luz da lua cheia refletia claramente em seus olhos vermelhos e o vento batia levemente em seus cabelos. Ela tomou o ar, provavelmente para entrar no refrão da bela música, quando simplesmente parou e me fitou.

                               Nós nos olhamos nos olhos. Minha boca se abriu involuntariamente.

                               Estou sem palavras.


. . .

Chiharu - 01
Palavras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário